Cenários
Metodologia

Censo 2022: Por enquanto, use com moderação

15 set 2023

Números do Censo 2022 divergem significativamente das projeções de população anteriores do IBGE baseadas em estatísticas de registro civil, recomendando cautela no uso dos primeiros resultados. Pode ter havido subenumeração.

Recomendações sobre políticas públicas e análises econômicas com base nos resultados do Censo Populacional 2022 devem ser feitas com muita cautela, devido à significativa divergência entre as estimativas da população anteriores ao Censo e as atuais estimativas. Os números que conhecíamos até meados do ano passado vinham das Projeções da População do IBGE, baseadas principalmente nos Censos Anteriores, nos registros civis de óbitos e nascimentos e na revisão adotada pelo IBGE em 2018. Essas projeções nos diziam que a população residente em agosto do ano passado seria de 215 milhões; segundo o Censo 2022; no entanto, a população, nessa data, era de 203,1 milhões – uma diferença de quase 12 milhões de pessoas, maior do que a população de 21 das 27 das Unidades da Federação. E a julgar pelos percalços que o Instituto enfrentou, é muito provável que daqui a alguns anos descubramos que o Censo 2022 tenha sofrido uma subenumeração (a não contagem de uma parcela da população) muito acima dos padrões históricos, subenumeração que mesmo os ajustes realizados após a fase de coleta da pesquisa não tenham conseguido sanar – apesar de todos os esforços técnicos.

Os procedimentos utilizados na realização de um Censo são conhecidos: basicamente uma pesquisa presencial que visa cobrir o universo dos domicílios no caso das principais variáveis e que, a partir de uma amostra, também coleta informações complementares, como a renda. Por isso vale a pena se debruçar sobre a forma como são realizadas as Projeções de População do IBGE – que, na verdade, também trazem valores para a evolução no passado, a retroprojeção.  Esses exercícios são realizados desde 1973, com o objetivo de estimar o número de residentes nos períodos intercensitários, e são de grande importância não só para ajudar a avaliar e nortear ações governamentais e investimentos privados, mas também para o acompanhamento de conjuntura; afinal, é a partir de seus dados que se faz a expansão das pesquisas domiciliares por amostragem realizadas pelo IBGE. Ou seja, as ponderações da PNAD e da Pesquisa de Orçamentos Familiares (a partir da qual são calculados os pesos do IPCA), por exemplo, são baseadas nesses números – PNAD e IPCA que, por sua vez, fornecem os principais inputs para se medir a eficiência e eficácia da política monetária. 

As projeções de população se utilizam do Método das Componentes Demográficas, e são procedimentos sofisticados. O IBGE disponibiliza bons textos metodológicos a respeito[1], mas, em termos bastante simplificados, pode-se dizer que a ideia é, a partir dos dados coletados em Censos e Contagens da População, estabelecer uma “população de partida”, sobre a qual são aplicadas, “para a frente” e “para trás”, as variáveis demográficas fecundidade, mortalidade e migração segundo coortes,  estimadas a partir de métodos matemáticos e com o auxílio de dados extraídos de outras fontes, em especial dos Registros Civis de Pessoas Naturais (a partir daqui registros civis).

Porém, como chama a atenção o próprio IBGE no texto sobre a metodologia da Revisão 2018, a complexidade e as dificuldades operacionais típicas da realização de um Censo Demográfico tornam comum erros (não só no Brasil), como os relacionados à cobertura censitária (não inclusão de domicílios), à omissão de pessoas e à declaração de idade – e isso influencia de forma decisiva a própria estimativa das variáveis demográficas.  Por isso, o IBGE continuamente monitora dados populacionais, e quando detecta uma dinâmica muito diferente daquela prevista pelas projeções, efetua revisões que podem afetar inclusive o número original detectado pelo Censo e a evolução entre cada uma de suas edições. Nos últimos 10 anos houve duas revisões: uma em 2013 e outra em 2018.

Na Revisão de 2013, decidiu-se substituir a população de partida das últimas projeções, que era a do Censo de 1980, pela do Censo de 2000, que sofreu um ajuste. A decisão foi tomada entre outros motivos pela percepção de que o uso das projeções estava relacionado a informações do passado recente, pela melhora na qualidade dos registros civis (aumentando a confiabilidade do processo de estimação de parâmetros assim como o ajuste da população de partida) e também baseada em estudos indicando que, entre os Censos até então realizados o de 2000, teria tido a melhor cobertura, em especial no que diz respeito a crianças. 

Assim, a partir da análise da razão intercensitária de sobrevivência (que é a razão entre a população dos grupos etários em um censo e no censo anterior) e a razão de sexo (número de homens para cada 100 mulheres por grupo etário nos anos censitários) observadas e teóricas dos Censos 1990, 2000 e 2010, decidiu-se, como dito, assumir o Censo 2000 como fonte da população de partida, tendo sido realizados ajustes nos valores originais: o número inicialmente divulgado, de 171,3 milhões de pessoas referente a 2000 foi ajustado para 173,6 milhões, o de 2010 de 190,8 para 195,6 milhões de pessoas.

A Revisão de 2018 ocorreu porque a análise da série histórica de nascimentos obtida pelos registros civis indicou uma trajetória de fecundidade diferente da que tinha sido adotada na Revisão de 2013, que foi modificada, assim como foram adotadas novas hipóteses e projeções para a migração interna e imigração. Foi decidido também, após consulta à Comissão Consultiva de Estatísticas Demográficas, que a melhor opção seria adotar como fonte para a população de partida o Censo de 2010, após novo ajuste nos números originais. Nos Gráfico 1, pode-se ver a projeção e retroprojeção da população considerando os valores das duas revisões:

Pelo descrito aqui, pode-se concluir que, em qualquer situação, o primeiro resultado de um Censo deve ser visto como preliminar, em função dos contínuos esforços do IBGE em analisar e eventualmente ajustar os dados inicialmente coletados. Mas na atualidade é preciso aumentar a cautela (especialmente no que se refere aos resultados dos Estados e Municípios), em função das conhecidas dificuldades pelas quais a rodada de 2022 passou, da não realização da Contagem da População que deveria ter ocorrido em 2015 e pela diferença em relação à Revisão de 2018, cujos números foram fruto de análises técnicas profundas e guardam coerência, como será visto a seguir, com os registros civis.

As Estatísticas de Registro Civil[2] têm como fonte, no caso dos óbitos e nascimentos, as informações fornecidas pelos Cartórios de Registro Civil de Pessoas Naturais e são de suma importância para a construção de relevantes indicadores: complementam, por exemplo, as informações utilizadas pelo Ministério da Saúde para elaborar as Estatísticas Vitais e são utilizados pela Justiça Eleitoral para calcular o número de eleitores.  Como todo levantamento de dados, essas estatísticas são passívisl de omissões, e o IBGE vem realizando interessantes estudos sobre o sub-registro e subnotificação de nascimentos e óbitos[3], para fazer eventuais ajustes; no entanto as estimativas dos desvios não mudam a dinâmica sugerida pelos dados originais.

E o que diz essa dinâmica? Que a população brasileira em agosto de 2022 era 18 milhões de pessoas acima do verificado em 2012, uma variação muito superior à detectada pelo Censo 2022. O Gráfico 2 mostra a evolução dos nascimentos e óbitos no período 2011/2021.  A linha preta representa a quantidade de nascimentos ocorridos a cada ano (mesmo que registrados em anos posteriores), que permaneceram entre 2,8 e 3,0 milhões de 2011 a 2019; após o início pandemia, os nascimentos caem para valores abaixo dos 2,7 milhões. A linha azul, por sua vez, representa os óbitos ocorridos a cada ano (mesmo que registrados em anos posteriores), que apresentam uma trajetória de contínuo e leve crescimento até 2019, mas crescem muito em 2020 e 2021. A linha vermelha, por fim, é o resultado do que seria o acréscimo da população, descontados saldos líquidos da emigração/imigração; a soma dos valores da linha vermelha é de 16,3 milhões.

A relação entre esses números e aqueles propostos pela Revisão de 2018 é mostrada no Gráfico 3. O ponto de partida é o referente a 1º de agosto de 2010, considerando o valor ajustado pela revisão. Foram utilizados os registros civis para o período agosto a dezembro de 2010, e os dados preliminares das Estatísticas Vitais do Ministério da Saúde para o período janeiro a julho de 2022, já que os registros civis relativos ao ano passado ainda não estão disponíveis. Dada a metodologia, seria de se esperar a semelhança entre as duas curvas até 2017, mas vale a pena notar que a então projeção para 2018 se aproximou do que viria a ser a realidade. A partir de 2020, no entanto, a pandemia fez com que a população apresentasse um crescimento menor do que o projetado.

Isso, no entanto, não elimina as diferenças em relação ao Censo 2022, como pode ser visto no Gráfico 4. Cabe notar que, na página de divulgação do Censo de 2022 do site do IBGE[4], os resultados referentes a 2010 não são aqueles ajustados pela Revisão de 2018, mas sim os divulgados em abril de 2011 (o que aumenta a taxa de crescimento populacional entre as duas datas). Aplicando-se a mesma simulação apresentada acima sobre aquele valor, chega-se a uma população, em agosto de 2022, de 208,5 milhões, ainda assim muito acima do resultado oficial.

O que fazer diante desse quadro? Em primeiro lugar, esperar; esperar o IBGE ter tempo para analisar com mais calma os dados do próprio Censo de 2022, cotejá-los com os dados de registros oficiais e toda a metodologia de análise demográfica a fim de entender essas divergências tão grandes – sendo recomendável aguardar o relatório de demógrafos e especialistas convidados pelo Instituto para analisar os resultados preliminares, que tinha sido previsto inicialmente para junho deste ano. Não parece o momento mais adequado para sugerir mudanças em políticas públicas ou mesmo alterar cálculos que dependam da estimativa da população, como a produtividade, por exemplo.

Em segundo lugar, planejar, desde já, o próximo esforço de contagem da população, que deve ser realizada em 2025. É preciso avançar no diagnóstico dos problemas, procurar soluções para os obstáculos e, também, o que deveria parecer desnecessário, convencer as autoridades da necessidade de recursos suficientes para a empreitada: afinal, o corte de mais de R$ 1 bilhão na primeira proposta de orçamento do IBGE para a realização do Censo de 2022 foi, sem dúvida, um dos principais problemas enfrentados pela pesquisa. Há que avaliar inclusive a realização de uma contagem ampliada, com uma amostra maior do que a tradicional, mesmo que seu custo seja maior: aqui, mais do que nunca, vale a noção de que não se trata de gastos correntes, mas sim de investimento.

Por fim, uma nota. Há quem enxergue o debate sobre o resultado de uma pesquisa conduzida pelo IBGE como uma crítica à sua capacidade técnica – mas esse não é o caso deste texto. Seu autor, ao longo dos últimos anos, entrou em contato com o Instituto diversas vezes para dirimir dúvidas sobre aspectos metodológicos de diversos levantamentos estatísticos, e encontrou profissionais altamente qualificados, sérios e dedicados ao trabalho. Mas isso não significa que o IBGE não se depare eventualmente com obstáculos totalmente fora de sua responsabilidade e que podem fazer com que uma determinada pesquisa tenha que ter seus resultados discutidos com cuidado – como é o caso do Censo Populacional 2022.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 


[1] Sugere-se a leitura de: “Projeção da população do Brasil por sexo e idade 1980-2050 Revisão 2008”. Estudos e Pesquisas - Informação Demográfica e Socioeconômica número 24, “Projeções da População Brasil e Unidades da Federação”.  Série Relatórios Metodológicos volume 40 (que aborda a revisão feita em 2013) e “Projeções da População Brasil e Unidades da Federação Revisão 2018 2a edição”. Série Relatórios Metodológicos volume 40, todos disponíveis no site do IBGE.

[2] Para uma boa descrição e análise das Estatísticas do Registro Civil ver “Sistemas de Estatísticas Vitais no Brasil Avanços, perspectivas e desafios”. Estudos e Pesquisas - Informação Demográfica e Socioeconômica número 7, elaborado pelo IBGE e disponível em seu site.

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