Macroeconomia

2019: O ano do ajuste fiscal não gradualista

16 mai 2018

O economista John Cochrane fez uma interessante analogia entre o personagem desempenhado por Bill Murray no clássico de Hollywood, “Groundhog Day”, e a situação vivida desde 25 de abril pelo Banco Central da Argentina (BCRA).[1] Tal como no filme, os dias para o BCRA parecem ser a repetição do anterior: toda manhã eleva a taxa de juros, vende dólares e o peso argentino (ARS) se desvaloriza, o que torna a acontecer na manhã seguinte.

Apesar do pedido de ajuda ao FMI e da declaração formal de apoio da Diretora-Gerente da instituição, a situação continuou a se deteriorar. A desvalorização do ARS contra o dólar americano prossegue, acumulando quase 50% até 14 de maio, e a taxa de juros de curto prazo chegou ao redor de 80% ao ano. Aparentemente, a intervenção do FMI não evitará uma crise, porém provavelmente ajudará na recuperação.

Embora com nuances distintas, o atual drama argentino nos relembra o Brasil de 1998.

Enquanto o grande mérito do Plano Real foi debelar a quase hiperinflação, o governo Macri recuperou a credibilidade externa da Argentina, retomando o acesso ao mercado financeiro global perdido há quase 15 anos. Isto posto, o governo argentino voltou a pleno vapor ao mercado global, emitindo US$ 100 bilhões de dívida externa entre 2015 e 2017.

Os planos Real e Macri não concederam prioridade ao ajuste fiscal e se permitiram conviver com déficits gêmeos – no orçamento público e em conta corrente – e moedas supervalorizadas. Tal situação, especialmente em economias emergentes com baixas taxas de poupança doméstica, como Brasil e Argentina, é claramente insustentável, deixando a economia vulnerável diante de choques externos. Os agentes econômicos são racionais e

como diz um ditado popular: “O diabo sabe para quem aparece”.

O estopim da crise argentina de hoje foi a alta das taxas de juros da dívida pública americana [2]. Já em 1998 a economia brasileira sofreu o contágio das crises financeiras de mercados emergentes, o que levou o BACEN a experimentar momentos de “Groundhog Day”.

Apesar da recessão, a crise brasileira teve um final feliz, pois adotamos o regime de câmbio flutuante e de metas de inflação[3]. Entretanto, a despeito da Lei de Responsabilidade Fiscal, não fizemos um ajuste estrutural para mudar a dinâmica dos gastos públicos.

No curto prazo, é pouco provável que tenhamos que lidar com situações como as que foram descritas. Todavia, elas se constituem em alerta de quão perigosa para a estabilidade macroeconômica pode ser a persistência de um desajuste fiscal.

Nas últimas décadas as políticas públicas no Brasil foram ditadas por governos de orientação social democrata e socialista. Consequentemente, a presença do Estado na economia se agigantou em várias dimensões que interferem na vida dos cidadãos e das empresas.

Um exemplo disso é a coexistência no balanço de pagamentos do País de uma conta de capital aberta com uma conta comercial fechada.

Economias emergentes de sucesso, como o Chile e a China, primeiro abriram primeiro suas economias para o comércio internacional e só depois a conta capital. No Brasil, ficamos só na abertura da conta capital, exatamente porque ela é importante para viabilizar o financiamento dos gastos públicos. Mantivemos a economia fechada à competição para proteger uma clientela que se beneficia da intervenção do Estado, o que implica custos significativos para o desenvolvimento econômico.

Estamos no quinto ano consecutivo de déficit primário, o endividamento público é significativo, a razão dívida/PIB é crescente e a mais elevada entre as principais economias emergentes.

Neste ano de eleições presidenciais várias são as propostas para reequilibrar o orçamento do Governo, e, com raras exceções, todos concordam, o que é bom, com a necessidade de reformar a previdência. Alguns vão mais além e sugerem medidas para viabilizar um período de transição até que os efeitos dessa reforma se façam sentir sobre as contas públicas. Entre estas se encontram recomendações de flexibilização do teto de gastos ou da regra de ouro e para aumento temporário de impostos.  

Propostas de suavização de restrições a gastos públicos não são definitivamente o que se poderia considerar como boa ideia.

Primeiro, medidas desse tipo tendem a produzir impacto negativo sobre as expectativas, ao sinalizar postergação de um ajuste inevitável, dada a necessidade da sustentabilidade intertemporal da dívida pública. Segundo, o foco é equivocado, ao mirar nos efeitos –  riscos de paralisação do governo e/ou de prisão de policy makers –  e não na causa, a indisciplina sistemática dos gastos públicos.

A proposta de alta temporária de tributos parece ingênua diante da experiência brasileira, em que neste campo o que é transitório tende a se tornar permanente. Ademais, já temos muitas distorções provocadas por um sistema tributário assemelhado a uma colcha de retalhos. É hora de reformá-lo e não de colocar mais um retalho.

A opção por um ajuste fiscal gradualista tende a prolongar a ação dos efeitos do desequilíbrio orçamentário: a contaminação da política monetária, a fragilidade externa, o crowding out dos gastos privados, taxas de juros reais elevadas e as distorções na alocação de recursos que impactam a produtividade e o crescimento econômico.

Ademais, o gradualismo dá oportunidade para os beneficiários do status quo se organizarem e pressionarem para bloquear o ajuste fiscal.

Um novo governo possui, no início de seu mandato, capital político suficiente para aprovar medidas que encontrariam forte oposição política em outro contexto, o que viabilizaria a aplicação de tratamento de choque para o desequilíbrio fiscal. Não há tempo a perder com soluções criativas, mas protelatórias – 2019 pode ser um divisor de águas na reestruturação do Estado brasileiro. 

Simultaneamente à aprovação de uma profunda reforma da previdência, a nova administração deve endereçar imediatamente quatro questões: cortes significativos de subsídios de crédito e gastos tributários, reforma da administração pública, maior flexibilidade na gestão das despesas orçamentárias e amplo programa de privatização, com inclusão obrigatória de Petrobras, Eletrobrás, BB, Caixa, Correios, Infraero, Casa da Moeda, CBTU e Companhias Docas.

De imediato, a devolução adicional de recursos do BNDES e a venda da carteira de ações da BNDESPar podem gerar mais de R$ 200 bilhões, o que daria algum alívio ao Tesouro[4].

Existe grande potencial para ajuste no corte dos gastos tributários da União, que somaram R$ 270 bilhões em 2017, equivalentes a 4,1% do PIB. Boa parte dessas isenções fiscais cria regimes tributários diferenciados e, portanto, geradores de distorções em troca de quase nenhum benefício social.

O exemplo típico é o Simples (R$ 76 bilhões), que de acordo com a evidência empírica não possui efeito significativo sobre a formalização de empresas nem tampouco sobre o emprego[5]. O Simples acaba contribuindo para garantir a sobrevivência de uma cauda de pequenas empresas muito pouco produtivas, travando a realocação de recursos e o crescimento da produtividade.

Os subsídios de crédito já estão em declínio após o pico de 2015, de R$ 145 bilhões, tendo alcançado R$ 84 bilhões em 2017. Existe, porém, espaço para redução adicional via diminuição do tamanho do BNDES e outras medidas, tais como o fim do Fundo de Marinha Mercante e a reformulação dos fundos constitucionais.

Simultaneamente à extinção de ministérios, outros órgãos da administração federal e cargos em comissão, a máquina pública precisa passar por profunda reestruturação. Isto deve envolver a restrição da estabilidade no emprego a determinadas carreiras, a avaliação sistemática de performance de funcionários, o fim de privilégios, como os chamados “penduricalhos”, e o estabelecimento de critérios específicos para titulares de cargos de gestão – à semelhança da Lei das Estatais –  para evitar a politização do serviço público, prática intensificada nos últimos governos.

O novo governo que tomará posse em 2019 disporá de oportunidade histórica para transformar a economia brasileira, implementando reformas que conduzam a presença do Estado a ser substituída por uma iniciativa privada vibrante e capaz de liderar uma longa fase de prosperidade.  Disparar um poderoso ataque contra o desequilíbrio fiscal será um excelente começo.

As opiniões expressadas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

 


[1] The Grumpy Economist, May 4, 2018.

[2] Para aumentar a vulnerabilidade da Argentina, ocorreu a desastrosa introdução de um imposto sobre aplicações de estrangeiros em títulos do BCRA, as LEBACs, e que passou a vigorar coincidentemente com a alta dos juros títulos americanos.

[3] Segundo o CODACE da FGV IBRE, a recessão resultou em queda de 1,6% do PIB, tendo durado cinco trimestres e se encerrado no fim do primeiro trimestre de 1999.

[4] A carteira de ações da BNDESPar é composta por ações de grandes empresas, como Vale, Petrobras, Eletrobras, Suzano, JBS, Copel, Embraer e Marfrig.

[5] Veja Holanda Barbosa Filho, F., Ulyssea, G. e Veloso, F. (orgs.), “As causas e consequências da informalidade no Brasil”, FGV IBRE, Elsevier, 2016.

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