A dramaturgia do PLOA 2026
PLOA 2026 chega como peça teatral: cada número traz personagem além do valor contábil. No enredo, superávit simbólico, mínimo valorizado, Bolsa Família turbinado, PAC e juros recordes. Aguardemos o gran finale.
Um orçamento é sempre menos sobre planilhas e mais sobre poder. O PLOA 2026 chega ao Congresso com esse caráter, quase como um manuscrito em que cada número carrega significados além do valor contábil. Oficialmente, trata-se de uma lei que estima receitas e fixa despesas. Na prática, funciona como um teatro de intenções. E nós, contribuintes, ocupamos a plateia — ou ao menos financiamos os ingressos. Pois, para a maior parte da sociedade, a peça sequer é assistida. O eleitor mediano desconhece o enredo orçamentário e percebe apenas trechos isolados, como o salário-mínimo. Quase ninguém acompanha o custo dos juros ou a real dimensão da dívida pública.
E que peça! A cada linha, o governo não apenas define quanto pretende gastar, mas também sinaliza prioridades e mensagens ao mercado, ao eleitor, ao Congresso e até a si próprio. É como se o país encenasse, uma vez por ano, a peça mais longa e relevante de sua dramaturgia política: o orçamento federal. Os números tornam-se falas organizadas, as tabelas funcionam como marcações de palco e os gráficos apresentados nas coletivas cumprem o papel das luzes cênicas, que destacam trechos específicos sem iluminar a realidade inteira.
O primeiro ato é a entrada do superávit primário. O número, R$ 34 bilhões, equivalente a 0,25% do PIB, poderia passar despercebido, não fosse o destaque que recebe. Ele não altera de forma decisiva a trajetória da dívida, mas cumpre um papel simbólico importante. É a cena em que o protagonista se dirige à plateia especializada e reafirma que há compromisso com o arcabouço fiscal. A mensagem é clara: o governo busca mostrar disciplina e responsabilidade diante das regras que estabeleceu. Mas esse resultado, na prática, é menos sólido do que aparenta. Gastos relevantes, como parte do pagamento de precatórios, não são contabilizados no arcabouço. Segundo estimativas divulgadas pela imprensa, o déficit primário efetivo seria de R$ 23 bilhões. O superávit anunciado, portanto, tem algo de ficção, como um efeito especial projetado sobre o palco.
O segundo ato muda a iluminação e coloca o foco no público em geral. É a vez do salário-mínimo entrar em cena, projetado em R$ 1.631, com ganho real de 2,5%. Esse número tem grande visibilidade, é citado em entrevistas, comentado no dia a dia e discutido nas famílias. O mínimo talvez seja o elemento do orçamento que mais diretamente dialoga com a população. Mais do que um indicador de política econômica, torna-se símbolo de valorização do trabalho. É nesse ato que a plateia mais ampla se reconhece e percebe que o espetáculo também a contempla.
Logo após, entram em cena dois personagens centrais: Bolsa Família e Pé-de-Meia. O primeiro é veterano, já consolidado e amplamente reconhecido pelo respeitável público. Sua simples presença no palco reafirma o compromisso com a proteção social. O segundo é mais recente, mas surge com forte simbolismo, associado à permanência de jovens na escola e à possibilidade de novas oportunidades. Ambos cumprem papéis legítimos e complementares, reforçando a mensagem de que a agenda social ocupa lugar de destaque no orçamento.
No terceiro ato, o cenário se transforma. Telões exibem imagens de estradas duplicadas, conjuntos habitacionais e retroescavadeiras em ação. É a vez do Novo PAC assumir o palco. O programa não se resume aos investimentos previstos em planilha, seu impacto também se mede pela visibilidade que gera. A peça, no entanto, mostra a limitação estrutural dessa rubrica. O PLOA prevê R$ 83 bilhões em investimentos, cerca de 0,6% do PIB, valor insuficiente para repor a depreciação do capital público. Esse montante é apenas o dobro das emendas parlamentares, que somam mais de R$ 40 bilhões e, em geral, se distribuem em projetos de pequeno alcance. A comparação expõe a dificuldade em sustentar uma agenda robusta de investimento público. Em ano eleitoral, essa dimensão simbólica ganha ainda mais relevo e funciona como recurso de comunicação do governo.
Mas enquanto o palco brilha, uma orquestra grave ecoa nos bastidores: a dívida pública. Seus acordes são constantes, pesados e inescapáveis. O PLOA projeta R$ 644 bilhões em juros, valor que, por sua dimensão, supera todo o gasto previsto em áreas essenciais como saúde e educação. Essa presença silenciosa lembra que, ao lado dos avanços e programas anunciados, permanece o desafio estrutural do endividamento. É como encenar uma peça romântica ao som de um tambor de guerra, cuja cadência jamais deixa de ser ouvida.
Nesse ponto, a peça assume contornos mais complexos. De um lado está a disciplina fiscal anunciada, com superávit, respeito ao arcabouço e limites de despesa. De outro, a realidade dos juros, que coloca esse esforço em nova perspectiva, já que seu volume é muitas vezes superior ao saldo primário projetado. A metáfora ajuda a compreender: o superávit não é o protagonista da trama, mas um personagem de apoio. O papel central continua sendo da dívida, sempre presente e determinante no andamento do enredo.
Entre um ato e outro, entram em cena as emendas parlamentares. São mais de R$ 40 bilhões destinados a projetos distribuídos pelo país, muitas vezes de pequeno porte e grande visibilidade local. Para cada parlamentar, uma obra a apresentar em sua base eleitoral. Nesse ponto, o orçamento se fragmenta e assume a forma de uma colcha de esquetes, na qual o Congresso deixa de ser apenas plateia e passa a atuar como coautor da peça, acrescentando falas e disputando espaço no roteiro.
O público mais atento já antecipa o desfecho. O roteiro do orçamento prevê a possibilidade de contingenciamentos, ajustes silenciosos e eventuais frustrações de receita. Algumas promessas podem não se concretizar integralmente e parte das obras previstas poderá avançar em ritmo mais lento. Ainda assim, o espetáculo precisa continuar, pois o orçamento sustenta uma narrativa de prioridades que orienta a atuação do governo ao longo do ano.
Esse roteiro se repete todos os anos, mas em 2026 ganha intensidade adicional. Por ser um ano eleitoral, cada cifra assume também uma dimensão simbólica e estratégica. O superávit funciona como sinal ao mercado, o mínimo como mensagem ao trabalhador, o Bolsa Família reafirma a proteção social, o PAC projeta a ideia de progresso e as emendas parlamentares expressam a negociação política necessária. Até mesmo os juros, quase sempre silenciosos, lembram a persistência de um desafio estrutural. Nesse grande palco, nós, contribuintes, permanecemos como espectadores atentos a cada ato — ainda que muitos sequer compreendam plenamente a encenação que ajudam a financiar.
Resta saber até que ponto a plateia continuará acompanhando essa representação. O desafio de qualquer orçamento é manter a credibilidade de sua narrativa. Se houver desconfiança, o entusiasmo se perde; se houver confiança, a peça ganha fôlego. O PLOA 2026 se encontra nesse ponto de equilíbrio. Pode ser interpretado como um esforço genuíno de conciliar responsabilidade fiscal e inclusão social, ou como uma construção cuidadosa que depende da capacidade do governo de transformar intenções em resultados. A diferença não está apenas nas planilhas, mas na habilidade de sustentar a narrativa diante dos fatos.
Em qualquer caso, o orçamento de 2026 já se inscreve como uma peça simbólica. Não será lembrado apenas pelos recursos destinados a cada ministério ou pelas obras previstas no PAC, mas pelo enredo que procurou construir: o de um governo que, em meio ao peso da dívida e às pressões de um ano eleitoral, buscou conciliar disciplina fiscal com a preservação da agenda social. E talvez já antecipe o debate que inevitavelmente retornará em 2027, quando um novo governo terá de discutir regras mais rígidas de controle de gastos.
Eis o gran finale. Não temos como deixar o teatro. Somos a plateia constante, com ingressos já garantidos na forma de impostos, assistindo a uma dramaturgia que se repete a cada ano. Cabe a nós, contribuintes e eleitores, acompanhar e avaliar. O PLOA 2026, em última instância, não está apenas nos números, mas no olhar de quem assiste. E, gostemos ou não, o espetáculo precisa continuar. Viva a democracia brasileira!
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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