Macroeconomia

O desempenho surpreendente do mercado de trabalho durante a pandemia

3 abr 2023

Uma parcela significativa do desempenho surpreendente do mercado de trabalho durante a pandemia parece ter decorrido de fatores transitórios. Uma melhora permanente dependerá de políticas de qualificação e reformas econômicas. 

A pandemia de Covid-19 teve um impacto profundo no mercado de trabalho. Em 2020, houve uma queda sem precedentes da população ocupada e da população economicamente ativa em muitos países. Foram afetados principalmente os trabalhadores com baixa escolaridade e menor proteção social, que estão mais concentrados em serviços presenciais.

Naquele momento inicial da crise sanitária alguns pesquisadores importantes manifestaram a preocupação de que a pandemia poderia agravar de forma permanente a situação dos trabalhadores mais vulneráveis.

Em um artigo divulgado em julho de 2020 (“The Nature of Work after the COVID Crisis: Too Few Low-Wage Jobs”), David Autor e Elisabeth Reynolds analisaram esta questão. Como o título sugere, a previsão dos autores era que a pandemia resultaria em queda permanente da demanda por trabalhadores com menor escolaridade e baixos salários, por diversas razões.

A primeira era que a necessidade de distanciamento social decorrente da pandemia acelerou de forma extraordinária a adoção de modalidades de trabalho remoto, que provavelmente continuaram a ser adotadas (embora em menor escala) no pós-pandemia.

Em função disso, trabalhadores de menor qualificação ocupados em serviços com baixo potencial de trabalho remoto, como hospedagem e alimentação, seriam negativamente afetados pela queda de demanda decorrente da realocação de parte da atividade produtiva de escritórios para residências.

Além da queda da demanda por seus serviços, os trabalhadores com menor nível de escolaridade provavelmente seriam afetados por uma aceleração do processo de automação, na medida em que as empresas tentariam se precaver dos efeitos de novas crises sanitárias sobre a oferta de trabalho, substituindo trabalhadores por máquinas.

No entanto, um estudo recente de David Autor e coautores para os Estados Unidos (“The Unexpected Compression: Competition at Work in the Low Wage Labor Market”) mostra que, após o choque inicial da pandemia, houve um grande aumento da demanda por trabalhadores menos qualificados, que resultou em elevação significativa do salário dos trabalhadores com ensino médio em relação aos que possuem ensino superior completo. Trabalhadores mais jovens também tiveram ganhos significativos em relação aos mais experientes.

Em consequência, entre 2020 e 2022 ocorreu uma reversão extraordinária de cerca de 25% da desigualdade salarial acumulada nas últimas quatro décadas. Além disso, apesar da inflação elevada, os trabalhadores mais jovens e com ensino médio tiveram ganhos reais de salários, enquanto trabalhadores com maior experiência e ensino superior tiveram perda real.

O que explica essa surpreendente compressão salarial nos Estados Unidos? Segundo os autores, a combinação de uma rápida recuperação da economia americana com uma retomada mais lenta da oferta de trabalho resultou em forte excesso de demanda por trabalhadores, o que aumentou a competição e favoreceu principalmente os trabalhadores de baixos salários, que são mais afetados pelo poder de mercado das empresas.

No Brasil, o mercado de trabalho também teve um desempenho surpreendente, com forte queda do desemprego desde 2021, e atingindo no final do ano passado uma taxa de 7,9%, não somente abaixo do patamar pré-pandemia, mas também das estimativas usuais da taxa natural de desemprego (em torno de 10%).

Em texto na edição de março do Boletim Macro do FGV IBRE, Daniel Duque apresenta evidências de que também houve uma redução da desigualdade salarial. Em particular, entre o quarto trimestre de 2019 e o quarto trimestre de 2022, o grau de desigualdade de salários (medido pelo coeficiente de Gini) caiu 1,2 ponto percentual (queda de 2,4%). Além disso, os salários subiram mais em setores com proporção mais alta de trabalhadores com menor nível de qualificação (até ensino médio incompleto).

Uma questão que se coloca é em que medida esse desempenho surpreendente do mercado de trabalho reflete fatores conjunturais associados à pandemia ou mudanças de natureza estrutural.

Um fator que parece ter contribuído tanto para a queda da taxa de desemprego como para o crescimento relativo dos baixos salários foi o fato de que, apesar de uma elevação após a forte queda em 2020, a taxa de participação na força de trabalho no Brasil e Estados Unidos ainda não se recuperou plenamente. Caso a taxa de participação volte ao patamar pré-pandemia, pelo menos parte desse bom desempenho poderá ser revertida.

Além disso, tanto a economia americana como a brasileira encontram-se em desaceleração devido à retirada dos estímulos monetários e fiscais adotados durante a pandemia e ao combate dos seus efeitos inflacionários, o que tende a aumentar o desemprego e a desigualdade salarial.

Finalmente, os desafios de natureza mais estrutural colocados pelo aumento do trabalho remoto e da automação apontados por Autor e Reynolds continuam válidos e podem dificultar a geração de empregos com boa remuneração e proteção social nos próximos anos.

Em resumo, uma parcela significativa do desempenho surpreendente do mercado de trabalho durante a pandemia parece ter decorrido de fatores transitórios. Uma melhoria permanente dependerá de políticas de qualificação da mão de obra e reformas capazes de gerar crescimento econômico sustentado.


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

Este artigo foi originalmente publicado pelo Broadcast da Agência Estado em 31/03/2023.

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