Macroeconomia

Transferências de renda, taxa de participação e distribuição de renda

8 nov 2023

Esse artigo sugere que a redução na distribuição de salários e na taxa de participação da força de trabalho no Brasil foi causada pelo aumento de programas de distribuição de renda, como o Bolsa Família.

No Brasil, observou-se redução da participação da força de trabalho durante a pandemia da COVID-19, junto a queda da desigualdade salarial. A PNAD Contínua destaca novas dinâmicas do mercado, acentuadas pela pandemia e pelo aumento das transferências de renda, em especial o Bolsa Família, cujo valor foi ampliado significativamente no período. Esse estudo sugere que o aumento das transferências de renda está reduzindo a taxa de participação e comprimindo a distribuição de salários. A análise revela tais efeitos especialmente em áreas com maior concentração de serviços básicos e menor potencial produtivo.

Nos EUA, a participação na força de trabalho caiu mais de 3 pontos percentuais nos primeiros dois meses da pandemia de COVID-19 em 2020, com redução de mais de 8,2 milhões de pessoas. Embora cerca de metade dessa queda tenha sido rapidamente recuperada, a participação se estagnou em aproximadamente 1 ponto percentual abaixo do nível pré-pandemia.

Até o início de 2023, Bauer e colaboradores (2023) constataram que a força de trabalho estava cerca de 900.000 pessoas abaixo do esperado, principalmente devido a mortes relacionadas à COVID-19 e à diminuição da imigração. Parte das tensões na economia atual provavelmente deriva dessas tendências na força de trabalho. Embora o gasto agregado tenha se recuperado, o crescimento da força de trabalho não acompanhou, limitando a capacidade econômica dos EUA de atender à demanda atual.

Ao mesmo tempo, nos últimos três anos, trabalhadores de baixa renda nos EUA viram aumentos salariais significativos além da inflação, revertendo a tendência anterior que beneficiava os mais ricos. Esses ganhos resultaram de mudanças estruturais no mercado de trabalho e de políticas governamentais de apoio econômico durante a pandemia. Impulsionado pela escassez de mão de obra, os estratos mais baixos de trabalhadores tiveram aumento salarial superior a 5% entre 2020 e 2022, acima da inflação. Paralelamente, a inflação corroeu os aumentos para os trabalhadores de alta renda, resultando numa queda de cerca de 5% em seus rendimentos reais. Segundo Autor e colaboradores (2023), um quarto do crescimento do abismo salarial entre ricos e pobres ao longo de 40 anos foi reduzido em apenas alguns anos.

No Brasil, um padrão semelhante ao observado nos EUA tem sido notado, embora com cronologia distinta. O país enfrentou duas ondas significativas de redução na participação da força de trabalho durante a pandemia de COVID-19. Essas ondas, ao contrário do padrão norte-americano de queda acentuada seguida de recuperação parcial, delinearam um cenário mais complexo para o mercado de trabalho brasileiro.

Desde 2022, a distribuição de ganhos no Brasil tem se comprimido, tendência que se manteve visível em 2023. No entanto, diferentemente de outros países que têm diversos estudos relacionando as mudanças no mercado de trabalho com outros fatores econômicos e políticos, no Brasil, houve pouca análise sobre como esses eventos se correlacionam e quais suas implicações de longo prazo.

Taxa de Participação e Transferências de Renda

Fonte: PNADC.

Nesse cenário complexo, é importante explorar alguns dos fatores que afetam a oferta de trabalho. Além dos tradicionais determinantes, alternativas fora do mercado de trabalho como educação e programas de bem-estar social revelam que novas dinâmicas surgiram. Os dados da PNAD Contínua podem fornecer dados sobre como esses fatores estão interagindo em um ambiente de trabalho em rápida evolução, exacerbado pelas consequências da pandemia da COVID-19 e por políticas de transferência de renda. Especificamente, a diminuição da participação entre os trabalhadores de serviços básicos e menor renda esperada, e o impacto subsequente nos salários dessa faixa merecem um estudo aprofundado para entender totalmente suas implicações para a economia brasileira.

Referência conceitual

De acordo com Autor et al. (2023), a maior competição por trabalhadores no mercado de trabalho entre 2021-2022 foi crucial para compressão salarial após a pandemia nos Estados Unidos. Documenta-se também que o crescimento salarial entre os que permaneceram em seus empregos foi significativamente menor do que entre os que mudaram, especialmente aqueles que saíram de setores que pagavam salários baixos. Isso sugere que mudanças na concorrência, em especial através da busca de emprego e variações salariais, são essenciais para compreender como a maior concorrência por trabalhadores influencia os salários.

Adicionalmente, usando dados mensais da Pesquisa da População Atual (CPS) de janeiro de 2015 a setembro de 2022, o estudo observa que, após a pandemia, a maior competição por trabalhadores no mercado de trabalho é um forte preditor do crescimento salarial real entre trabalhadores de baixa renda e da compressão salarial agregada no período. 

É bem documentado na literatura que a redução na oferta de mão de obra pode levar a um enrijecimento do mercado de trabalho. Quando há diminuição no número de trabalhadores disponíveis, os empregadores muitas vezes encontram-se em uma posição na qual precisam competir mais intensamente para atrair e reter mão de obra. Esse cenário cria uma pressão ascendente nos salários, pois, para atrair trabalhadores em um mercado com oferta limitada, as empresas tendem a oferecer remunerações mais atraentes.

Se essa redução na oferta de mão de obra estiver concentrada principalmente entre os trabalhadores de baixa remuneração, o impacto será mais predominante nos salários do extremo inferior da distribuição. Em outras palavras, os salários dos trabalhadores de baixa renda poderão ver um aumento mais acentuado. Isso pode levar a uma compressão salarial, onde a diferença entre os salários dos trabalhadores de baixa e alta renda diminui.

Metodologia

Para compreender a estrutura salarial pré-pandemia em diferentes áreas, adotaremos um modelo de regressão OLS, levando em consideração uma série de características dos trabalhadores que são tradicionalmente relevantes para determinar os salários. Essa abordagem provém da equação minceriana, que se baseia na premissa de que o salário é influenciado por atributos individuais do trabalhador. A equação do modelo é dada por:

Em que i é o índice dos trabalhadores, e X é um vetor de k características destes. A análise incorporará educação, idade, gênero, raça, ocupação, setor de atividade, grande região, se a cidade é capital/RM/restante da UF, e se a área é urbana ou rural. A partir dos coeficientes , será estimado o salário previsto médio por área .

Dados na PNADC podem ser usados para analisar os determinantes da participação na força de trabalho em nível local. Essa abordagem envolve a coleta de dados agregados em diferentes regiões ao longo do tempo, fornecendo informações sobre o papel das condições do mercado de trabalho local, políticas regionais e fatores culturais na participação na força de trabalho. Comparar regiões com características variadas pode ajudar a identificar fatores que promovem ou dificultam a oferta de trabalho.

Os modelos de efeitos fixos podem ser usados para abordar algumas fontes de endogeneidade, controlando os fatores não observados invariantes no tempo que podem estar correlacionados com as variáveis explicativas. Ao se concentrar na variação dentro do indivíduo ou dentro da região ao longo do tempo, os modelos de efeitos fixos ajudam a isolar os efeitos causais dos determinantes da participação na força de trabalho, considerando a heterogeneidade não observada.

Desse modo, a nível local, será explorado principalmente o canal das transferências de renda relacionadas ao Bolsa Família, uma vez que, em 2023, o programa voltou a ser conhecido por esse nome e introduziu um benefício adicional de R$ 150 por criança para famílias com filhos jovens (até dois benefícios). O programa teve significativa expansão em três momentos: do final de 2021 para o início de 2022, quando o benefício mensal aumentou para um valor mínimo de R$ 400 (além de um aumento do número de famílias atendidas), na segunda metade do ano, quando este cresceu para R$ 600 e, finalmente, no início de 2023, quando foram progressivamente introduzidos os novos benefícios variáveis.

Transferências de Renda do Bolsa Família/Auxílio Brasil por Trimestre

Fonte: Ministério do Desenvolvimento Social.

Para estimar o efeito da expansão dessas transferências, será explorada a possibilidade de a PNAD Contínua Trimestral poder se subdivida entre 75 áreas geográficas, a partir de Capitais, Regiões Metropolitanas associadas a estas primeiras, e o restante das Unidades da Federação. Com isso, a partir dessas áreas, será testado o efeito local do Bolsa Família sobre a média da Taxa de Participação e do total de ocupações até o 2º trimestre de 2023. A equação abaixo demonstra a estratégia empírica aplicada.

Em que  é a área geográfica,  é o trimestre (do 4º de 2021 ao 2º de 2023), Y é a variável dependente de interesse, T é o percentual de transferências no mês central do trimestre, em proporção ao total de rendimentos do quarto trimestre de 2021 na área geográfica, X é um vetor de controles (escolaridade dos adultos, total de adultos), e, finalmente,  e  são efeitos fixos de trimestre e área geográfica.

A análise testará se os efeitos dessas transferências foram mais pronunciados em áreas com uma maior proporção de emprego em serviços básicos (Comércio, Alojamento, Alimentação, Outros Serviços e Serviços Domésticos). Essa abordagem pode oferecer insights significativos sobre como as políticas de transferência de renda podem ter impactos diferenciados dependendo do perfil sócioeconômico dessas áreas. A equação abaixo demonstra a estratégia empírica aplicada.

Em que  representa o percentual de empregos no setor de serviços básicos na área  em 2019.4. Vale notar que, em geral, salários nesses empregos são significativamente mais baixos do que nas demais ocupações da economia, como mostra o Gráfico a seguir. 

Salários Efetivamente Recebido por mês em 2019.4, por setor

Fonte: PNADC.

Adicionalmente, também será investigado o efeito dessas transferências de renda sobre os salários-hora no 25º, 50º e 75º percentiis. Isso pode fornecer informações valiosas sobre se o programa ajudou a elevar os salários em cada faixa de renda, explicando os recentes movimentos na desigualdade de salarial.  Serão também testados efeitos heterogêneos sobre essas faixas salariais a depender da composição de trabalhadores de cada área, tal como mostra a equação abaixo.

Em que  é estimado a partir da equação 1 da área de metodologia.

Resultados

A tabela apresentada dispõe de resultados de regressões. As colunas de (1) a (4) representam diferentes variáveis dependentes. 

Na coluna (1), é mostrado que um aumento de 10 pontos percentuais no aumento da proporção de transferências de renda sobre a massa de rendimentos está associado a uma diminuição de 1,1 pontos percentuais na Taxa de Participação, com um nível de significância de 1%. Nas colunas (3) e (4), mostra-se que o aumento das transferências de renda resulta em um aumento significativo sobre a taxa de ocupação e uma redução da jornada média, respectivamente. A coluna (2) mostra que o resultado não é estatisticamente significativo a um nível padrão para o nível de ocupações.

Resultados das Regressões 

Obs: Os asteriscos indicam níveis de significância estatística: * para 10%, ** para 5% e *** para 1%. Efeitos Fixos de área geográfica e trimestres implícitos.

A tabela abaixo, por sua vez, apresenta os resultados de regressões com interação relacionada à proporção pré pandemia de serviços básicos. Na coluna (1), com a Taxa de Participação como variável dependente, o coeficiente associado ao aumento de transferências é de 0,335. Mais notavelmente, a interação com o percentual de ocupações nos serviços básicos possui um coeficiente negativo de -1,253. Para a Taxa de Ocupação, alternativamente, o aumento de transferências tem um coeficiente negativo de -0,580, também significativo. Simultaneamente, a interação apresenta um coeficiente positivo de 2,014. As demais colunas, (2) e (4), apresentam resultados, mas os coeficientes relacionados às variáveis de interesse não são estatisticamente significativos nos níveis convencionais.

Resultados das Regressões com Interação

Obs: Os asteriscos indicam níveis de significância estatística: * para 10%, ** para 5% e *** para 1%. Efeitos Fixos de área geográfica e trimestres implícitos.

Esses resultados mostram que, para áreas com maior percentual de serviços básicos, o efeito negativo das transferências sobre a Taxa de Participação é mais pronunciado. Como o efeito sobre o total de empregos se mostra não significativo, a Taxa de Ocupação aumenta sobre essas áreas. Vale lembrar que, nestas regiões, não só a pandemia teve um impacto mais acentuado, mas também houve uma maior proporção de indivíduos elegíveis para um aumento nas transferências. 

Adicionalmente, é crucial destacar a estrutura salarial dessas áreas. Os salários nos setores de serviços básicos tendem a ser mais baixos em comparação com outros setores, como visto na seção de metodologia. Assim, quando ocorre um aumento nas transferências sociais, o impacto sobre os orçamentos familiares desses trabalhadores é mais significativo. Em outras palavras, um acréscimo nas transferências sociais representa uma parcela maior do rendimento total de famílias que dependem principalmente de salários do setor de serviços básicos. Isso, por sua vez, pode influenciar a decisão desses trabalhadores de participar ou não do mercado de trabalho, considerando o equilíbrio entre trabalho e benefícios recebidos.

A tabela apresenta os resultados das regressões para diferentes percentis da distribuição de salários: p(25), p(50) e p(75). Por sua vez, a variável interagida com as transferências de renda é o logaritmo da renda média prevista baseada nas características dos trabalhadores pré-COVID, como explicitado na metodologia.

Nas colunas (1) a (3), observa-se o impacto do aumento das transferências nos respectivos percentis. Nota-se um efeito significativo e positivo no 25º percentil (coluna 1), enquanto para o 50º e 75º percentis, os coeficientes não são estatisticamente significativos.

Nas colunas (4) a (6), além do efeito direto das transferências, é considerada a interação. Esta interação procura avaliar como a relação entre a parcela de transferências e os percentis da renda se altera com diferentes níveis da renda média prevista. Os resultados indicam que essa interação é negativa e significativa em todos os três percentis, sugerindo que o impacto das transferências sociais sobre a distribuição de salários é modificado pela renda média prevista das áreas.

Resultados das Regressões sobre Pontos da Distribuição Salarial com Interação

Obs: Os asteriscos indicam níveis de significância estatística: * para 10%, ** para 5% e *** para 1%. Efeitos Fixos de área geográfica e trimestres implícitos.

Os resultados apresentados na tabela indicam que o aumento das transferências sociais está comprimindo a distribuição dos salários. Ao analisar o impacto nos diferentes percentis da distribuição salarial, observa-se tendências distintas:

No 25º percentil (coluna 1), a relação é positiva e significativa, indicando que os salários no quartil inferior estão crescendo com o aumento das transferências. No entanto, nos percentis mais altos, os efeitos não são estatisticamente significativos, ainda que se observe um sinal negativo para o 75º percentil.

As colunas (4) a (6) reforçam essa narrativa. Os coeficientes negativos da interação sugerem que, em áreas com rendas médias previstas mais altas, o impacto das transferências é menor, ou mesmo oposto, em comparação com áreas de renda média prevista mais baixa.

Essa combinação de efeitos positivos no quartil inferior e efeitos neutros ou ligeiramente negativos nos quartis superiores sugere um efeito de compressão. Ou seja, o aumento das transferências sociais está reduzindo a disparidade entre os salários, trazendo os extremos da distribuição de salários mais próximos. Esse fenômeno pode ser interpretado como uma equalização salarial, em que as transferências beneficiam proporcionalmente mais os trabalhadores de baixa renda do que aqueles nos extratos de renda mais altos.

Referência bibliográfica 

Bauer, L., Edelberg, W., Estep, S., & Hershbein, B. (2023). “Who’s missing from the post-pandemic labor force?”. The Brookings Institution
Autor, D., Dube, A., & McGrew, A. (2023). “The unexpected compression: Competition at work in the low wage labor market” (No. w31010). National Bureau of Economic Research.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

Esta é a seção Em Foco do Boletim Macro IBRE de outubro/2023, que pode ser acessado aqui.

 

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