E a contração fiscal é ... contracionista!
O debate sobre a hipótese da “contração fiscal expansionista” gerou mais calor do que luz nos últimos 20 anos.
Apresentada inicialmente por Alesina e Ardagna (1998), essa proposição estabelece que um ajuste fiscal pode ser expansionista se os impactos negativos das medidas adotadas sobre a demanda pública forem mais do que compensados pelo impacto positivo da melhora das expectativas e da queda da taxa de juro sobre a demanda privada.
Como qualquer hipótese teórica, a contração fiscal expansionista pode ou não se verificar na prática. Após quase 20 anos de estudos, o veredito é altamente desfavorável à tal ideia (Islam and Chowdhury 2012). Na maioria dos casos estudados a contração fiscal foi ... adivinhe ... contracionista!
A pouca aderência empírica da contração fiscal expansionista à realidade levou seus autores originais a revisar essa proposição, criando algumas viúvas nesse processo.
Mais especificamente, em um texto deste ano, Alesina et all (2017) analisaram 181 planos de ajuste fiscal e concluíram que a contração fiscal é normalmente contracionista no curto prazo (mas não conte isso aos nossos neoliberais de jardim de infância).
Como prêmio de consolação para quem que se opõe ideologicamente a qualquer aumento do tamanho do Estado, o último estudo de Alesina também trouxe outra hipótese para o debate: sim, ajustes fiscais são contracionistas, mas planos de ajuste baseados em aumento de impostos são mais contracionistas do que planos baseados em corte de gastos.
Assim como aconteceu com a hipótese da contração fiscal expansionista, a nova hipótese de Alesina e cia. ainda será objeto de análise e testes por parte da comunidade acadêmica, uma vez que ela contraria vários outros estudos sobre o mesmo tema.
Por exemplo, no seu último Panorama da Economia Mundial (FMI 2017), a equipe do FMI recalculou os multiplicadores da política fiscal e concluiu exatamente o oposto de Alesina: variações de gasto têm um impacto maior sobre a renda do que variações equivalentes de impostos.
Os resultados do FMI estão em linha com a maioria dos estudos sobre o tema, desde Haavelmo (1945) até Blanchard e Leigh (2012), onde geralmente se concluiu que variações de gasto têm um impacto maior sobre a renda do que variações equivalentes de impostos.
Quem ganhará o debate na “casa dos economistas”? Alesina ou Blanchard? Alesina ou o FMI? Como em qualquer questão empírica, a resposta depende do período e do país em análise, bem como da metodologia adotada. Dificilmente há proposições gerais em economia aplicada, sobretudo em política fiscal.
Do ponto de vista metodológico, creio que novos estudos sobre o tema indicarão aquilo que quem trabalha com finanças públicas já sabe há muito tempo: o efeito de ajustes fiscais depende das condições iniciais da economia.
As mesmas medidas fiscais podem ter impactos diferenciados se o país está em recessão ou expansão, se há expansão ou contração internacional, se a inflação está caindo ou subindo, se a taxa de juro está alta ou baixa e assim por diante.
Independentemente da conclusão a que se chegue na casa dos economistas, acho importante esclarecer o significado da nova hipótese de Alesina, pois alguns analistas utilizaram tal proposição para defender que o ajuste fiscal brasileiro deve ser feito totalmente do lado da despesa.
O que diz o último estudo de Alesina e cia. sobre a composição do ajuste fiscal? A análise inclui 181 planos fiscais, classificando cada “pacote” em três categorias:
(1) baseados em aumento de receita,
(2) baseados em redução de despesa final (consumo e investimento) e
(3) baseados em redução de transferências de renda.
Alesina e seus coautores adotaram uma abordagem “narrativa” de política fiscal, isto é, eles construíram um conjunto de dados com base nos planos anunciados pelas autoridades, não nas medidas efetivamente implementadas.
Essa abordagem é a melhor forma de medir o impacto de anúncios fiscais sobre as expectativas de mercado e de separar o que é novo do que já era esperado. Os autores fizeram um trabalho minucioso (torturante?) de classificação de cada ação fiscal, anunciada em 18 países da OCDE, de 1981 a 2014 (mais de 3500 medidas no total).
O estudo de Alesina e cia. também contém um exercício teórico baseado em um modelo dinâmico estocástico de equilíbrio geral (DSGE), mas não vou analisar esta parte texto por que Paul Romer (2016) já apontou os problemas (graves) deste tipo de metodologia.
Focando no que é mais relevante, apesar de dividir os ajustes fiscais em três categorias, a maioria dos planos fiscais analisados por Alesina e seus coautores inclui medidas de aumento de receita. Em outras palavras, mesmo os ajustes classificados como “baseados em corte de despesa” continham medidas de aumento de impostos! A tabela 1 abaixo apresenta um resumo da base de dados, que está disponível online.
Tabela 1: composição média dos planos de ajustes fiscal na OCDE, 1981-2014, números em % do PIB do ano anterior ao plano
Tipo de plano |
Número de planos |
Valor total do Plano |
Medidas de aumento de impostos |
Medidas de corte de gastos finais |
Medidas de corte de transferências |
Medidas sem classificação única |
Baseado em aumento de impostos |
74 |
1,56 |
1,01 |
0,25 |
0,17 |
0,13 |
Baseado em corte de gastos finais |
46 |
1,45 |
0,23 |
0,83 |
0,22 |
0,17 |
Baseado em corte de transferências |
61 |
1,69 |
0,41 |
0,33 |
0,71 |
0,24 |
Em média, o ajuste fiscal anunciado foi de 1,56% do PIB em planos de “aumento de impostos”, 1,45% do PIB em planos de “corte de gastos finais” e 1,69% do PIB em planos de “corte de transferências”.
Mais importante, mesmo os planos de aumento de impostos contaram com medidas de corte de gastos e mesmo planos de corte de gastos contaram com medidas de aumento de impostos.
Quanto? Segundo a tabela 1, nos planos de “cortes de gastos finais” houve medidas de aumento de receita equivalentes a 0,23% do PIB. Já nos planos de “corte de transferências”, houve medidas de aumento de receita equivalentes a 0,41% do PIB.
A melhor forma de analisar a composição dos planos fiscais estudados por Alesina é expressar o peso de cada medida em proporção do ajuste total proposto. A tabela 2 faz exatamente isso e indica que, mesmo nos planos classificados como “corte de despesa”, aproximadamente 20% do ajuste total anunciado consistia de medidas de aumento de receita.
Tabela 1: composição média dos planos de ajustes fiscal na OCDE, 1981-2014, números em % do ajuste fiscal total proposto
Tipo de plano |
Número de planos |
Medidas de aumento de impostos |
Medidas de corte de gastos finais |
Medidas de corte de transferências |
Medidas sem classificação única |
Baseado em aumento de impostos |
74 |
65% |
16% |
11% |
8% |
Baseado em corte de gastos finais |
46 |
16% |
57% |
15% |
12% |
Baseado em corte de transferências |
61 |
24% |
20% |
42% |
14% |
Passando para o caso Brasil e assumindo que precisamos elevar o resultado primário do governo em 5 pontos percentuais do PIB para estabilizar o endividamento público, o novo estudo de Alesina e sua turma indica que mesmo um típico “ajuste fiscal baseado em corte de despesa” incluiu cerca de 1 pp do PIB de aumento de receita na OCDE.
Em termos das projeções para 2018, 1% do PIB corresponde a aproximadamente R$ 70 bilhões em novas medidas de aumento de impostos, quase duas CPMFs, mas não conte isso para ... você sabe quem.
Por fim, cabe ressaltar que o fato da contração fiscal ser contracionista no curto prazo não significa que ela deve ser evitada. Assim como é necessário subir a taxa de juros quando a inflação sobe acima da meta, mesmo que isso tenha impactos recessivos, é necessário fazer ajuste fiscal quando a dívida pública apresenta um crescimento explosivo.
A questão principal do debate não é se o ajuste fiscal é contracionista ou expansionista no curto prazo. Já se perdeu muito tempo com essa curiosidade teórica. A contração fiscal é normalmente contracionista e ainda assim ela deve ser feita quando há um desequilíbrio fiscal que compromete a estabilidade e o crescimento da economia.
A questão principal é como fazer o ajuste fiscal quando ele é necessário. Qual deve ser a velocidade do ajuste e, mais importante, qual deve ser sua composição em termos de aumento de impostos e corte de receitas.
Tenho reiterado que a magnitude do ajuste fiscal a ser feito no Brasil requer medidas de aumento de receita, em conjunto com medidas de redução de despesa. Não é possível fazer todo o ajuste do lado da despesa, como vociferam alguns radicais de direita, tampouco é possível fazer todo o ajuste do lado da receita, como pregam alguns voluntaristas de esquerda.
Se nossa história e a experiência internacional servem de guia, a melhor estratégia é combinar as duas coisas para atenuar o impacto recessivo do ajuste fiscal e, ao mesmo, distribuir o custo social das medidas de modo mais justo.
Nesse sentido, ao indicar que, mesmo em planos fiscais “baseados em corte de despesas”, 20% do ajuste vêm de aumento de impostos, o último estudo de Alesina e cia. veio a fortalecer a necessidade de reavaliar o atual plano fiscal do governo brasileiro, que consiste basicamente de corte de gastos, em termos per capita, por pelo menos dez anos.
Referências:
Alesina, A. Barbiero, O. Favero, O., Giavazzi, F. and Paradisi, M. (2017). “The Effects of Fiscal Consolidations: Theory and Evidence”, NBER Working Paper No. 23385.
Alesina, Alberto and Ardagna, Silvia (1998) ‘Tales of Fiscal Adjustment’, Economic Policy, October, pp.498-545.
Blanchard, O. and Leigh. D. (2013), “Growth Forecast Errors and Fiscal Multipliers”, NBER Working Paper No. 18779.
FMI (2017), World Economic Outloook: October 2017, Chapter 4. FMI: Washington DC.
Haavelmo, T. (1945), Multiplier Effects of a Balanced Budget, Econometrica, vol. 13, pp. 311-18.
Islam, I. e Chowdhury A. (2012). Revisiting the evidence on expansionary fiscal austerity: Alesina’s hour?
Romer, P (2016), “The Trouble with Macroeconomics”, disponível em: https://paulromer.net/the-trouble-with-macro/.
Comentários
Deixar Comentário