Energia

Aprendendo com o passado para pavimentar o futuro do H2 de baixo carbono no Brasil

3 nov 2023

PDHBC sofre críticas por escolhas tecnológicas, mas não há neutralidade se tecnologias estabelecidas já são favorecidas, como geração de eletricidade a carvão mineral. Mas consumidor de energia se destaca como pagador, o que dá para melhorar.

Foi divulgado semana passada o World Energy Outlook 2023, flagship report da Agência Internacional de Energia. O documento destaca que os investimentos em energias limpas cresceram 40% desde 2020 e superaram aqueles em combustíveis fósseis, caminhando para U$ 2 trilhões até 2030. Mas para atingir a meta de reduzir o aquecimento global em 1,5oC precisamos avançar muito, principalmente nas economias emergentes. E avançar rumo a novas tecnologias de energia limpa, com destaque para hidrogênio de baixo carbono e eólicas offshore.

O Brasil tem potencial notável na corrida para o hidrogênio de baixo carbono, como destacam BNEF (Bloomberg New Energy Finance) e McKinsey. Explorando sua vocação renovável, o país poderia ter o menor custo nivelado do hidrogênio verde nas décadas seguintes. Para tentar surfar essa onda antes cedo do que tarde, avança no Congresso uma proposta legislativa para fomentar a indústria no país. O tema ganhou novo capítulo com a recente apresentação de proposta de criação de um marco legal e a criação de um Programa de Desenvolvimento do Hidrogênio de Baixo Carbono (PDHBC).

O programa foi recebido com aplausos por uns e preocupações por outros. Esse artigo tenta trazer alguns elementos para avaliar o potencial e os riscos no avanço dessa política industrial e sua capacidade de produzir os efeitos desejados de longo prazo. Os objetivos declarados incluem uma inserção competitiva do H2BC que contribuiria para a descarbonização do mix energético.

A proposta legislativa do PDHBC é centrada em torno de pilares como: governança – agentes, instrumentos e princípios; incentivos fiscais e regulatórios; e certificação. Ainda que aprovada na versão atual, definições críticas dependeriam de regulamentação posterior, o que pode influenciar sobremaneira o alcance e resultados do programa.

No lado dos estímulos, o programa prevê incentivos tributários, instituindo o Regime Especial de Incentivos para a Produção de H2BC (o Rehidro). A proposta ensaia definir limite temporal – os benefícios do regime seriam extensivos a quem se habilitar como produtor no prazo de cinco anos de publicação da lei.  Mas a nossa história recomenda cautela. O setor de energia ainda não aprendeu o caminho de volta para se libertar das benesses depois de alcançada competitividade tecnológica.

A proposta legislativa atrai críticas porque, ao privilegiar o H2, faz escolhas tecnológicas ao canalizar tantos recursos para a tecnologia. Mas escolhas foram feitas na resposta às crises do petróleo e explicam nossa liderança na descarbonização do setor de energia. O argumento de que se deve adotar postura agnóstica ou tecnologicamente neutra precisa ser sopesado. Não há neutralidade quando tecnologias estabelecidas já são favorecidas. Esse é o caso da geração de eletricidade a carvão mineral, que há mais de quatro décadas recebe subsídios em grande parte bancados pelas tarifas e bolsos dos consumidores. O mesmo se aplica aos combustíveis fósseis que são (ou foram) necessários para o atendimento da região Norte.

A escala, velocidade e interdependências da transição energética almejada requerem dos governos a adoção de um conjunto de ferramentas adicionais. Anadon e coautores (2022) discutem o imperativo de revisitar princípios para dar suporte à formulação e avaliação de políticas. Em vez de perseguir inalcançável neutralidade tecnológica, importante fazer escolhas tecnológicas. Além do mais, investimentos em tecnologias da descarbonização estão sendo incentivados por governos ao redor do mundo. Programas como o Inflation Reduction e CHIPS Act, nos Estados Unidos, e FIT for 55 na Europa reforçam uma divisão entre quem produz e investe em tecnologia de um lado e quem apenas absorve de outro. Por que precisamos reforçar esse technology divide?

Um segundo ponto de crítica ao PDHBC é quanto e quem paga a conta. Chama a atenção o arsenal completo de incentivos regulatórios, que incluem recursos ordinários e extraordinários. Os primeiros abarcam benefícios como desconto nas tarifas de usos das redes de transmissão e distribuição de eletricidade, garantia de contratação nos leilões de energia elétrica de reserva a partir de 2028, apropriação de recursos oriundos da participação especial no petróleo, e de pesquisa e desenvolvimento (P&D). Na categoria de fontes extraordinárias, incluem-se receitas provenientes de excedente econômico da comercialização de serviço de eletricidade de Itaipu binacional. No saldo da conta, o consumidor de eletricidade se destaca como pagador, reproduzindo um modelo esgotado que gera explosão de preços e tarifas. Uma proposta que equilibre melhor estímulos para a demanda, como metas de uptake por grupos de usuários com compromisso de descarbonização, pode mitigar esse impacto.

Se a política industrial é inevitável, essencial discutir o processo, ou sua governança. Inspirado em lições de economias avançadas e do leste da Ásia, Dani Rodrik e coautores (2023) argumentam que a política industrial demanda novo tipo de relacionamento entre firmas e governo. Experiências bem-sucedidas, como a da Coreia do Sul, envolvem o conceito de “embedded autonomy”. Nesse, a abordagem tradicional de um regulação top-down dá lugar a um modelo de colaboração interativa entre empresas e governo. O Estado tem que ao mesmo tempo ser autônomo e conectado. Sem ser capturado, sua relação com as firmas privadas assegura aos governos acesso a informação necessária para desenhar políticas funcionais. Torna-se assim capaz de se ajustar a uma realidade dinâmica e em transformação, característica de nossos tempos.

O PDHBC tem o mérito de estabelecer uma estratégia para avançar uma tecnologia de descarbonização que explora nossa vantagem carbônica na produção de eletricidade. Resta o desafio de melhor distribuir riscos e custos – hoje reproduzindo modelo muito concentrado nos usuários de energia elétrica. E revisitar o modo de implementação rumo a uma governança pautada por interação colaborativa entre governo e empresas, que admita ajustes ao longo de uma trajetória em constante transformação. Tudo sem renunciar à autonomia, é claro.

Esta coluna foi publicada originalmente em 31/10/2023, terça-feira, pelo Broadcast da Agência Estado.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva da autora, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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