Macroeconomia

Governos se tornaram gestores de riscos coletivos

20 abr 2020

O papel do governo em uma sociedade é um dos debates mais passionais que existe. Nas posições mais construtivas temos um espectro que varia (i) entre posições liberais e que aceitam intervenções pontuais em mercados que funcionam mal e (ii) posições mais intervencionistas que enxergam no Estado um promotor de desenvolvimento em graus variados. A política funciona como um espaço de negociação entre visões que podem ser conciliadas, mas que muitas vezes se tornam combativamente antagônicas.

Nos últimos anos, a agenda pendeu para o lado mais liberal. Nesse período, várias reformas foram aprovadas: previdência, regras fiscais, relações federativas, mercados de crédito e laboral, redução da atividade estatal na produção, dentre outros. Há frustração de expectativas e de resultados, pois se esperava mais avanços em outros temas como nas privatizações e porque a economia não reagiu da maneira esperada em termos de geração de empregos e crescimento econômico. Ao mesmo tempo, se algumas das últimas propostas tivessem sido aprovadas teríamos limitado a capacidade de reação do país à crise porque várias ações adotadas estariam vedadas.

Com o advento da crise e a necessidade de resposta estatal nos mais variados temas, há grande incerteza sobre quais deverão ser as prioridades do país. Isso é inevitável porque a crise exacerba o papel do Estado como um administrador de riscos coletivos. Na verdade, é difícil pensar o funcionamento de uma economia sem ressaltar a atuação estatal nesses termos como, por exemplo, a importância de um sistema universal de saúde sem o qual uma grande parte da população correria riscos enormes por não ter atendimento apropriado.

Mecanismos de proteção de renda como o FGTS, que se tornaram muito impopulares nos últimos tempos, mostram enorme importância para proteger os trabalhadores quando há perda expressiva de renda. O desafio é remunerar de forma adequada esses recursos e avançar de forma mais organizada para atender os trabalhadores informais, um grupo da sociedade tradicionalmente mais vulnerável. O programa emergencial de renda que pagará R$ 600 por três meses é uma prova de que é factível fazer algo nessa linha.

Existem várias outras áreas que essa forma de intervenção estatal se mostra relevante como na redução de riscos privados no mercado de crédito por meio dos bancos públicos ou a partir de fundos garantidores de crédito que distribuem riscos que às vezes se tornam elevados para o setor privado administrar sozinho. A ampliação da atuação do Banco Central como gestor de risco de iliquidez para o funcionamento adequado dos mercados financeiros possui papel importante no combate às recessões. A exclusão financeira mostra como a ausência no mercado de crédito impede o crescimento e a sobrevivência das pequenas empresas.

Várias reformas podem ser pensadas a partir da experiência atual e a maior valoração dessas políticas deve elevar a disposição da sociedade em financiá-las abrindo novas opções para o debate de política fiscal. É razoável, portanto, que ocorra ampliação do sistema de saúde pública e da proteção social que pode culminar com um programa de reposição de renda mais abrangente e com um debate mais profundo sobre a melhor forma de financiamento do Estado.

Muitas das reformas que eram discutidas possuem mérito, mas é provável que a crise altere a reflexão sobre esses assuntos. A reforma tributária que onerava o setor de serviços deve ser reformulada, pois não deve haver espaço político para elevar a tributação do setor mais atingido pela crise. A PEC da emergência fiscal deveria ao menos contemplar exceções para sua aplicação. Será necessário que Governo e Congresso se entendam para construir propostas com base nos novos pressupostos.

A cooperação federativa tem sido desastrosa. Estados e municípios (E/M) sofrem com a perda de recursos, mas ao mesmo tempo promovem várias políticas causando grande sobreposição com as ações federais mais recentes e elevando o custo fiscal da crise. Com isso, ocorrem pressões para transferências vultosas das mais variadas formas.

A gestão de riscos mais adequada, nesse caso, é que E/M cuidem do funcionamento das cidades e do atendimento à saúde das pessoas. Ao governo federal cabe gerenciar as questões macro como administrar a crise de liquidez de famílias e empresas. Para isso, o governo deve resolver a insuficiência de crédito do país reorganizando o sistema e apoiar as finanças subnacionais, o que em minhas estimativas significa transferir R$ 45 bilhões. Essas ações devem ser viabilizadas na forma de transferências diretas de recursos. Não há sentido em endividar os entes federados nessa crise para, em pouco tempo, renegociar tudo novamente como já é previsível que ocorra. É necessário ampliar os gastos públicos, mas não é desejável perder a racionalidade, pois como gestor de riscos coletivos, o governo também tem que sair da crise bem.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

Este artigo foi originalmente publicado pelo Broadcast da Agência Estado em 15/04/2020.

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Jorge Marcos Barros

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