Energia

“Wicked” apagão

29 ago 2023

Um “wicked problem (WP)” é definido por características que o tornam inerentemente insolúvel. Como o blecaute de 15/8, a transição energética também representa um WP, mas possível abordagem é adotar mecanismos de ação coletiva.

Há cinco décadas, Rittel e Webber[1] escreveram um artigo abordando dilemas inerentes à Teoria Geral de Planejamento (Dilemmas in a General Theory of Planning). Sua reflexão versa sobre os desafios enfrentados pelos formuladores de política e planejadores sociais ao lidarem como problemas difíceis de definir e inerentemente insolúveis, mas que fazem parte de seus cotidianos. O blecaute do dia 15 de agosto despertou minha curiosidade para saber em que medida se trata de um wicked problem (WP) e, se assim for, quais as pistas para enfrentar nosso futuro presente da transição energética no Brasil.

Rittel e Webber argumentam que planejadores são mais habituados a lidar com desafios tratáveis (tame ou “benign”), para os quais a missão ou o objetivo é claro mesmo antes de encontrada sua solução. Problemas de política pública, por sua vez, são “wicked”, viciosos (como os círculos), ardilosos (tricky) ou agressivos.

Embora o conceito de wicked problem não seja tão claro, os autores apresentam uma lista das características que permitiriam identificá-los.  Dentre elas, tem-se que: não admitem uma formulação precisa; ao contrário, a solução e a definição do caso guardam estreita interdependência; não há um ponto de chegada determinado ou fim do problema – em algum momento uma resposta alcançada é considerada boa o suficiente para prosseguir e implementar, mas não porque é definitiva. Não há como delimitar o conjunto completo de resultados possíveis e faltam critérios para distingui-los. As especificidades de cada caso limitam a capacidade de aprender com os da mesma classe ou semelhantes. E os planejadores não têm direito de errar, dada sua responsabilidade nas consequências de decisões que venham a tomar.

A concepção de WP evoluiu ao longo do tempo, dando lugar a novas formulações, a exemplo dos super wicked problems. Estes ganham um ingrediente adicional: tempo limitado para encontrar a solução, caso da urgência de enfrentar mudanças climáticas.

Por suas características e desdobramentos até aqui, foi inevitável associar a um wicked problem o recente apagão do sistema elétrico nacional, que causou corte de carga de 19 GW e se propagou por 25 estados e mais o Distrito Federal. Apesar da possibilidade de conhecer logo onde teve origem o evento, ficamos ainda no “escuro” de informações acerca das causas, mais do que da própria eletricidade. Em busca de notícias e “furos”, jornalistas recorreram às fontes dispostas e “aptas” a falar. Já tendo identificado os “culpados”, não faltaram os usuais “formadores de opinião” de plantão, que se apressaram a aproveitar a oportunidade de já apresentar as soluções para o problema – dentre eles, mais gás natural. Que surpresa!

O setor elétrico conta com governança própria para gerenciar eventos dessa natureza, os quais, embora inconvenientes, costumam acontecer mais do que esperado. Enquanto a operação se encarrega de reestabelecer as condições de fornecimento, o Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico exerce suas competências. Paralelamente, governo, reguladores e Operador Nacional do Sistema (ONS) também contam com responsabilidades próprias. A ANEEL dá início a um processo de fiscalização, que pode culminar com punições e melhorias de protocolos e aperfeiçoamentos nos procedimentos operativos. Mas na hora do “calor”, ninguém quer esperar.

WP na Transição Energética

É possível reconhecer, no entanto, que estamos diante de um wicked problem na transição energética. A integração de fontes renováveis variáveis desafia políticas, regulação e operação do sistema elétrico. Surgem modelos, projetos e artigos argumentando que ele é sim capaz de tolerar penetrações limite de eólicas e solares, como consta do relatório CCDR do WB. Mas o problema não perde sua natureza de wicked. Mesmo que fosse difícil essa integração – e é –, a expansão da micro e mini geração distribuída (MMGD) é irreversível. Adaptemo-nos pois.

As fontes solar e eólica já ultrapassam 40 GW de potência instalada, se contarmos MMGD.  Gerenciar esse sistema crescentemente descentralizado requer adaptação e atualização em ativos, softwares, acesso e uso de volumes muito maiores de dados, e investimentos em capital humano. E essa mudança abrange a transmissão e a transformação do distribuidor no Operador do Sistema de Distribuição (DSO, da sigla em inglês).

A transição energética no SEB, repita-se, pode ser entendida como um wicked problem. Rittel e Webber argumentam que mesmo especialistas e políticos têm capacidade limitada de oferecer soluções para WP. Sua intervenção ou ação não raro serve apenas para explicitar rationale e repercussões, mas não necessariamente permite encontrar soluções melhores, como atestam episódios recentes no setor elétrico. Um possível instrumento de solução para WP seria a adoção de mecanismos de ação coletiva, que trazem para a mesa diferentes grupos, como governos, agências, investidores, e nonprofit, academia.  E precisa estabelecer confiança entre as partes.

O setor elétrico se transformou, ao longo das últimas três décadas, de um modelo verticalmente integrado, com companhias estatais, para um modelo com larga prevalência de capitais privados. A recente e bem-sucedida privatização da COPEL é mais um ponto a fortalecer tal tendência. Nessa arquitetura de WP, o governo pode servir como catalizador rumo a uma solução não única nem perfeita, mas suficientemente boa para navegarmos as claras na transição energética.  

Esta coluna foi publicada originalmente em 25/08/2023, sexta-feira, pelo Broadcast da Agência Estado.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva da autora, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.


[1] Author(s): Horst W. J. Rittel and Melvin M. Webber.

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