Macroeconomia

O novo pacote ferroviário europeu

31 mar 2017

Durante o primeiro mandato da ex-presidente Dilma Rousseff (2011-14), o governo promoveu várias mudanças no setor ferroviário brasileiro. Além da tentativa de instalar o Trem de Alta Velocidade (TAV) no país, o foco das reformas foi a estrutura vertical do setor. Em especial, o governo buscou, através de Resoluções da ANTT e de mudanças na legislação, alterar a forma em que o setor funcionava desde a privatização da RFFSA, para criar competição entre os operadores de transporte ferroviário[1].

Para isso, precisava abrir o acesso à infraestrutura ferroviária não apenas às concessionárias já existentes, como também a outros eventuais interessados em transportar cargas por meio de vagões. A inspiração principal para essa reforma era um processo semelhante em curso na Europa, que começou na Suécia em 1988 e avançou nos anos seguintes por meio de uma série de normas promovidas pela Comissão Europeia.

Assim como o TAV, a mudança regulatória que o governo desejava nunca decolou e acabou sendo deixada de lado. De fato, essa discussão acabou tão esquecida, que nem a recente aprovação pelo Parlamento Europeu de uma nova rodada de medidas voltadas para estimular a competição ferroviária na região -- o Quarto Pacote Ferroviário -- mereceu registro entre nós[2].

As medidas que levaram ao Quarto Pacote começaram a ser adotadas na Europa nos anos 1990. Diferente do que ocorreu na América Latina, inclusive o Brasil, a reforma ferroviária na Europa praticamente não envolveu a privatização ou separação horizontal das empresas ferroviárias, com a exceção do Reino Unido. Ela despertou mais atenção pois promoveu mais fortemente a separação vertical entre a gestão da infraestrutura ferroviária e a operação em si do transporte. Com isso abriu-se, teoricamente, espaço para a competição intramodal no transporte ferroviário, ao mesmo tempo em que colocou novas questões quanto à regulação do gestor de infraestrutura, incluindo a difícil questão das tarifas de acesso.

Basicamente, a sequência de medidas adotadas pela Comissão Europeia foi a seguinte:

  • Em 1991 foi aprovada a Diretiva 440, que preconizava a separação contábil entre as atividades de gestão da infraestrutura e a operação dos trens e a transparência na cobrança de tarifas de acesso. Além disso, foram estabelecidos direitos de acesso às malhas para consórcios internacionais de transportadores de cargas ou passageiros e para qualquer ferrovia transportando contêineres internacionalmente, com o intuito de incentivar a competitividade do modal ferroviário nessa atividade.
  • Em 1995, entraram em vigor as diretivas 18 e 19, tratando do licenciamento de operadores de transporte internacional, bem como da alocação da capacidade da infraestrutura e da cobrança de tarifas pelo seu uso.
  • Em 1996, a Comissão deu os primeiros passos na direção da uniformização do sistema ferroviário europeu, promulgando a Diretiva 48, que versa sobre a interoperabilidade na rede de trens de alta velocidade.
  • Em 2001 foi adotado o Primeiro Pacote Ferroviário, que criou as bases para o modelo regulatório vigente na atualidade, com foco em fomentar a competição no transporte ferroviário de cargas. O Pacote não exigiu a desverticalização das empresas do setor, mas manteve a recomendação de separar contabilmente o gestor da infraestrutura do operador de transporte incumbente. Além disso, também preconizou a separação contábil entre o transporte de passageiros e de cargas (separação horizontal).
  • O Segundo Pacote Ferroviário, lançado em 2004, consolidou o modelo proposto em 2001 por meio da uniformização de especificações técnicas e metas de segurança, além da abertura completa do mercado de transporte de cargas à competição, regra que passou a valer em 2007. O Pacote também criou a European Railway Agency (ERA), que passou a ser responsável por promover a segurança e a interoperabilidade no sistema ferroviário europeu.
  • O Terceiro Pacote Ferroviário, aprovado em 2007, tratou basicamente do transporte de passageiros. Ele estabeleceu requerimentos para a concessão de subsídios para o transporte de passageiros, bem como padrões mínimos de qualidade a serem respeitados no segmento de passageiros. O Pacote instituiu o livre acesso à infraestrutura para prestadores de serviços internacionais de passageiros, incluindo, em alguns casos, a cabotagem (transporte dentro de um mesmo país).

O Quarto Pacote tem dois pilares básicos. O primeiro, de caráter técnico, foi aprovado em meados de 2016 e foca em acelerar e baratear o processo de aprovação de quesitos de segurança, com a transferência d responsabilidade por essa análise dos órgãos nacionais para a ERA e a ampliação do seu papel no desenvolvimento e implantação do European Rail Traffic Management System.

O segundo pilar, chamado de pilar de mercado, determina que os países abram seus mercados domésticos de transporte ferroviário de passageiros até o final de 2019. Além disso, torna obrigatória que até dezembro de 2023 os subsídios no setor sejam alocados por leilão aberto para a grande maioria dos serviços ferroviários.

Trata-se, sem dúvida, de um avanço importante em um processo de profunda transformação no setor ferroviário europeu, cujos impactos ainda são, do ponto de vista puramente econômico, ambíguos. Com a gradual implementação desse Quarto Pacote, quem sabe, os pontos positivos e negativos dessa reforma ficarão mais claros.

[1] Ver, por exemplo, Armando Castelar Pinheiro, A Nova Reforma Regulatória do Setor Ferroviário. In: PINHEIRO, Armando Castelar; FRISCHTAK, Cláudio Roberto (Org.) Gargalos e Soluções na Infraestrutura de Transporte. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014.

[2] Ver relatório em http://bit.ly/2m43hR0.

 

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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