Três famílias em uma? Uma crônica sobre a complexidade da proteção social brasileira
João e Maria, um casal aos seus 70 anos. Já há cinco anos moram com Antônio, irmão solteiro de João. Nenhum dos três têm rendimento de aposentadoria, ou de trabalho.
Há três anos que João e Maria abrigaram também os netos de Antônio, desde o falecimento da filha dele. São dois meninos: um de dezoito e outro de vinte. O de vinte trabalha, com um rendimento informal de R$ 300.
Esta é uma família com um rendimento do trabalho de R$ 60 per capita. Em tempos de reformulação de programas sociais e muitas discussões que, com a facilidade de uma simulação de computador, fundem o Imposto de Renda, o Cadastro Único e uma Renda Universal que ainda nem existe, vamos ver a história da nossa família fictícia procurando os programas sociais a que ela tem direito? É bastante gente, e pouco dinheiro.
João descobriu que pode ter direito a uma aposentadoria do idoso que, na verdade, é um benefício da assistência social chamado BPC, Benefício de Prestação Continuada. O benefício seria requerido no INSS.
Com a ajuda do jovem de 20 anos, realizou o agendamento no posto do INSS e, após aguardar três semanas para o atendimento[1], João foi informado de que a inscrição no BPC requer a entrada em outro Cadastro, que não é feito no INSS. E lá foi João até um CRAS (o Centro de Referência da Assistência Social) fazer o registro de sua família no Cadastro Único. Conseguiu uma vaga para ser atendido no CRAS no mês seguinte.
No CRAS, declarou os dados de toda a família. Dele, da esposa, do irmão e seus dois netos. Uma família com cinco pessoas e renda de R$ 60 per capita, quando se inscreve no Cadastro, é automaticamente habilitada ao Bolsa Família.
Muita gente acha que o Bolsa Família é um benefício. Mas não, são quatro. Desses quatro, a família de João passa a receber um benefício básico, de R$ 89, e mais R$ 58 do benefício de superação da extrema pobreza (o BSP), o qual garante que, após o recebimento dos benefícios do Programa Bolsa Família (PBF), a família de João terá rendimento superior a R$ 89 per capita, a linha de extrema pobreza do Programa. Ou seja, o benefício mensal do Bolsa Família totaliza R$ 147. Após a concessão do PBF, a família de Maria e João passará a ter um rendimento total de R$ 447 por mês,[2] R$ 89,40 per capita.
E lá vai João de volta ao INSS, requerer seu BPC.
O benefício é deferido. Afinal, a renda da família ainda está abaixo de ¼ de salário mínimo per capita. Com o BPC, a renda da família vai para R$ 1.492 por mês, ou R$ 298,40 per capita.
João está feliz. Contudo, ele se lembrou das orientações que recebeu quando fez o Cadastro e passou a receber o Bolsa Família. Ele sabe que sua família não é mais elegível ao Programa, mas também sabe que, se ele retornar ao CRAS e voluntariamente atualizar a renda declarada, poderá continuar recebendo o Bolsa por mais dois anos, já que a renda per capita da família continua abaixo de ½ salário mínimo – é a chamada “regra de permanência” [3]. João não sabe, mas, se ele não voltar, cairá nos procedimentos de averiguação cadastral e poderá ter o benefício do PBF cancelado, sem direito a retorno. Lá vai João, mais uma vez, ao CRAS.
Feliz por ter começado a receber seu benefício, João convence Maria a pedir um benefício para ela. E assim começa a história de Maria.
Maria já está no Cadastro Único, o que significa uma etapa a menos no processo de cadastramento. Ao chegar no INSS, Maria é informada de que a linha de elegibilidade ao BPC Idoso é de um quarto do salário mínimo. Rápida nos cálculos, Maria percebe que isso significa R$ 261 por pessoa, e que a renda deles é de R$ 298 por pessoa. No entanto, Maria é informada de que a renda usada para calcular o BPC muda de acordo com a origem do rendimento. No caso, a análise da elegibilidade a um BPC Idoso não leva em consideração o rendimento do BPC Idoso de outras pessoas na mesma família.[4] Com isso, para fins de elegibilidade ao BPC, a renda da família da Maria está abaixo de R$ 261 por pessoa, e ela tem direito ao benefício.
Isso faz a renda da família atingir R$ 2.537 mensais, ou R$ 507,40 per capita.
Maria volta feliz para casa. Em casa, a felicidade de Maria e João contagia Antônio, que resolve avaliar se seria também elegível ao BPC. Ele tem 50 anos, mas tem uma deficiência física que poderia justificar o recebimento do benefício.
O neto mais velho de Antônio pesquisou na internet se o avô seria realmente elegível ao benefício. Na pesquisa, ele não conseguiu entender se a renda dos outros beneficiários de BPC Idoso na família contaria ou não para a avaliação da elegibilidade de seu avô ao BPC da Pessoa com Deficiência. Parece que a lei tinha sofrido alguma alteração recente.[5] Para esclarecer a situação, Antônio foi ao INSS para ver se seu caso tinha solução.
Chegando ao INSS, explicou a sua situação para o atendente, e descobriu que era elegível ao BPC! Ficou surpreso ao descobrir que a renda de seu irmão e sua cunhada não contaria para a avaliação da elegibilidade dele ao benefício, por serem rendimentos oriundos do BPC.[6] Além disso, mesmo que contassem, o seu irmão e a esposa dele não seriam considerados de sua família, ainda que morassem sob o mesmo teto e dividissem as despesas da casa. Isso ocorre porque João, seu irmão, é casado! Antônio acabou de descobrir que o conceito de família do Cadastro Único é diferente do conceito do BPC.[7]
Tal situação pareceu estranha para ele, porque ele se lembra de que a renda dele (no caso, nula) foi usada para a avaliação da elegibilidade dos benefícios de João e de Maria. Mas o fato é que, como Antônio é solteiro e João é casado, para fins de análise do BPC João não é família de Antônio, embora Antônio faça parte da família de João!
Antônio, muito esperto, logo entendeu que, pelo conceito de família do BPC, na família deles caberiam entre duas e três famílias diferentes. Em qualquer cenário, os netos de Antônio seriam uma família separada, pois ambos os netos eram solteiros, e irmãos entre si. A ambiguidade estava justamente com ele: ele poderia constar na família do irmão, por ser solteiro, mas o irmão não poderia ser inserido na família dele, por ser casado. Para efeitos do BPC, portanto, Antônio não tem renda familiar alguma. A renda oriunda do PBF não conta, pois é depositada no nome de João, o responsável familiar no Cadastro Único, que não faz parte da sua família BPC. A renda do neto também não conta, porque os netos não fazem parte da família dele, segundo o conceito de família do BPC. Os dois benefícios do BPC, da Maria e do João, também não contam, pois, pelos critérios do BPC, eles compõem outra família. Mesmo que compusessem a mesma família BPC, o rendimento do BPC de Maria e de João não poderia ser usado para avaliar a elegibilidade ao BPC de Antônio.
Portanto, após a perícia médica e a avaliação assistencial do INSS, Antônio passou a receber BPC, elevando a renda da família dos R$ 2.537 mensais para R$ 3.582 mensais. O grupo de cinco pessoas agora conta com uma renda per capita de R$ 716,40, o que equivale a aproximadamente 5 vezes a linha de pobreza do Banco Mundial[8] e 8 vezes a linha de extrema pobreza brasileira.[9]
A notícia da aprovação do benefício por Antônio foi recebida com muita alegria pela família. Pela primeira vez em muitos anos eles teriam uma renda estável e suficiente para cobrir as despesas mais elementares. Mas agora João sabe que tem que retornar mais uma vez ao CRAS, pois, com essa nova renda da família, não pode mais permanecer no Bolsa Família, nem na regra de permanência. Ele poderia até esperar uma averiguação cadastral retirá-lo do programa, mas João não concorda com isso, gosta de tudo certinho.
***
Esta breve crônica, obviamente, não cobre todas as interfaces entre dois dos principais programas sociais brasileiros, mas é ilustrativa do emaranhando de procedimentos e conceitos, algumas vezes contraditórios, que definem o funcionamento das políticas sociais em vigor.
Ela elucida também o enorme esforço que pessoas de baixa renda precisam depreender para acessar direitos sociais básicos.
Qualquer proposta de reforma do sistema de proteção social atual deve necessariamente considerar como as políticas operam hoje, conhecer suas complexidades e entender que, em torno delas, existem leis e interesses cristalizados.
Por isso, a discussão sobre renda mínima ou renda universal deve considerar quais instrumentos devem ser aprimorados, quais conceitos reformulados, quais objetivos serão buscados e quais regras de transição deverão ser adotadas. Somos bastante céticos quanto às possibilidades de simplesmente lançar uma nova política sobre as que existem hoje. Boas intenções são sempre melhores quando aderentes à realidade.
Mais importante: o desenho atual colocou nossa hipotética família bem acima da linha de pobreza brasileira e internacional. Entretanto, esse resultado seria totalmente diferente caso a família fosse formada majoritariamente por crianças – e sem idosos ou pessoa com deficiência. Nesse caso, seriam elegíveis apenas ao PBF e receberiam, pelo programa, no máximo R$ 447, i.e. R$ 89 per capita.
Isso mostra que a distribuição etária dos beneficiários de uma política social pode tornar as políticas mais ou menos eficientes no combate à pobreza e à desigualdade, algo extremamente importante para que possamos fazer um combate à pobreza mais adequado à nossa realidade fiscal e orçamentária. Mas isso é assunto para outro post.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
[1] Em 2019, o tempo médio para o agendamento era de 24 dias (dados de janeiro a setembro). O processo de análise e concessão de benefícios pelo INSS está sendo revisto desde então, para privilegiar o atendimento virtual.
[2] Contudo, isso não significa que a família de João receberá automaticamente o PBF. Na realidade, nos termos do parágrafo único do Art. 6 da Lei 10.836/2004, ela ficará na “fila do Bolsa” até que haja disponibilidade orçamentária suficiente para incorporá-la ao Programa. A entrada no Programa dependerá de diversos fatores, entre eles a cobertura do PBF no município onde eles vivem, que é uma estatística que relaciona o número efetivo de beneficiários naquele município e uma estimativa do número de famílias elegíveis construída com os dados do Censo de 2010 (ver Portaria GM/MDS nº 341 de 07/10/2008).
[3] A regra de permanência está prevista na Portaria GM/MDS nº 617, de 11/08/2010.
[4] Nos termos do parágrafo único do Art. 34 da Lei 10.741/2003 (Estatuto do Idoso).
[5] Nos termos do parágrafo único do Art. 34 do Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003), uma renda oriunda do BPC Idoso não conta para fins da apuração da elegibilidade ao BPC Idoso de outra pessoa na mesma família. Com o advento da Lei 13.982/2020, o §14o do Art. 20 da Lei Orgânica da Assistência Social (Lei 8.742/1993) importou para o BPC da Pessoa com Deficiência a mesma sistemática de cômputo de renda que já era utilizada na avaliação da elegibilidade ao BPC Idoso, de modo que, atualmente, a lei sugere que a avaliação da renda familiar de um requerente do BPC Idoso ou do BPC da Pessoa com Deficiência deve desconsiderar a renda oriunda do BPC Idoso ou BPC da Pessoa com Deficiência de todos os outros membros da família.
[6] Nos termos do §14o do Art. 20 da Lei Orgânica da Assistência Social (Lei 8.742/1993).
[7] Nos termos do §1o do Art. 20 da Lei Orgânica da Assistência Social (Lei 8.742/1993).
[8] A linha de pobreza per capita atualmente adotada pelo Banco Mundial é de USD 1,90 (PPP), por dia, ou aproximadamente R$150 por pessoa por mês.
[9] Atualmente, em R$ 89 por pessoa por mês.
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