Macroeconomia

Os privilégios da Idade Média no Brasil de 2018

2 abr 2018

Desde o século XV, os reis de Portugal passaram a editar leis que sustentavam o regime de desigualdades típico da Idade Média.

Conta-nos o historiador Jorge Caldeira que em 1521, aproveitando a invenção da tipografia, o rei D. Manuel editou as Ordenações Manuelinas, um conjunto de cinco livros em que eram descritas com detalhes a hierarquia e a desigualdade de direitos entre cidadãos[1]. A determinação do modo pelo qual uma pessoa podia ser presa se constituía em claro exemplo da hierarquia dos direitos.

Os nobres e altos clérigos só poderiam ser detidos por ordem real através do meirinho-mor. Processos contra fidalgos, cavaleiros, juízes e altos funcionários públicos eram obrigatoriamente submetidos à Corte e prisões somente com autorização do Rei. Já os empresários e o povo em geral estavam submetidos à Justiça comum.

O Judiciário, aponta Caldeira, era a instância maior da defesa do corporativismo e dos direitos adquiridos, constituindo-se em órgão emissor da moeda da diferença social.

Passados cinco séculos, em pleno século XXI, temos em vigor no Brasil, ex-colônia portuguesa, nossa própria versão das Ordenações Manuelinas. A desigualdade de direitos está expressa claramente no instituto do foro privilegiado, prisão somente após o trânsito em julgado e a prisão especial para os portadores de diploma universitário.

O foro privilegiado é privativo de alguns milhares de políticos com mandato e de altos funcionários públicos, que só podem ser julgados pelos tribunais superiores. A cena de euforia de personagens da série O Mecanismo, do Netflix, ao tomarem conhecimento de que seus processos seriam transferidos para a Suprema Corte, encontra respaldo efetivo no mundo real na evidência estatística de baixíssimo índice de condenações nessa instância judicial.

A prisão, após o trânsito em julgado da condenação, permite aos indivíduos de renda mais elevada, com capacidade financeira para arcar com os custos de bons advogados por longos períodos de tempo, protelar significativamente o inicio do cumprimento de suas penas. O extenso caminho entre a primeira e a quarta instância, trilhado com grande lentidão, torna muito provável a prescrição do crime.

O artigo seminal de Gary Becker - prêmio Nobel de Economia de 1992 - publicado há exatamente cinquenta anos, deu origem à vasta literatura sobre a economia do crime.[2] Entre suas conclusões, duas são muito importantes no contexto atual do Brasil. 

A primeira é que o aumento da probabilidade de punição contribui de forma relevante para diminuir a criminalidade. Começando com Levitt (1998), seguiram-se vários trabalhos com evidência empírica dando suporte à previsão de Becker.[3]

Becker também concluiu que a combinação de baixa probabilidade de detecção - como nos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro - com penalidades extremamente severas é uma das formas mais eficientes de conter a criminalidade. É muito custoso identificar e provar a prática desses crimes. Porém, uma vez pego o criminoso, é “barato” impor elevadas penas, especialmente de natureza pecuniária.

Isto tem sido aplicado com alguma frequência aos acusados pela Lava Jato não protegidos pelo foro privilegiado. Já os protegidos pelo privilégio permanecem impunes, passados quatro anos de Lava Jato.

A prisão depois da condenação em segunda instância, regra adotada na totalidade dos países civilizados, estimula a delação premiada, instrumento que aumenta substancialmente a eficiência do combate ao crime ao diminuir para o Estado o custo da investigação e elevar sua probabilidade de sucesso.

Enquanto a criminalidade decresceu significativamente nos países desenvolvidos nas últimas décadas, é com tristeza e preocupação que reconhecemos seu avanço no Brasil, transformando-o numa das nações mais violentas do mundo. Ao mesmo tempo, os diversos índices de percepção de corrupção nos colocam no clube dos países mais corruptos do mundo.

Os traficantes de drogas não são os únicos vilões da crise de segurança publica brasileira. Os corruptos também desempenham papel de destaque nesse ambiente criminoso, uma potente máquina de produzir pobres.

A corrupção, em particular, produz graves implicações negativas sobre as finanças publicas, a desigualdade de renda e o crescimento econômico, através do desestímulo ao investimento privado e da queda de produtividade agregada. Além disso e como sabemos, a corrupção está frequentemente associada ao florescimento do tráfico de drogas.

O momento em que vivemos exige postura pró ativa contra a criminalidade, impondo-se, por exemplo, a eliminação de privilégios, maior severidade das penalidades, construção de presídios, introdução de boas práticas de gestão, adoção de inovações tecnológicas e investimento em capital humano e equipamentos nas polícias.

O fim da prisão depois da condenação em segunda instância, como alguns pretendem, vai exatamente na contramão do que é requerido. Caracterizará gigantesco retrocesso pois significa a volta de instituto semelhante aos do século XV, quando a predominância de regimes de privilégios era a norma. Evidenciará enorme atraso de nossas instituições e seu despreparo para enfrentar os desafios do mundo moderno.

A impunidade dos detentores de privilégios incentiva o crime e nos tempos de hoje, muito distantes da Idade Média, gera na sociedade descrença na Justiça e na democracia.

Esperamos que aqueles que decidirão sobre essa importante questão reflitam profundamente sobre suas implicações.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

 


[1] Caldeira, J., “História da Riqueza do Brasil”, Rio de Janeiro, Estação Brasil, 2017.

[2] Becker, G., Crime and Punishment: an Economic Approach, Journal of Political Economy, 76(2), 1968.

[3] Levitt, S., Juvenile Crime and Punishment, Journal of Political Economy, 106(6), 1998.

Comentários

J.Norberto Freund
Silvia
Pedro Rocha

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