Economia Global

Zona do Euro, passado e futuro: Batalha retórica

26 jan 2024

Com atuação sóbria e decisiva do Banco Central Europeu (ECB), os juros europeus atingiram patamares historicamente elevados em 2023. Mas agora o ECB se encontra em plena batalha retórica para disciplinar a estrutura a termo.

Como foi 2023: Surpresas positivas e uma atuação estelar da autoridade monetária - A ausência de uma estagflação no início do ano recalibrou o cenário[1]. Ao final de 2022, o temor era de que a Europa iniciaria 2023 em estagflação, com forte choque negativo nos preços, principalmente em energia, e profunda desaceleração da economia. Com atuação decisiva e rápida das autoridades, nisso incluindo o Banco Central Europeu (ECB), e realizações positivas no cenário, especialmente do lado da atividade, foi possível evitar esse cenário mais disfuncional – e isso mudou totalmente o tom do debate econômico europeu para o ano.

A atividade europeia surpreendeu positivamente, especialmente na primeira metade de 2023, desacelerando ao final do ano. Chamou atenção a robustez dos serviços e do consumo doméstico, perfeitamente alinhados a um mercado de trabalho historicamente forte – e com sinais de estar operando para além do pleno-emprego[2]. O perfil da surpresa econômica gerou desequilíbrios entre os países componentes da Zona do Euro, priorizando aquelas economias com maior proporção de serviços – tipicamente os países periféricos, notadamente os mediterrâneos. As economias mais industrializadas, com destaque para a Alemanha, sofreram em cenário de redução da demanda (global) por bens e de aumento dos custos de produção. Há elevada probabilidade de recessão técnica ao final de 2023, criando um cenário mais negativo para 2024.

A inflação deu sinais de desaceleração mais contundente ao final de 2023, mas ainda se encontra em patamar elevado. No decorrer do ano, os vetores inflacionários foram se deslocando na direção dos serviços, em movimento perfeitamente alinhado à excessiva robustez do mercado de trabalho. Com base comparativa favorável nos preços de energia, a inflação ao consumidor encerrou 2023 em 2,9%; muito abaixo do 9,2% do final de 2022, mas ainda longe da meta de 2,0%. Os sinais de persistência inflacionária são preocupantes, com inflação subjacente encerrando 2023 em 3,4% (vs. 5,2% em 2022), e indicações de que começa um repasse da inflação passada aos salários das principais economias da Zona do Euro.

Nesse cenário de redução gradual do crescimento e da inflação, o ECB elevou as taxas de juros aos patamares mais elevados da história da moeda comum. A atuação da autoridade monetária europeia foi decisiva a partir de meados de 2022, com um ciclo rápido e intenso de ajuste que levou as taxas referenciais de juros a 4,00%a.a. (remuneração de depósitos), 4,50%a.a. (refinanciamento) e 4,75%a.a. (concessão de empréstimos). Tais patamares foram atingidos na reunião do ECB de setembro, e, desde então, passou-se a defender a manutenção das taxas de juros neste patamar, pelo tempo necessário para que ocorra uma consistente convergência da inflação à meta de 2,0% no médio prazo.

O ajuste monetário foi além das taxas de juros. Com o avanço do ajuste monetário e a redução da necessidade de regimes de exceção, criados após a pandemia para promover a transmissão da política monetária, há um progressivo desmonte dos programas de afrouxamento quantitativo e das salvaguardas desenhadas para garantir o bom funcionamento dos mercados europeus. O ajuste das condições monetárias é mais profundo do que o sugerido somente pela elevação das taxas referenciais de juros.

A comunicação foi central para reforçar a mensagem de “juros no platô, pelo tempo necessário”, e o ECB transmitiu essa sinalização ao mercado com maestria[3]. Houve evidente pressão para um início rápido dos cortes de juros, com maior sensibilidade do mercado a movimentos nos dados (de atividade e de inflação) e tentativas de comparação com as estratégias monetárias de outras economias, destacadamente a americana. O ECB se mostrou cauteloso, prudente e consistente, reforçando as particularidades do caso europeu e a necessidade de construir um caminho próprio. A estratégia de comunicação monetária do ECB (englobando os comunicados das decisões; os discursos da Presidente Christine Lagarde e dos diretores, e a produção técnica do staff do ECB) tem sido marcada pelo uníssono e pela clareza da mensagem transmitida ao mercado.

O que esperamos de 2024: Corte prudente das taxas de juros, a partir de meados do ano

Sinais da virada do ano indicam desaceleração mais intensa da atividade. Não se vislumbra uma recessão, mas seria uma grande surpresa se a economia europeia não perdesse vigor durante este ano. As taxas de juros estão em terreno restritivo e há transmissão monetária, perceptível principalmente nos indicadores qualitativos e naqueles mais ligados à demanda. São abundantes os sinais de redução do ímpeto econômico, com notória exceção dos indicadores de mercado de trabalho. O seu comportamento segue como fonte de preocupação para a dinâmica inflacionária, com evidência de contaminação dos dissídios salariais em inúmeros países da Zona do Euro, ainda que traga mais sustentação para o comportamento da atividade no curto prazo.

Também há redução da inflação, mas o processo é gradual e tende a ser não-linear. Salvo novos choques positivos, a base comparativa favorável dos preços de energia acabará ainda no 1º trimestre do ano, mudando a cara da desinflação observada na inflação ao consumidor. A desaceleração das métricas subjacentes continuará sendo mais difícil, com peso mais relevante dos serviços e da pressão salarial. É necessário ter mais informações a respeito dos indicadores de preços no mercado de trabalho, além da forma como eles se relacionam à dinâmica inflacionária da Zona do Euro.

Esperamos que o ciclo de cortes de juros comece em meados de 2024, e seja implementado de forma bastante gradual. O cenário continua repleto de incertezas, e a transmissão da restrição monetária ainda precisa ter mais efeitos sobre a atividade, notadamente o mercado de trabalho, para que se tenha confiança no processo de desinflação tempestivo – ou seja, inflação projetada atingindo a meta no horizonte relevante para a política monetária. Todos os olhos se voltam para os dados do mercado de trabalho e para eventuais efeitos de um recrudescimento da situação geopolítica, tanto no Oriente Médio como na Ucrânia, que podem impactar o timing da flexibilização monetária.

A sinalização do ECB continua sendo exemplar, mas o caminho prospectivo é tortuoso. A presidente Lagarde afirmou, em janeiro de 2024, que o ciclo de afrouxamento monetário deve começar no verão europeu, dando ainda mais peso ao nosso cenário-base, acima descrito. Lagarde ressaltou que, quanto mais o mercado antecipar os cortes de juros, mais difícil será o trabalho da autoridade monetária – forçando, dessa forma, a manutenção dos juros no platô por ainda mais tempo. O ECB está em plena batalha retórica para disciplinar a precificação da estrutura a termo, e, ao menos por enquanto, tem tido sucesso nas suas iniciativas.

Com juros americanos provavelmente caindo antes dos juros europeus, o Euro tende a se fortalecer – e isso pode mudar o cenário prospectivo. A despeito do cenário econômico sugerir que os juros europeus deveriam cair antes dos americanos (se avaliado o desempenho recente, e esperado, para a dupla atividade e inflação), é senso comum que a flexibilização monetária americana será antecipada. Com isso, é provável que ocorra um enfraquecimento do Dólar frente ao Euro, fato que pode atrapalhar a retomada da demanda externa, explícita no cenário oficial europeu, a partir do final de 2024. Esse reequilíbrio dos vetores de demanda pode modificar o cenário prospectivo, afetando o plano de voo do ECB.

Há evidente preocupação com a provável eleição de Trump nos Estados Unidos, ao final do ano. Diversos gestores públicos europeus têm expressado preocupação com as potenciais implicações de uma vitória de Trump nas eleições presidenciais americanas. Os debates giram em torno de mudanças na posição dos EUA (em última instância, da OTAN) frente à Rússia, modificando a dinâmica da guerra na Ucrânia – tema geopolítico central para os europeus. Um aumento da animosidade com a China e uma postura mais direta de apoio a Israel no Oriente Médio, com eventual escalada com o Irã, também entram no rol de fatores de risco a ser observados nos próximos meses.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.


[1] Este artigo é parte de Destaque BRCG | Cenário 2024 | Passado e futuro: Temperatura em elevação. Disponível em https://brcg.com.br/destaque-brcg/

[2] A taxa de desemprego provavelmente encerrará 2023 abaixo de 6,5%, sendo a mais baixa, para a Zona do Euro, desde que a moeda única foi constituída.

[3] Destaque BRCG | Banco Central Europeu (ECB): A visão depois da última reunião. Disponível em https://brcg.com.br/destaque-brcg/

Deixar Comentário

To prevent automated spam submissions leave this field empty.