Macroeconomia

Um enigma nos dados de pobreza infantil

4 ago 2020

Em texto anterior, no qual tratamos de pobreza infantil, uma evidência chamou a nossa atenção: de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), conduzida pelo IBGE, ¾ (76,2%) das crianças[1] que vivem em famílias com rendimentos inferiores a R$ 89 per capita[2] pertencem a famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família. Esse fato nos causou estranheza, porque o programa dispõe de instrumentos para garantir que nenhuma família beneficiária do Programa tenha um rendimento inferior a esse patamar. Considerando a surpresa que tivemos com essa informação, resolvemos fazer um novo artigo, discutindo-a em detalhes.

O Programa Bolsa Família é composto por quatro benefícios: benefício básico, benefício variável, benefício variável jovem e benefício de superação da extrema pobreza. O benefício de superação da extrema pobreza é calculado de forma a garantir que, após a renda declarada no Cadastro Único e o valor pago pelos demais benefícios, a família tenha renda estritamente superior a R$ 89 per capita.

Na prática, funciona assim. Considere um perfil familiar bastante comum no Bolsa Família: uma mãe e duas crianças (uma de 10 e outra de 16 anos). Se essa família possuir rendimento domiciliar total de R$ 78 reais, ela terá renda per capita de R$ 26 por mês. Como a renda per capita de R$ 26 por mês está abaixo de R$ 89 mensais, essa família será considerada extremamente pobre e elegível ao Bolsa Família. Ao ingressar no Programa, essa família receberá um benefício básico, de R$ 89, um benefício variável referente à criança de 10 anos, de R$ 41, e um benefício variável jovem, de R$ 48, referente ao adolescente de 16 anos. Esses três benefícios, somados à renda que a família tem independentemente do Programa, conferirão a ela uma renda total de R$ 256, ou R$ 85,33 per capita. Como esse valor ainda é inferior à linha de extrema pobreza do Programa (R$ 89 per capita), a família também receberá um benefício de superação da extrema pobreza, no valor necessário para que a renda familiar, após o cálculo dos demais benefícios, seja superior a R$ 89 per capita. No caso, R$ 12[3]. Portanto, após receber todos os benefícios do Bolsa Família, a renda familiar atinge R$ 268, ou R$ 89,33 per capita.

Percebe-se que esse desenho deveria ser suficiente para que todas as crianças cujas famílias sejam beneficiárias do Programa Bolsa Família vivessem com mais de R$ 89 per capita. Aliás, essa era a expectativa quando, em 2012, no âmbito do Brasil Carinhoso, foram introduzidas alterações no Programa Bolsa Família com objetivo de reduzir a pobreza infantil. Na ocasião, análises também baseadas na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do IBGE, indicavam que o Programa Bolsa Família havia reduzido a taxa de pobreza extrema da população de zero a 15 anos de 9,7 para 5,9%, e que a implantação do Brasil Carinhoso poderia levar essa taxa a patamares residuais, próximos a 0,6% (Osório e Souza, 2012). Contudo, oito anos depois do Brasil Carinhoso, vemos que 76,2% das crianças em famílias com renda inferior a R$ 89 per capita são beneficiárias do Programa. Por que essas famílias não estão recebendo um valor maior de benefício? A dificuldade em reduzir essa taxa de pobreza mostra que existe algo entre o desenho e a operação da política de transferência de renda que tem impedido a concretização desse potencial.

Não estamos discutindo uma dificuldade de identificação ou localização dessas crianças. Elas já são conhecidas pelo Estado brasileiro, porque sabemos que o Cadastro Único já chegou até elas: como são famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família, essas famílias estão, necessariamente, cadastradas no Cadastro Único. Também não estamos discutindo a defasagem das linhas de pobreza extrema no Brasil, porque estamos usando a própria linha de pobreza extrema do Programa Bolsa Família. Estamos discutindo uma realidade apresentada pela PNAD Contínua que, ao que tudo indica, é diferente daquela apresentada pelo Cadastro Único. Precisamos ter muita cautela antes de tirar conclusões dessa informação, porque é fácil se precipitar num debate complexo como esse.

É possível que haja imprecisões na captação da pobreza infantil pela PNAD Contínua: a pesquisa não é desenhada para fornecer esse tipo de estatística, ainda mais com esse nível de desagregação, embora seja bastante comum usá-la para essa finalidade.

É possível também que a renda que foi declarada no Cadastro Único esteja desatualizada, e seja superior à renda corrente das famílias: estudos recentes mostraram uma queda significativa no rendimento das famílias mais pobres ao longo dos últimos anos, o que sugere que dados de rendimento desatualizados podem levar a dados de renda superestimados.

É possível, ainda, que a quantidade de membros da família declarada no Cadastro Único esteja desatualizada, o que seria mais comum quando uma criança nova acaba de nascer na família, já que leva um tempo entre o nascimento da criança e a atualização do número de membros do Cadastro Único.

Essas são hipóteses plausíveis, visto que a atualização do Cadastro tende a ocorrer a cada dois anos[4]. Embora esses casos sejam os mais prováveis, não descartamos a possibilidade de haver algum problema com a declaração da quantidade de membros e de rendimento das famílias também em outras situações.

A lista de explicações para o paradoxo, apresentada nos parágrafos anteriores, certamente não é exaustiva. Ainda assim, essa miríade de possibilidades é tão diversa que indica que, antes de qualquer recomendação acerca da focalização de novos programas de transferências de renda em crianças, é preciso explicar o enigma: por que famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família continuam extremamente pobres mesmo após receber o Programa? Ao que tudo indica, não será possível reverter essa situação sem compreender melhor os eventuais problemas de cadastramento que podem estar gerando este resultado. A não ser, é claro, que a nossa lente para a análise dos dados de pobreza infantil seja mais imperfeita do que gostaríamos de admitir. Se a lente for boa, temos mais dificuldades do que imaginávamos na implementação eficaz da transferência de renda voltada a crianças.

É importante salientar que reconhecemos que o Programa Bolsa Família é um instrumento importantíssimo para a redução da pobreza extrema, e que o Cadastro Único é uma das experiências mais exitosas de focalização das políticas sociais, como evidenciado pelos relatórios globais do Banco Mundial sobre as redes de proteção social no mundo (Banco Mundial, 2015 e 2018).

É inegável que o Programa retirou milhões de crianças da pobreza extrema: das crianças beneficiárias do Programa, 84,5% têm rendimento acima de R$ 89 per capita. Contudo, ainda que os resultados agregados do Programa sejam positivos, talvez eles possam se tornar ainda melhores, ao identificarmos se realmente 15,5% das crianças em famílias beneficiárias do Programa estão em famílias com rendimento menor do que R$ 89 per capita, ou, alternativamente, se precisamos rever a maneira como fazemos nossas análises acerca da incidência de pobreza entre as crianças brasileiras.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva dos autores, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

Referências:

Banco Mundial. The State of Social Safety Nets 2015. Washington, DC: World Bank (2015).

Banco Mundial. The State of Social Safety Nets 2018. Washington, DC: World Bank (2018).

OSORIO, Rafael Guerreiro; SOUZA, Pedro H G. O Bolsa Família depois do Brasil carinhoso: uma análise do potencial de redução da pobreza extrema. Brasília: IPEA, Nota Técnica nº 14. 2012.


[1] Até 14 anos de idade (inclui 14 anos).

[2] 6,5% das crianças de até 14 anos estão nessa condição.

[3] O valor do benefício é calculado pela seguinte expressão: (R$ 89,01 – R$ 85,33) x 3. Ao arredondar este valor, chegamos a R$ 12. O valor final do benefício é incrementado sempre em múltiplos de R$ 2.

[4] É possível atualizar o cadastro antes do prazo de dois anos, contudo, essa atualização não é obrigatória. Ver Decreto nº 6.135, de 26 de junho de 2007, art. 7º, e Decreto nº 5.209 de 17 de setembro de 2004, art. 21.

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