Atraso relativo da economia do Nordeste
Disparidade regional no Brasil decorre de diferenças na disponibilidade de capital humano, cuja origem é a grande imigração europeia e japonesa para o Sul e Sudeste. Relações entre classes sociais consolidaram tais disparidades.
1. Introdução
O atraso relativo do desenvolvimento do Nordeste brasileiro, quando se compara ao Sudeste e ao Sul e ele é mensurado a partir da comparação entre PIBs per capita, consiste numa das maiores desigualdades regionais do mundo.[1] O Nordeste é a região mais pobre do país e o Sul e o Sudeste são as mais ricas, caso se retire o Distrito Federal do Centro-Oeste. Essa desigualdade regional, quando se compara o Nordeste ao Sul e ao Sudeste, consolidou-se no último quarto do século XIX e primeiro do século XX. Até então havia maior equilíbrio regional, mesmo o Rio de Janeiro sendo já o mais importante polo urbano do país desde o ciclo do ouro, que se desenvolveu ao longo do século XVIII. O Sul do país era até então pouco povoado, assim como o Centro-Oeste e o Norte. O PIB per capita do Nordeste e do Sudeste eram muito próximos em meados do século XIX, apesar do Sudeste talvez já ter tido maior PIB per capita antes disso, quando a Coroa Portuguesa se instalou no Brasil (1808). As diferenças, porém, eram ainda pequenas, quando se compara ao que se atingiu em 1939.[2] Desde então, as desigualdades regionais têm sido estáveis, apesar de terem flutuado ao longo de todo esse período.
Estudos empíricos mostraram que o estoque de capital humano per capita é o principal determinante das desigualdades regionais no Brasil.[3] Além disso, mostram também que dois indivíduos com os mesmos atributos produtivos, mas vivendo em regiões diferentes, têm expectativa de rendas bem semelhantes, quando se corrige para custos de vida nas regiões. Ou seja, o mercado de trabalho no Brasil é relativamente bem arbitrado espacialmente. Isso deve ocorrer não só por migração de mão de obra, mas sobretudo por definição de preços relativos dos diversos bens e serviços, especializações produtivas regionais e migração de capital.
Quando há muitos bens e várias regiões, as especializações produtivas se conformam à disponibilidade de fatores de produção nas diversas regiões. Mas tem que haver um fator de produção móvel que pode ser fixo exogenamente para que a economia possa ter um equilíbrio.[4] Por razões sociais não diretamente ligadas apenas a alocação de recursos, o capital humano é o maior candidato para ser esse fator com distribuição espacial exógena ou com maior lentidão a responder aos desequilíbrios espaciais. Além disso, se não houver políticas públicas, as disparidades de disponibilidade per capita média de capital humano tende a se reproduzir ao longo do tempo.[5] Combinando-se essas duas conclusões teóricas, chega-se a uma outra de que as desigualdades regionais tendem a persistir, se não houver políticas adequadas para reverter as diferenças em disponibilidade de capital humano per capita. Por consequência, a compreensão das desigualdades regionais no Brasil requer uma análise histórica que explique por que o Nordeste ficou com um estoque de capital humano per capita menor do que o do Sul e o do Sudeste para que as disparidades fossem fortes e estáveis desde 1939.
2. Causas imediatas das desigualdades regionais
Análises teóricas e empíricas apresentadas em Barros (2019) mostram que as desigualdades regionais no Brasil têm como causa imediata ou aparente as disparidades nas disponibilidades médias de capital humano per capita. Ou seja, há um estoque menor de capital humano per capita no Nordeste do que no Sul e no Sudeste. Os estudos empíricos em Barros (2019, caps. 2 e 3) mostraram que dois indivíduos com os mesmos atributos produtivos tendem a receber exatamente a mesma renda, independente da região em que eles estão sedimentados. O capital humano deles é o principal determinante de suas rendas relativas. Isso significa que as desigualdades regionais existem porque há mais indivíduos com menos capital humano nas regiões mais pobres. Um indivíduo hipotético, se escolher viver numa região mais pobre, ele não terá renda menor simplesmente por causa de sua escolha de fixação espacial. Sendo os seus atributos produtivos dados, ele terá exatamente a mesma expectativa de renda, instale-se em que região ele escolher. As desigualdades regionais, nesse contexto, existem apenas porque há concentração maior de indivíduos com mais capital humano residindo nas regiões mais ricas.
Essa distribuição assimétrica não é consequência da riqueza relativa das regiões. Ao contrário, ela é seu determinante. As especializações produtivas regionais e as tecnologias mais competitivas para a produção dos bens e serviços não comercializáveis é que se adaptam à disponibilidade de capital humano, não o estoque desse último às especializações e tecnologias que foram definidas para cada região. Essa hipótese inverte completamente a relação encontrada na análise clássica de Celso Furtado (1959), que serviu de base para o GTDN (1959).
O estoque individual de capital humano atualmente é principalmente determinado pela educação formal, mas também é muito influenciado pelas relações domésticas e de aprendizado no trabalho. Quando as diferenças regionais surgiram, contudo, as escolas tinham papel menor do que hoje e o ambiente doméstico era relativamente mais importante. Mais recentemente, desde 1930 pelo menos, a própria determinação da qualidade e da quantidade de serviços ofertados pelas escolas em cada região é feita a partir das demandas sociais, que têm no estoque de capital humano das gerações adultas seu principal determinante. Ou seja, a própria disponibilidade espacial de serviços escolares é determinada pelo estoque de capital humano e por tal tende a reproduzir as desigualdades regionais ao longo do tempo.
As grandes imigrações de europeus e japoneses para o Brasil entre 1870 e 1939, com alta concentração de sedimentação desses novos habitantes no Sul e Sudeste, estão no centro da consolidação das desigualdades regionais. Elas induziram a exacerbação das disparidades em estoque médio de capital humano no período em que as desigualdades regionais se acentuaram. Os imigrantes europeus e japoneses que vieram para o Brasil se concentraram principalmente no Sul e Sudeste. Isso teria elevado o capital humano naquelas regiões a níveis bem superiores ao que a simples acumulação endógena teria gerado. No entanto, essa foi ainda uma causa imediata do surgimento das diferenças em estoque médio de capital humano. Ela não consiste na causa fundamental das desigualdades regionais em estoque médio de capital humano e de renda.
3. Causas fundamentais das desigualdades regionais no Brasil
A causa fundamental do menor desenvolvimento do Nordeste em relação ao Sul e ao Sudeste decorre das particularidades das articulações entre diversos segmentos sociais nas diversas regiões do país. No Nordeste, os donos do poder barraram a imigração de europeus em larga escala e o fomento à educação da maioria da população que já compunha a sociedade nordestina no final do século XIX. Tal postura atrasou a acumulação de capital humano na região, quando se compara ao que se verificou no Sul e no Sudeste.
A hipótese apresentada aqui é que os sistemas de incentivos individuais e a maior facilidade à cooperação entre indivíduos que fazem parte de um mesmo segmento ou classe social fazem com que esses sejam os primeiros níveis de agregação social, após família, e o compartilhamento do mesmo ambiente de trabalho. Essas agregações se dão pela existência de ganhos claros advindos da cooperação, ao mesmo tempo que ornam mais claros conflitos de interesses entre segmentos e classes sociais. Os conflitos e interesses comuns relacionados a esses dois níveis de agrupamento são que definem o estabelecimento e evolução de instituições, sejam elas formais ou informais, assim como a evolução da cultura. A partir delas, a sociedade define suas regras para formação de capital humano.
Dentro dessa visão, a relação entre as classes sociais no Nordeste do Brasil, com o poder das elites bem consolidado e implicando em substancial controle do estado, teve duas consequências perversas para a formação de capital humano na região: (i) reduziu a imigração de europeus e japoneses, mais qualificados do que a média da população local, não disponibilizando terras e apoio dos setores públicos locais para atrair imigrantes, mesmo havendo terras disponíveis para recebê-los;[6] e (ii) definiu estrutura de formação de capital humano bem deficitária para a maior parte dos habitantes da região, fechando-se a elite em escolas privadas, inacessíveis para a maioria, e ofertando ensino público de qualidade e quantidade bem aquém do que ocorria no Sul e no Sudeste.
Dessa forma, a lógica dos conflitos entre classes sociais na determinação de instituições e cultura no Nordeste levou à baixa formação de capital humano, que por sua vez, gerou o atraso relativo da economia local. No Sul e Sudeste, a ascensão de uma nova elite social, forçou a promoção da imigração e melhor estrutura de formação intelectual para segmentos bem mais amplos da população, enquanto no Nordeste os incentivos das elites consolidadas levaram a postura completamente diferente. Vale lembrar que a postura das elites do Sul e Sudeste quanto à imigração também foi bem menos agressiva do que a das elites americanas. Por isso o Sul e o Sudeste também ficaram bem atrás dos EUA na atração de europeus e japoneses.
A falta de identidade cultural entre as elites locais no Nordeste e os diversos grupos sociais das classes mais pobres fez com que não houvesse investimento altruístico em educação pública. A concentração de renda era tal que seria mais atraente para as elites recorrerem a escolas privadas para suas novas gerações, pois escolas públicas sairiam mais caras para eles. Somados esses dois fatos, o investimento em educação pública para a maioria da população foi muito baixo e o atraso relativo da região também foi acentuado por esse problema. No Sul e no Sudeste os imigrantes e os compromissos assumidos com eles asseguravam que houvesse mais escolas públicas e de melhor qualidade. Com isso, a construção interna de capital humano também contribuiu para a elevação das disparidades regionais.
4. Conclusões e implicações de política de desenvolvimento
As políticas de desenvolvimento do Nordeste até então têm focado em cinco eixos: (i) subsídios ao capital para atrair investimentos para a região, com foco especial na industrialização; (ii) investimentos em infraestrutura econômica, como estradas, portos, aeroportos etc.; (iii) obras e instalações para elevar a capacidade de convivência com a seca; (iv) transferências de renda para os mais pobres, (v) expansão do sistema de educação e saúde. Alguns devem questionar a inclusão de expansão do sistema de educação e mesmo as obras em infraestrutura. Mas se considerarmos como benchmark adequado a distribuição de recursos do governo federal pelo PIB dos estados, ou ainda mais adequadamente a arrecadação no estado ou município, os gastos nessas áreas no Nordeste têm sido proporcionalmente maiores do que a arrecadação na região. Por conseguinte, há transferências de recursos de outras regiões para o Nordeste, o que pode ser caracterizado como uma política de redução das desigualdades regionais. O mesmo acontece com as transferências de renda para a população, seja ela através de Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada (BPC) ou benefícios da previdência.
Apesar de tais políticas, principalmente as três primeiras, terem perdurado desde meado do século passado, a proporção do PIB per capita entre as regiões não se alterou muito. Ou seja, essas políticas parecem não ter dado muitos resultados. As duas últimas, quando foram expandidas desde o Governo Lula a partir de 2003, trouxeram algum resultado, mas ainda assim muito pequeno, quando se compara ao tamanho do desafio. Isso indica que são necessárias políticas mais eficazes.
Talvez uma dificuldade das políticas implementadas até então seja que elas não partiram do diagnóstico correto das causas das desigualdades regionais. Nesse sentido, tomando-se em consideração a causa fundamental apontada acima, talvez seja possível se pensar que o Nordeste, a partir de suas relações entre classes sociais, exportou sua tendência a estagnação econômica para o resto do Brasil. A estrutura institucional criada no país bem reflete as necessidades regionais. As economias do Sul e do Sudeste, após a imigração de europeus, amadureceu dentro de um padrão de espoliação do estado por setores das classes média e alta, sem gerar postura desenvolvimentista, ou ao menos alocar os recursos públicos de forma eficiente. Prevaleceu a concentração de recursos no Governo Federal e o domínio de uma aliança de classes na sua formação que faz com que as políticas não sejam eficientes.
Para mudar tal desafio e fazer com que o Brasil volte a crescer mais rápido e o Nordeste possa reduzir o atraso relativo, são necessárias políticas mais bem desenhadas e diferentes do que se implementou até então. Uma primeira política fundamental é criação de um sistema de avaliação das políticas implementadas que possuam gatilhos para sua desativação se as avaliações mostrarem que não estão dando resultados. A condução dessa avaliação deve ser feita por universidades e sempre com a participação de uma que seja de fora da região. O objetivo é assegurar que elas não sejam capturadas pelas elites locais, como ocorreu com os tribunais de conta, tanto estadual como federal.
Uma segunda política seria transformar a Sudene num órgão de fomento da educação na região, com apoio a municípios e estados, mas com ações sempre pautadas por desempenho relativo das escolas em testes mais frequentes e mais profundos do que os do Ministério da Educação. O fomento pode ser feito via bonificação de professores e diretores de escolas, por exemplo. Além desse foco direto na educação, ela poderia também direcionar recursos para os municípios investirem em infraestrutura urbana, a partir do desempenho de seus indicadores de evolução da educação. O fundamental é valorizar o desempenho e estimulá-lo via ganhos pecuniários para os municípios, professores, e demais gestores da educação.
Também pode ser importante racionalizar os investimentos em infraestrutura econômica a partir de critérios mais técnicos do que os atuais. Os investimentos em infraestrutura no Nordeste, realizados pelo Governo Federal, têm sido feitos principalmente a partir de indicações de deputados e senadores. A definição deles é feita principalmente por critérios políticos e muitas vezes sem fundamento na eficiência. A facilidade em sua aprovação e início devido a agilidade do ministério, autarquia e/ou estatal em que ele se enquadra, além de outros critérios aparentemente arbitrários para o cidadão comum, têm sido mais relevantes do que o impacto social, econômico ou ambiental. Por isso, é importante mudar o processo de definição desses critérios para que haja uma determinação mais técnica dos investimentos. A Sudene poderia ter na sua estrutura uma diretoria técnica para definir e acompanhar esses investimentos.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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