Open Energy e a abertura do mercado de eletricidade
Assim como no Open Banking, compartilhamento autorizado de dados de consumo de eletricidade eleva competição no setor, e facilita a usuários se aproveitar de condições mais vantajosas de preços e produtos de supridores alternativos.
Encerrou-se em 24 de julho o prazo para envio de contribuições para Consulta Pública (CP) 152 de 2023, do Ministério de Minas e Energia (MME), que trata das concessões vincendas de distribuição de eletricidade. Um dos temas abordados na CP é a necessidade de adaptação dos novos contratos ao disposto na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei Geral de PGPD, Lei 13.709/2018), com inclusão de cláusula de proteção dos dados dos usuários e compartilhamento de dados de terceiros. O tema divide opiniões, mas seu avanço tem grande capacidade de contribuir para uma abertura equilibrada do mercado, sem comprometer a segurança no acesso aos dados, como veremos.
O compartilhamento dos seus dados como premissa de geração de valor para seu dono – o usuário – é a base da experiência do Open Banking no Brasil. Sabemos que o setor bancário aqui é concentrado: cinco instituições bancárias detinham market share de 77,6% dos ativos totais em 2020 (Banco Central, 2022). Essa concentração explica parte das altas taxas de juros e da limitada oferta de serviços financeiros a segmentos de menor renda e/ou localizados em áreas rurais. Além disso, pouco contribui para incentivar novos produtos e serviços para clientes.
Esse quadro mudou com a regulamentação do conceito de sistema financeiro aberto no Brasil. Mediante consentimento prévio do usuário, seus dados podem ser compartilhados com outras instituições financeiras. Torna-se possível assim aumentar a oferta de serviços por outros participantes do mercado, que têm então melhores condições de avaliar o perfil de risco de potenciais clientes. Tudo isso sem comprometer o atendimento ao disposto na LGPD, nem a segurança da informação dos usuários.
A competição viabilizada pela implantação do Open Banking é bem-vinda, mas não exatamente bem recebida por quem está sujeito a perder mercado. Empresas dominantes lançam mão de diversos argumentos e subterfúgios na defesa interesses estabelecidos. Mas a discussão é página virada: o Open Banking veio para ficar aqui. Avançou aqui como em diversas outras jurisdições ao redor do globo.
Em todo o mundo, diversas regiões e países registram evolução natural do conceito de Open Banking para o de Open Energy. E isso se justifica, pois é difícil imaginar por que que o compartilhamento dos dados de consumo de eletricidade seria mais sensível que o de seus dados financeiros. Conceitos modernos baseados na garantia dos direitos de propriedade dos dados podem simultaneamente proteger o modo como os dados são coletados, estabelecer mecanismos de compartilhamento para impedir que apenas algumas grandes companhias – inclusive tech – explorem o acesso a dados como insumos livres para seus programas e estratégias.
A implementação do conceito de Open Energy é importante no contexto de avanço acelerado da abertura do mercado de eletricidade. É fundamental enfrentar o tema da vantagem competitiva das distribuidoras, principalmente considerando que algumas têm em seus grupos econômicos empresas de comercialização fortes. A experiência mostra que essas empresas, incumbentes, continuam controlando grande parcela do mercado. Em geral as taxas de troca – ou switching – são baixas, o que não raro impede usuários de aproveitarem condições mais vantajosas de preços e produtos oferecidas por supridores alternativos. O melhor desenho de novos e bons produtos e serviços pelas entrantes depende de modo fundamental de conhecer as condições e o perfil de risco dos clientes potenciais. E é para isso que contribui o Open Energy, aumentando transparência e incentivando inovação – tudo garantido o cumprimento da legislação de proteção a dados, premissa basilar.
Diversas experiências ao redor do mundo servem de inspiração para o avanço do conceito de Open Energy por aqui, conforme destacado na contribuição do FGV CERI para a CP 152/23.
Na Austrália, a Australian Competition and Consumer Commission (ACCC) vem discutindo o tema através de conjunto de Consultas Públicas versando sobre as regras aplicáveis e alternativas de modelo de acesso. O ponto de partida é a legislação de Consumer Data Right (CDR). Regulamentado em 2020, esse conjunto de regras dispõe sobre o processo de consentimento e requisitos de proteção aos dados a serem seguidos pelos provedores de informação e credenciamento de terceiros. A adesão do setor de energia ao CDR segue uma sequência de etapas semelhante à experiência do setor bancário por lá. E a expectativa é de aplicação a conjuntos de dados específicos no âmbito do National Electricity Market (NEM). Lições importantes podem ser úteis para o mercado livre por aqui.
Também a Comissão Europeia tem avançado na regulação dos requisitos de interoperabilidade de regras para garantia de acesso não discriminatório a dados de medição e consumo para clientes finais e partes elegíveis. Documento recente traz um modelo de referência para dados de medição e consumo com regras e procedimentos a serem aplicados pelos estados membros. O caminho natural é traduzir para as regulações nacionais esses regramentos e partir para a implementação. Tudo para contribuir para o desenvolvimento de mercados competitivos funcionais.
Por fim, vale destacar a experiência norte-americana de implementação de conceitos alinhado ao Open Energy. O processo em certa medida busca inspiração em 2011, com a implantação do Blue Button (botão azul), que permite aos veteranos de guerra acessar e fazer o download do seu histórico médico autorizando o compartilhamento dessas informações com outros provedores de assistência à saúde. A regulamentação começou com o Departamento dos Assuntos de Veteranos dos Estados Unidos.
Na sequência, a indústria de energia lidera a iniciativa do Green Button, plataforma de adesão voluntária que permite aos usuários acessar informações relacionadas a seu consumo de energia. Atualmente, mais de 50 utilities que servem a mais de 60 milhões de consumidores e empresas podem extrair seus dados de consumo, autorizando seu compartilhamento com empresas. Esse processo contribui para o desenvolvimento de soluções e produtos inovadores, à semelhança do Open Banking do começo da nossa história.
Mas a experiência dos Estados Unidos não se resume a isso. Como lá a jurisdição na regulação de serviços de distribuição de eletricidade é competência dos Estados, diversos deles têm avançado para disciplinar o tratamento dos dados de consumo de eletricidade dos usuários. Um caso interessante é o da Califórnia, onde os requisitos de processo garantem o acesso aos dados sob custódia das utilities elétricas extensivo a pesquisadores, agências estaduais e federais, e a governos locais – tudo obviamente mediante consentimento dos usuários. O acesso pelos pesquisadores contribui para desenvolver conhecimento e evidências capazes de dar apoio ao avanço da regulação.
Os operadores de sistemas de distribuição (DSOs, da sigla em inglês) do nosso presente em transformação são plataformas de incessante coleta de volumes maciços de dados dos usuários de energia. O acesso a esses dados permite manipular preferências e padrões de consumo para muito além da energia. Mas os dados são dos usuários – é isso que diz a legislação. E o que cabe à regulação é garantir que, além de atender a obrigações legais e regulatórias de garantia de proteção, seu compartilhamento possa beneficiar consumidores, contribuindo para o desenvolvimento de mercados competitivos que equilibrem segurança com inovação.
Esta coluna foi publicada originalmente em 25/07/2023, terça-feira, pelo Broadcast da Agência Estado.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva da autora, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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