Compatibilizando IPCA e CPI-US: o que nos contam os preços dos alimentos?
Com harmonização da classificação do IPCA com a do CPI-US proposta neste artigo, verificamos que o grupo Alimentação e Bebidas foi o principal responsável pelo diferencial de preços ao consumidor Brasil/EUA no período 2012/2024.
Introdução
Os votos do CMN que determinaram a redução da meta de inflação no Brasil a partir de 2017 tinham pelo menos dois elementos em comum: a ideia de que menos inflação é sempre melhor que mais inflação, bem como que as novas metas convergiriam para aquelas praticadas em outras economias. Porém, como há muito já mostrou Alex Ribeiro[1], entre outros, não havia nesses mesmos votos estudos ou referências a estudos aprofundados que respondessem a seguinte pergunta: é possível comparar a inflação dos países em que a meta de inflação é igual ou menor do que 3% com o IPCA, que é a referência adotada no sistema de metas brasileiro?
A pouca disponibilidade de análises que comparem a inflação brasileira com a do restante do mundo “no detalhe” provavelmente se deve, entre outros motivos, à dificuldade imposta pela forma como os bens e serviços são classificados. O IPCA tem uma classificação única, ainda que “dialogue” com a COICOP (Classification of Individual Consumption According to Purpose), ou Classificação do Consumo Individual por Finalidade, criada pela ONU e utilizada por uma série de países para a elaboração de índices de preços ao consumidor.
Nos Estados Unidos – que também têm uma classificação própria –, esse problema é em parte superado via construção e divulgação, pelo próprio Bureau of Labor Statistics, de um CPI (Consumer Price Index) compatível com os dados do Harmonized Price Index[2] calculado pela Eurostat – e que tem uma classificação baseada em uma adaptação a partir do COICOP. Com esse CPI ajustado, que além de reclassificar os bens e serviços, exclui o aluguel imputado da conta, é possível comparar a inflação americana com a dos países europeus em um nível de detalhe considerável. No Brasil, o IBGE chegou a realizar um exercício semelhante, no âmbito de um programa de comparação internacional, mas os dados pararam de ser calculados em 2006.
Por considerarmos que uma comparação mais detalhada da inflação brasileira com a de países que adotam o regime de metas pode trazer uma contribuição para a análise do tema, decidimos iniciar um esforço para construir propostas de compatibilização da classificação dos IPCs de outras nações com a do IPCA.
Com isso, avaliamos que será possível agrupar e desagrupar cestas de bens e serviços e analisar como a evolução da taxa de câmbio, o clima, a regulação dos preços, o grau de abertura da economia, a taxa de desemprego, entre outros fatores, afetam “partes” diferentes dos IPCs. Se a isso agregarmos considerações sobre os pesos, métodos de cálculos, existência ou não de ajustes de qualidade, estaremos em melhores condições para avaliar a compatibilidade de nossa meta com a de outros países, ou mesmo sugerir uso de núcleos, que impliquem em parâmetros adicionais para a realização das comparações internacionais.
Este texto tem como primeiro objetivo, portanto, disponibilizar a estrutura proposta para a compatibilização da classificação do IPCA com o CPI-USA[3] (a partir daqui CPI). Neste link, é possível obter uma tabela “de-para” entre os dois índices, e uma série anual, a partir de 2012, do IPCA e do CPI, exclusive aluguel imputado, na abertura compatível com a do IPCA. Há uma série de detalhes metodológicos com os quais é preciso ter cuidado, assim como decisões sobre a classificação de bens e serviços que exigiram certo grau de discricionaridade. Mas, em geral, foi possível estabelecer um grau de correlação bem razoável entre a estrutura dos dois índices, e o autor do texto ficaria muito feliz em receber dúvidas, sugestões e críticas que possam aprimorar a proposta.
O segundo objetivo deste texto é o de apresentar, ainda que de forma bastante introdutória, uma comparação entre a evolução dos preços da Alimentação no domicílio no IPCA e no CPI. Optamos por esse primeiro recorte já que a questão tem um imenso peso político ao redor do mundo, e está no momento no centro das atenções de governo e sociedade brasileiros. Mas ainda não faremos, no entanto, uma análise com toda a profundidade merecida; como poderá ser notado, a partir do estabelecimento de uma base de comparação que compatibiliza as classificações, abre-se grande leque de oportunidades de investigação, que demandará muito trabalho. Nossa intenção, neste momento, é fazer apenas uma provocação inicial, para que, a partir da disponibilidade de dados, outros colegas possam se debruçar sobre o tema.
Adiantando alguns resultados que serão apresentados na continuação do texto: no acumulado do período 2012/2024 o CPI norte-americano – excluindo o aluguel imputado – apresentou variação de 33,5%, enquanto o IPCA variou 108,5%. Isso significa que, tendo como base dezembro de 2011, o nível de preços no Brasil no final de 2024 estava em um patamar 56,3% superior ao observado nos Estados Unidos. É esse o significado do valor que aparece no rótulo Geral no gráfico abaixo, que traz a mesma informação para os nove grupos que compõem o IPCA, e para os dois subgrupos que compõem o grupo Alimentação e Bebidas: o subgrupo Alimentação no domicílio e o subgrupo Alimentação fora do domicílio.
Nenhum grupo do IPCA apresentou variação acumulada no período inferior ao de seu correspondente americano, mas a magnitude dessa diferença variou muito. O nosso objeto de investigação, o subgrupo Alimentação no domicílio, aparece como o segundo elemento do gráfico com a maior distância em relação ao CPI, apenas atrás de Artigos de Residência; porém, a variação relativa deste último grupo não se deveu tanto a um aumento significativo dos preços no Brasil, mas sim à queda (deflação) observada nos Estados Unidos, como pode ser visto no próximo gráfico.
Na verdade, a variação dos preços dos Artigos de Residência no Brasil ficou num patamar até bem abaixo do Índice Geral; mas a variação de Alimentação no Domicílio, por sua vez, foi muito maior do que o da média da economia. Ou seja, esse subgrupo ao mesmo tempo é um elemento de pressão sobre o IPCA, mas também de desvio da evolução da inflação brasileira em relação àquela dos Estados Unidos. Dada a baixa influência que temos sobre choques de oferta (favoráveis e desfavoráveis), não seria o caso de levarmos em conta essa realidade ao estabelecermos o que seria uma meta de inflação “compatível” com a de outros países? Ou, na verdade, mais do que os choques de oferta, são fatores ligados a custos de produção e distribuição, alguns deles suscetíveis à condução da política monetária, que explicariam por que o preço da comida apresenta uma trajetória tão desfavorável num país que tanto se destaca como um dos principais produtores e exportadores de alimentos doo mundo? E se for possível identificar a causa do encarecimento absoluto e relativo da alimentação no Brasil, quais medidas (se há alguma) poderiam ser tomadas para reverter tal quadro? Esta é apenas uma das perguntas que deveríamos nos fazer, superando discussões menos aprofundadas, presas ao curto prazo e frequentemente turbinadas pelas disputas eleitorais (independentemente da oposição de plantão)
Comparando a evolução da Alimentação no domicílio: IPCA vs. CPI-US
O primeiro passo para estabelecer uma comparação entre o IPCA e o CPI é retirar, deste último, o Owners' equivalent rent of residences (aluguel equivalente do proprietário ou aluguel imputado, como é nomeado no Brasil), cujo peso corresponde aproximadamente a um quarto do total do CPI. O aluguel imputado estima o valor que proprietários de imóveis pagariam caso alugassem suas próprias residências, e faz bastante diferença: se retiramos esse item do CPI, a média geométrica anual da variação do índice ao longo do período 2021/2024 seria 0,36% menor do que o resultado oficial (ver Gráfico 1).
Esse ajuste acaba revelando que a diferença entre o IPCA e o CPI é ainda maior do que a que costumamos ter em mente: a média geométrica anual da variação do IPCA, entre 2012 e 2024, foi 3,5 pontos percentuais superior à variação do CPI (ver Gráfico 2), sendo que, ao longo desse período, os preços ao consumidor nos EUA somente apresentaram variação superior ao correspondente brasileiro no ano de 2022.
Para avaliar aspectos da composição dos índices, calculamos a participação dos nove grupos da classificação do IPCA, detalhando o grupo Alimentação e bebidas nos subgrupos Alimentação no domicílio e Alimentação fora do domicílio na média do período 2012/2023 (ver Tabela 1).
O exercício revela que a maior diferença positiva em pontos percentuais comparando o IPCA com o CPI Exclusive Aluguel Imputado é aquela observada em Alimentação e bebidas (4,1 pp), seguido de Vestuário (1,7 pp). Quando se considera a diferença em porcentagem, há uma inversão, com a diferença do grupo Vestuário sendo a mais significativa. Por outro lado, o grupo Habitação registra a maior diferença negativa em pontos percentuais, tendo pesado 19% no CPI e 15% no IPCA; e isso mesmo descontando o Aluguel Imputado, note-se.
No que se refere à variação dos preços (inflação) acumulada entre 2012 e 2024, Alimentação e bebidas também chama atenção: foi o grupo que apresentou a maior variação entre aqueles do IPCA (154%) e a maior diferença em relação ao CPI em pontos percentuais, com destaque para o subgrupo Alimentação no Domicílio.
Ainda mantendo o foco em Alimentação no Domicílio, vale notar também a diferença de seu comportamento em relação com o Índice Geral; no caso do CPI, a variação do Índice Geral e de Alimentação no Domicílio é muito semelhante (33%), enquanto no Brasil a variação de Alimentação no Domicílio (162%) é 53 pontos percentuais superior à do Índice Geral.
Uma outra maneira de comparar os índices é “descontar” a variação do IPCA daquela do CPI, o que é realizado na última coluna da Tabela 4. O valor relativo ao Índice Geral significa que, para manter o poder de compra de dezembro de 2011, o salário nominal médio no Brasil teria que ter uma correção adicional de 56% sobre o salário obtido reajustado unicamente pela aplicação da variação do CPI. Nesse caso, o grupo que mais se distanciou da inflação americana não foi Alimentação e Bebidas, mas sim Artigos de residência, em magnitude semelhante ao do subgrupo Alimentação no Domicílio.
Vamos agora comparar a variação do subgrupo Alimentação no Domicílio com a do restante dos componentes do CPI e IPCA ao longo do tempo. É possível notar no Gráfico 3 que, nos Estados Unidos, durante 2012 e 2024, a variação dos preços da Alimentação no Domicílio foi superior ao do restante do CPI em apenas três anos (2014, 2020 e 2022). Esse gráfico, assim como Gráfico 4, ilustra bem um fenômeno já apontado por muitos analistas: não foi apenas o aumento de preços dos alimentos que irritou os eleitores americanos, mas também o aumento de seu preço relativo. E lembrando que, na “vida real”, esse encarecimento relativo do preço dos alimentos pode ter sido sentido ainda de forma mais forte, já que uma parcela nada desprezível do preço dos outros bens e serviços sofre ajustes de qualidade nos EUA[4].
A realidade no Brasil foi muito diferente. As variações dos preços da Alimentação no Domicílio só ficaram abaixo da do restante da cesta do IPCA em três anos (2017, 2021 e 2023), e apresentaram volatilidade muito maior, como pode ser visto nos Gráficos 5 a 7. É muito importante também notar que a única vez em que o IPCA Geral se situou no centro da atual meta de inflação (no ano de 2017[5]) foi também um dos dois únicos momentos nos quais os preços da Alimentação no Domicílio registraram queda, e, queda significativa (-4,8 %). Esse ponto, assim como o fato de que há consenso de que a economia brasileira operava com enorme excesso de ociosidade entre 2017 e 2019, deveria ser levado em consideração no atual debate sobre os objetivos da política monetária no Brasil.
Vamos, por fim, fazer uma estimativa da contribuição dos grupos sobre a variação do índice Geral, a partir dos valores mostrados na Tabela 3. “Estimativa” porque, em funções de questões aritméticas não é possível obter, a partir da composição dos itens, a variação exata observada para o total, no acumulado no período.
Na Tabela 3, os valores da primeira linha são calculados a partir dos números dos índices gerais divulgados pelo BLS e pelo IBGE, enquanto os valores da segunda linha refletem nosso cálculo (a soma das contribuições). As três primeiras colunas representam a média geométrica anual da variação dos índices gerais, assim como o relativo IPCA/CPI, enquanto as últimas três o acumulado no período. Note-se que o valor da última coluna da primeira linha corresponde àqueles 56,2% que mostramos na Tabela 2, enquanto o da segunda linha é 57,5 – um valor próximo, principalmente considerando que estamos falando de 13 anos, mas não coincidente. Feita essa ressalva, observe-se que o Grupo Alimentação e Bebidas foi o que mais respondeu pela diferença positiva do IPCA em relação ao CPI: 16 pp, aproximadamente 28% dos 57,5% estimados.
O próximo tópico abordado é o comportamento dos componentes (chamados de Itens na classificação do IBGE) do subgrupo Alimentação no domicílio, que são apresentados na Tabela 4.
Dois pontos a serem destacados: por motivos relacionados à forma como são classificados os dados do CPI, alguns itens da classificação do IPCA precisam ser agregados, respeitando-se os pesos dos produtos. Esses itens são: 1101.Cereais, leguminosas e oleaginosas (basicamente arroz e feijão), 1102.Farinhas, féculas e massas (em que se destacam derivados da mandioca, milho e trigo, inclusive massas), 1103.Tubérculos, raízes e legumes (como batata, cenoura, cebola e tomate) e 1105.Hortaliças e verduras (entre os quais alface, couve e brócolis). Além disso, como pode ser notado na última linha da tabela, há um item fictício, 11XX.Outros alimentos no domicílio, que tem um peso relevante no CPI; nele são agrupados produtos como comida congelada, “snacks” e refeições embaladas, cuja correlação com um item do IPCA não conseguimos realizar (ou seja, trata-se de uma espécie de resíduo, para completar o grupo).
Comparando-se os pesos dos itens que compõem Alimentação no domicílio, nota-se que a participação do conjunto das proteínas animais no IPCA é muito maior do que no CPI – com destaque para Carnes (quase todo composto por carne bovina, ainda que as carnes de suínos e de carneiros também façam parte do grupamento). Mas o subgrupo que engloba cereais, farinhas e féculas, legumes e verduras in-natura, citado anteriormente, também tem participação maior do que no seu congênere americano: 15,6% no IPCA e 9,9% no CPI. Por outro lado, a importância relativa de bebidas e de enlatados e conservas, no Brasil, é menor do que nos EUA.
A variação acumulada no período é apresentada na Tabela 5: chamam a atenção os números do item Frutas (275%) e do agregado cereais, farinhas e féculas, legumes e verduras in-natura (169%), tanto pela variação em si como pela diferença em relação ao registrado no CPI. Esse ponto é interessante, pois os produtos aqui incluídos não são necessariamente tradeables, (e, portanto, influenciados pela desvalorização do real), ao menos no sentido de participação relevante da corrente de comércio sobre o consumo aparente. Vale aqui, portanto, uma investigação adicional avaliando a evolução desses itens separadamente.
Já os itens Pescados, Açúcares e derivados e Carnes e peixes industrializados foram os que apresentaram as menores variações e menores diferenças na comparação com o índice calculado pelo BLS.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
[3] Vale notar que a meta de inflação do FED tem como baliza o personal consumption expenditures (PCE), que é o deflator do consumo das famílias, parte integrante do PIB. Muitas das recentes mudanças metodológicas no cálculo do CPI têm como finalidade, inclusive, tornar os dois índices mais próximos. Voltaremos a tratar desse ponto, e de suas implicações sobre a compatibilidade das metas, em post futuro.
[4] Os ajustes de qualidade podem fazer com que a variação do preço computada no CPI seja menor do que a verificada na hora da compra pelo consumidor. Para ver sobre os ajustes de qualidade utilizados pelo BLS, acessar: https://www.bls.gov/cpi/quality-adjustment/
[5] A meta de inflação em 2017 ainda era de 4,5%, e o IPCA fechou o ano em 2,95%: o piso da meta em 2017 e o centro da meta atual.
Deixar Comentário