Macroeconomia

Hiato, inflação e juros nos próximos anos: o que ainda não está na conta

23 ago 2017

Em meu último post neste blog, apontei que a economia brasileira opera atualmente com um hiato do produto negativo expressivo, da ordem de oito pontos percentuais.

Repetindo o último parágrafo daquele texto, “(...) isso significa dizer que: i) o ciclo econômico está subtraindo cerca de 2,5 pontos percentuais (pp) do PIB do resultado primário do setor público consolidado no momento atual; e ii) dada as atuais projeções de consenso para o crescimento do PIB efetivo nos próximos anos, o hiato do produto somente deixará de ser inflacionário entre 2021 e 2022 – abrindo espaço para uma política monetária bastante acomodatícia nesse período (replicando, em alguma medida, o quadro observado nos EUA entre 2009 e 2015).”

Vou me aprofundar mais no segundo ponto. A partir da base de dados da OCDE, identifiquei, entre 1985 e 2016, 14 episódios, em 14 países[1], caracterizados por hiatos do produto significativamente negativos e persistentes. Tipicamente, esses episódios estiveram associados a recessões bastante profundas, deflagradas por diversos motivos diferentes – crises financeiras, fiscais e de balanço de pagamentos –, muitas vezes interagindo entre si. O gráfico a seguir compara a evolução do hiato na média desses 14 episódios com o atual ciclo brasileiro, considerando uma janela temporal de 13 anos (seis anos antes e seis anos depois do “choque”). No caso do Brasil, o ano T é 2015 e os dados para T+2 correspondem a projeções.

Como pode ser notado, essas economias, inclusive o Brasil, vinham de uma situação de superaquecimento relativamente duradouro previamente à ocorrência do choque que as levou a operar com enorme ociosidade. A recuperação do crescimento não foi muito rápida (provavelmente refletindo um período inicial em que os agentes estavam se desalavancando, além de o próprio excesso de ociosidade inibir uma recuperação mais célere dos investimentos), de modo que, mesmo seis anos depois, ainda havia, em média, um resquício de excesso de ociosidade (hiato negativo).

Coerente com esse quadro de ociosidade, a inflação despencou: entre dois e seis anos depois do “choque” (no ano T), a inflação estava correndo 2,5 a 3 pp abaixo da taxa média observada entre T-6 e T. Muito provavelmente algumas rigidezes nominais para baixo de alguns preços, em especial no mercado de trabalho, fizeram com que o ritmo de desinflação (a segunda derivada do índice de preços) estancasse cerca de três anos depois do “choque”.

Em função sobretudo da “inflação corretiva” (realinhamento de diversas tarifas públicas e reversão de desonerações tributárias) e do choque desfavorável nos preços dos alimentos associado ao El Niño muito forte em 2015/16, a dinâmica da inflação brasileira divergiu desse “padrão” em um primeiro momento. Mas, dissipados esses choques, a força do hiato desinflacionário passou a prevalecer e nos alinhamos ao “padrão” (ao menos até agora).

Com o hiato literalmente ancorando a inflação, a taxa básica de juros nominal na média desses 14 países foi ficando cada vez mais abaixo do nível médio que prevalecia antes do “choque” – em T+6 estava cerca de 7,5 pp abaixo da média observada entre T-6 e T. 

Vale notar que, para computar esses valores das taxas de juros, considerei as chamadas shadow rates para EUA, zona do euro, Japão e Reino Unido, estimadas pelo Banco Central da Nova Zelândia. São taxas que levam em conta estimativas dos impactos dos programas de relaxamento quantitativo colocados em prática pelos bancos centrais desses países/regiões. O gráfico abaixo mostra a evolução dessas shadow rates [1].

Voltando à comparação dos episódios de hiatos do produto muito negativos e persistentes, como a queda do juro nominal foi da ordem de 7,5 pp e a queda da inflação de cerca de 3 pp, isso implica dizer que o juro real ex-post recuou em aproximadamente 4,5 pp depois do “choque”.

Esse recuo foi duradouro (ao menos na janela temporal considerada nas comparações acima, que é bastante longa), refletindo, dentre outros fatores: i) uma queda do crescimento potencial depois dessas recessões severas; e ii) uma perda de potência, ainda que relativamente temporária, da política monetária, em função de um “entupimento” do canal de transmissão do crédito (reflexo do processo de desalavancagem do setor privado). Ou seja: essas crises geraram tanto uma queda do juro neutro (via queda do potencial) como um espaço para que o juro efetivo se situasse abaixo do neutro por um prazo relativamente dilatado (tanto pela perda de potência da política monetária como pelo hiato bastante desinflacionário).

Caso tomemos a experiência histórica desses 14 países como um referencial para traçar um cenário para a economia brasileira, não se pode descartar a possibilidade de que tenhamos um crescimento moderado nos próximos anos (cerca de 2% a.a., o que zeraria o hiato somente em 2021 ou 2022, mesmo admitindo um crescimento potencial baixo, próximo de zero), uma inflação correndo entre 3% e 3,5% a.a. (na ausência de perturbações desfavoráveis muito expressivas advindas dos alimentos) e uma Selic real significativamente mais baixa do que os 4% a.a. observados na média de 2010-2015.

Trata-se de um cenário ainda não vislumbrado pela maioria dos analistas, sobretudo no que toca ao juro real – cuja projeção de consenso para 2017-2021 está nos mesmos 4% a.a. observados em 2010-2015. Certamente a enorme incerteza associada às eleições de 2018 e à orientação da política econômica de 2019 em diante enseja cautela nas projeções do mercado. Não obstante, o cenário descrito acima está longe de ser impossível. E pode ser algo extremamente relevante do ponto de vista da solvência fiscal – outra preocupação pertinente – nos próximos anos: cada 1 pp de redução permanente da Selic real equivale, do ponto de vista da dinâmica da dívida bruta, a um aumento de 0,6 pp do resultado primário. 

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 


 

[1] Levando em conta as taxas efetivas (e não as shadow), o juro estava, em T+6, cerca de 5 pp abaixo da média entre T-6 e T.

[1] São eles, sempre apontando o ano T entre parênteses: Austrália (1991); Canadá (1991); Finlândia (1991); Islândia (1992); Suécia (1993); Coréia do Sul (1998); EUA (2009); Japão (2009); Reino Unido (2009); México (2009); Israel (2009); Portugal (2011), Grécia (2011) e Espanha (2011). 

Comentários

Omar Rubén Egea
IBRE

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