Energia

Como evitar a insanidade nas perdas de eletricidade

5 out 2023

Na distribuição, perdas não técnicas (PNT) atingem níveis elevados, com efeitos perversos e crônicos. Solução para níveis insuportáveis de perdas combina revisão da área de concessão, tecnologia e flexibilidade na regulação.

Há temas já bastante explorados em artigos e discussões, mas que tomam dimensão tão grande que demandam repisar argumentos. Perdas de eletricidade no Brasil é um deles. Particularmente no segmento de distribuição, as chamadas perdas não técnicas (PNT) alcançam níveis elevados e produzem efeitos bastante perversos e crônicos.

Esse eufemismo (PNTs) engloba diversos conceitos: furto (ligação clandestina, desvio da rede), fraude (adulteração de medidor), erros de leitura/medição/faturamento e não pagamento – ainda que aqui a inadimplência seja tratada em separado. As PNTs transferem custos para consumidores regulares e honestos.

O tema das perdas não técnicas já recebeu vasta atenção na literatura, tanto para explicar, como para combater o problema.  Em artigo de 2004, Thomas B. Smith identifica tendência crescente em uma amostra de mais de 100 países no período de 1980 e 2000. Sua análise não é nova, mas é atual. Falhas de governança estão positivamente correlacionados com furto. A medida usada relaciona o problema com pouca accountability, baixa efetividade e elevada corrupção do governo, baixa qualidade das instituições e baixo monitoramento pelas empresas. Variáveis socioeconômicas como alta urbanização e baixa renda também contam.

Furto de eletricidade também foi estudado sob a perspectiva dos (des)incentivos a fraudar ou se engajar em ações ilícitas: se a probabilidade de ser pego é baixa, bem como os custos ou consequências, consumidores e colaboradores das companhias podem se engajar em corrupção. Aumentar o monitoramento e ajustar salários ajuda a mitigar o problema ao aumentar o custo de oportunidade de ser detectado.

O furto custa caro, e mais ainda para quem é honesto e paga as suas contas – e as dos outros. Alguns números ilustram a magnitude do quadro por aqui. Os casos mais agudos incluem Amazonas Energia e duas concessionárias que atendem à região metropolitana do Rio de Janeiro. Para a Light, o valor reconhecido a título de perdas regulatórias em 2022 (perdas técnicas, não técnicas e na Rede Básica) é de aproximadamente R$ 2,3 bilhões. Dentro desse total, R$ 1,3 bilhão, ou 57% da perda total, são PNTs.

Já em relação à Amazonas Energia (AmE), o repasse regulatório, no mesmo exercício, é da ordem de R$ 1 bilhão (correspondente a perdas técnicas, não técnicas e na Rede básica). As PNTs foram de R$ 690 milhões, quase 70%, portanto, das perdas totais. A concessionária ostenta o pouco nobre recorde de ser a única na qual as PNTs superam o volume de energia destinado ao consumo da baixa tensão.

Nos sistemas isolados (comunidades remotas não conectadas ao grid), o problema também é muito severo: a Conta Consumo de Combustíveis, que em 2022 custou R$ 6,8 bilhões de subsídios destinados ao estado do Amazonas, embute mais de 35% de perdas (dos mesmos três tipos)  Esses montantes somam prejuízos pecuniários, mas ainda não contabilizam o impacto nas emissões de gases de efeito estufa (GEE), que são grandes no Norte do país.

O reconhecimento tarifário dessas perdas nem sequer foi suficiente para garantir condições sustentáveis para a prestação dos serviços. Os valores referidos não consideram a glosa – diferença entre o que a regulação reconhece e a realidade observada – que tem que ser suportada pela companhia. No caso da Light e da AmE, a glosa superou R$ 1 bilhão em 2022. Isso ajuda a explicar os severos problemas de liquidez enfrentados.

A resposta do governo veio na forma da instituição de Grupo de Trabalho, intitulado Concessões de Distribuição dos Estados do Amazonas e do Rio de Janeiro (GT CDAR). Criado pelo Ministério de Minas e Energia em 21 de julho último, o GT tem prazo de 90 dias para apresentar propostas que garantam a sustentabilidade das concessões, algumas das quais estão prestes a vencer. Mas será que vai dar resultados?

Parafraseando Einstein, é insano fazer tudo igual e esperar resultados diferentes. Fazer tudo igual aqui é reconhecer patamares crescentes de perdas não técnicas regulatórias sem alterar governança e ambiente institucional, gestão da companhia, e continuar com as tarifas crescendo para acomodar grande parte dos pleitos que aparecem no Congresso. Não dá para simplesmente transferir aos demais consumidores a conta das dificuldades de combater perdas, como pretende a Light, em recente pedido de revisão extraordinária de tarifas. Equivaleria a taxar ainda mais consumidores regulares. Isso não é a resposta. É antes atestado da incapacidade do Estado regulador e do poder de polícia. Onde ficam os incentivos?

Fugindo da insanidade no tratamento das perdas

Livre pensando (ou nem tanto), uma solução integrada para os níveis insuportáveis de perdas combina revisão da área de concessão, tecnologia e flexibilidade na regulação. A redefinição da área requer entender a heterogeneidade da concessão e desenhar alternativas de desagregação. Diferentes subáreas poderiam ser oferecidas em um leilão simultâneo no qual competidores teriam liberdade de alcançar uma agregação adequada a seus perfis e apetites de risco. 

Outros setores e geografias já implementaram processos competitivos em que participantes se habilitaram para alcançar tais combinações. Exploram-se assim sinergias, permitindo que diferentes perfis de empresa operem negócios mais adequados a seus perfis e capacidades. Esse é o caso dos leilões de espectro de rádio frequência no Federal Communications Commission, processo pioneiro nos Estados Unidos na década de 1990. Mas não precisa ir tão longe no tempo e no espaço. No saneamento, a operação da CEDAE foi cindida em quatro blocos na distribuição e houve vencedor que levou mais de um. Algumas companhias estaduais de saneamento têm feito concessões em regime de PPP para áreas nas quais se consideram menos aptas, em face de compromissos de investimento para a universalização prevista no novo marco setorial. No segmento de petróleo, grandes companhias entram nas fases iniciais, que demandam maiores investimentos, saindo quando os campos já estão relativamente maduros e com operação mais adequada a empresas menores.

Além de criar oportunidades a entrantes, é preciso incentivar a adoção de novas tecnologias de localização e combate a fraudes, de modo diligente e contemporâneo. A literatura é farta de técnicas de modelagem para descoberta de furtos em ambientes com smart grid e métodos para detecção de perdas não técnicas. Em artigo recente, Lucas Ventura e coautores apresentam exemplo de método que permite alcançar quase 70% de sucesso na identificação de PNT em diferentes classes de consumo.

Por último, mas não menos importante, a regulação precisa explorar espaços e instrumentos de flexibilidade para soluções inovadoras, de modo que consumidores de renda mais baixa possam ser regularizados e assim permaneçam, conseguindo pagar suas contas. Em um mundo com crescente volume de informação sobre os usuários, dá para usar características observáveis para focar políticas e ações. Contribui-se assim para aumentar receitas, reduzindo consumo ineficiente e emissões de gases de efeito estufa. Isso sim é transição energética justa.

Esta coluna foi publicada originalmente em 03/10/2023, terça-feira, pelo Broadcast da Agência Estado.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva da autora, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

Comentários

Alexandre Bueno
Parabéns, Joisa, pelo excelente texto, que aborda um tema da maior importância no setor elétrico. A abordagem do tema PNT provavelmente é o maior dilema que enfrenta qualquer Regulador e, em especial, o brasileiro. Reconhecer na tarifa níveis crescentes de PNT só tem tido o efeito (perverso) de aumenta-las, além de passar um sinal extremamente ruim para a sociedade. Não reconhecer as PNT na tarifa asfixia as concessionárias e acaba por decretar a inviabilidade econômica da conceção. Se, por um lado, não se pode culpar (exclusivamente) a governança e gestão da concessão pelos níveis cres-centes de PNT em locais onde o Estado é absolutamente ausente, por outro, tem-se observado o cresci-mento das PNT nas áreas onde a com cessionária tem instrumentos e respaldo do Estado para combate-las. A simples substituição da gestão, o que poderá ser feito quando da relicitação das concessões, ou a imposição de metas de redução quando de uma eventual renovação das concessões, não traz nenhuma garantia de que haverá, de fato, redução das PNT. Afinal, seria simplista admitir que as PNT têm sido crescentes apenas como consequência de uma gestão e governança ruins. A regularização das instalações, classificando os clientes (que assim se enquadrem) como “baixa renda” é um caminho interessante, porque contabiliza a energia e explicita o problema. Mas, onde o Estado não chega, as PNT transformam-se rapidamente em inadimplência. Estamos diante de um problema complexo, que demandará uma solução complexa, multidisclinar, e que só se iniciará com a reintrodução da presença do Estado nas chamadas ASRO – Áreas com Severas Restrições Operacionais, assim definidas pelo Regulador. Qualquer coisa que venha a se tentar, fora destas premissas, tem enormes chances de fracasso. Afinal, se a solução fosse simples, certamente o problema já estaria resolvido.

Deixar Comentário

To prevent automated spam submissions leave this field empty.