Corrigindo desigualdades nas tarifas de eletricidade
Califórnia e Brasil enfrentam difícil balanço entre estimular micro e minigeração distribuída e evitar efeitos regressivos para consumidores pobres que pagam tarifa volumétrica cobrada de (quase) todos os usuários residenciais.
Um assunto que tem dado o que falar é a mudanças nas tarifas de eletricidade na Califórnia. Em resposta a uma legislação aprovada no ano passado, as três maiores utilities elétricas do estado – Pacific Gas & Electric, San Diego Gas & Electric e Southern California Edison – apresentaram proposta para implantar tarifas de duas partes. Atendendo ao comando, a inovação maior está em uma componente fixa relacionada à renda dos usuários que se soma a outra que varia com o consumo. Abordo seu propósito e algumas críticas, trazendo reflexões para o desenho de nossas tarifas por aqui.
Califórnia e Brasil experimentaram crises importantes no setor elétrico no início de sua reestruturação (2001-2002). Também têm em comum o fato de terem lançado regulação para incentivar geração distribuída há bastante tempo, que inclui o mecanismo de Net Energy Metering (NEM). E em ambas as geografias, a tentativa de rever os benefícios a essas tecnologias em resposta ao avanço e barateamento das renováveis encontra muita resistência.
No NEM, os adotantes de micro e minigeração distribuída – donos dos painéis solares, por exemplo – pagam pelo consumo líquido; ou seja, a tarifa incide sobre a diferença entre energia consumida e injetada na rede. Esse benefício regulatório acarreta alguns problemas que se agravam com o tempo e o aumento de sua penetração. A crítica maior está na arbitragem regulatória que o mecanismo permite e seus efeitos perversos sobre equidade. A tarifa volumétrica (R$/kWh) cobrada da (quase) totalidade dos usuários residenciais embute custos da energia, redes, encargos e tributos. Como no NEM a energia injetada vale o mesmo que a fornecida pelo sistema, a cobrança líquida transfere grande parte dos custos da rede para quem fica. Há um efeito perverso do ponto de vista distributivo, pois quem adere tente a ter mais renda.
Os impactos distributivos do aumento da descentralização são conhecidos, mas as tentativas de corrigir têm se mostrado inviáveis do ponto de vista político. Vem da economia uma solução para enfrentar os problemas decorrentes do NEM: substituir tarifas volumétricas por tarifas de duas partes. Os custos da rede, que não variam com o consumo, seriam cobertos por uma componente fixa. Assim, os adotantes de painéis arcariam com os custos dos serviços da rede, dos quais se beneficiam. Os requisitos de arrecadação de receita seriam completados por uma parcela que varia com o consumo.
A proposta simples de tarifa de duas partes enfrenta oposição. Seus críticos argumentam que desestimula a adoção de MMGD (micro e minigeração distribuída). Além do mais, uma componente fixa muito elevada oneraria desproporcionalmente quem tem renda mais baixa. No limite, poderia até excluir usuários que não conseguissem suportar o valor alto. E a parcela variável mais baixa pode não dar incentivo correto para consumo eficiente.
Em busca de equidade, a solução da Califórnia determina que sejam estabelecidas pelo menos três componentes fixas. Usuários de menor(maior) renda teriam acesso a uma componente menor(maior). Ainda assim, essa solução não afasta as críticas daqueles que querem incentivos máximos para MMGD. Seu argumento é de que essas tecnologias beneficiam muito o ambiente e o sistema elétrico, ao reduzir necessidade de expansão das redes. Mas como o governo não está disposto a arcar com parte dos custos ou aumentar a carga do contribuinte, o impasse continua.
Também no Brasil a polarização da geração distribuída, de um lado, e das distribuidoras, de outro, não para de ganhar capítulos. Apesar da ANEEL ter regulamentado a Lei 14.300/22, já há tentativas no Congresso de promover ajustes.
Tal como na California, aqui as tarifas são instrumentos críticos para conciliar o avanço da geração distribuída com equidade. Sabemos que quem ganha menos compromete uma parcela excessiva da sua renda com consumo de eletricidade. Mas esse problema tem uma dimensão que não raro passa desapercebida: há diferenças de qualidade nas condições de fornecimento mesmo em uma mesma área de concessão.
A qualidade nas condições de fornecimento de energia elétrica é bastante desigual, e pior para quem mora em regiões mais desavantajadas. Para ilustrar, considere o caso da Light, na qual as metas regulatórias de qualidade – medidas pelos limites de duração e frequência de interrupções – revelam enormes disparidades. Em algumas regiões (ou conjuntos, no jargão do setor), o limite tolerado é de 16 horas de interrupção e até 10 interrupções para o ano de 2023. Por outro lado, há conjuntos com uma hora de limite e uma interrupção por ano. Em geral, áreas de maior renda contam com limites mais rigorosos e qualidade melhor.
Ainda que uma explicação mais cuidadosa não caiba neste artigo, o fato é que a qualidade já é distinta nas diferentes áreas de concessão e de uma forma mensurável. Quem ganha menos não raro tem acesso a condições piores de qualidade, mas não tem alívio na tarifa, que pesa muito mais no bolso. O problema tem solução: usar novas tecnologias e disponibilidade de dados para desenhar tarifas que considerem diferenças de qualidade experimentadas pelos usuários.
Por mais que seja imperfeita, a evolução na proposta de tarifas que vem da Califórnia evidencia pelo menos a tentativa do legislador e do regulador de enfrentar um problema: como a descentralização em curso a galope pode ser conciliada com mais justiça. E o instrumento é a tarifa, que precisa dar sinais corretos para usuários e investidores, articulando presente e futuro. No momento em que se aguarda a Consulta Pública para tratar dos contratos de concessão de distribuição de eletricidade, o urgente não deve nos afastar do que é importante.
Esta coluna foi publicada originalmente em 18/04/2023, terça-feira, pelo Broadcast da Agência Estado.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva da autora, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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