Descarbonização: nosso trabalho não terminou
Brasil conteve desmatamento, mas narrativa oficial de privilegiada matriz energética e biocombustíveis encobre o fato de que o País emite, e muito. Transportes ganhariam em redução de gases de efeito estufa com eletrificação.
O Brasil é descarbonizado? Não. O Brasil emite e, muito. Somos o sexto maior emissor e o quarto que mais liberou gases de efeito estufa (GEE) desde meados do século XIX. Mas emitimos do “jeitinho brasileiro”: ao contrário da maioria dos países, onde a grande preocupação é com energia, nosso alto nível de emissões é explicado principalmente pelo LULUCF. Essa sopinha de letras se refere ao inventário de emissões ou remoção de GEE em consequência do uso da terra, mudanças no uso do solo e florestas. Para mitigar essa elevada participação, nas duas últimas décadas foram criados programas e planos para reduzir as emissões. Seu sucesso gerou um sentimento de comodismo: enfrentado o desafio de combater o desmatamento – compromisso do país nos acordos e políticas climáticas – nossa contribuição já teria sido feita nos demais setores. Mas ela mal começou.
As políticas de conservação implementadas a partir de 2004 contribuíram significativamente para conter o desflorestamento. Melhorias no monitoramento – inclusive com dados de satélite –, restrições ao acesso a crédito para municípios campeões em área desmatada e outras medidas foram componentes de uma abordagem que sem dúvida se provou eficaz: sem elas, estima-se que o desmatamento atingiria uma área mais do que o dobro daquela que observamos.
Mas nem tudo são flores: o outro lado da moeda é que essa menor participação relativa de LULUCF nas emissões desloca o foco para energia e agricultura, os dois outros maiores contribuintes. A narrativa oficial é de que nossa privilegiada matriz energética, com acentuada predominância de fontes e tecnologias de energia limpa, principalmente no setor elétrico, é suficiente para um futuro descarbonizado. Já fizemos nossa parte, agora merecemos os louros. Mas olhando as perspectivas para o amanhã, o quadro não é tão animador: esses setores têm aumentado sua participação relativa e absoluta nas emissões de GEE. E, se quisermos atender aos compromissos de redução firmados perante a comunidade internacional, vamos precisar voltar a agir.
Um dos segmentos que merecem atenção é o de transportes. Alguns alegam que já temos a resposta na forma de biocombustíveis. Segundo estes, a eletrificação dos transportes e da mobilidade “não é solução pra nós”. As razões para isso são muitas: nosso potencial e a tradição de sucessos com o etanol e o biodiesel; as supostas desvantagens nos veículos elétricos (VEs), como preços elevados em face do perfil de renda do país; insegurança quanto à autonomia das baterias, e com relação ao volume de emissões quando comparado aos biocombustíveis. Não menos importante, o aumento da penetração de VEs pressionaria o sistema elétrico – redes e produção de eletricidade – podendo até causar aumento de emissões. Todavia, botando a lupa, esses argumentos não sobrevivem.
Entre veículos elétricos e biocombustíveis, é possível saber quem emite menos GEE. Através de uma análise do ciclo de vida completo (LCA, da sigla em inglês), considerando desde a produção das baterias e do veículo até sua aposentadoria, ainda assim os VEs levam vantagem. No caso do etanol, já se considera desde o plantio ou sua fase AGRO, onde o uso da cana tem efeito positivo na geração de créditos de carbono. E uma avaliação futura que atente para os impactos das mudanças climáticas sobre a agricultura frente às possibilidades de expansão das fontes renováveis também confere veredito favorável aos VEs.
Outra vertente de crítica vem do impacto que a eletrificação da mobilidade causaria na rede. Em artigo recente, Needell e coautores contribuem para desmistificar o problema. Analisando efeitos da eletrificação da mobilidade sobre investimentos na produção e nas redes de eletricidade, os autores demonstram que o resultado pode realmente não ser bom. Haveria excesso de produção de renováveis em períodos fora de pico ou durante os horários de maior geração das fazendas solares. Seus estudos demonstram que é possível mitigar ou até eliminar essas ineficiências com estratégias que melhor suportem a adoção de VEs e da rede, aproveitando melhor a expansão de geração distribuída – solar e eólica.
Deixar o mercado atuar de modo completamente descentralizado pode não ser ótimo. O planejamento da expansão do sistema elétrico aqui contribui para melhorar as decisões de localização. Teríamos assim mais pontos de recarga perto dos locais de trabalho, uma opção que permite aproveitar melhor a produção de energia das fazendas solares – que também aqui crescem a passos rapidíssimos – para carregar os VEs durante períodos do dia. A diferença entre as decisões otimizadas e as erradas pode ser considerável. Nos números de Needell, estas levariam a um aumento ineficiente da capacidade de geração de energia elétrica de cerca de 20% para atender à demanda de carregamento de VEs. Em suma, se fizer bem-feito, não haverá problemas.
Não se trata de diminuir as conquistas alcançadas: o Brasil lidera o mundo na produção de energia renovável, e certamente os demais países têm muito a aprender conosco. Mas liderança é um esforço contínuo. Ainda é cedo para descartar iniciativas como a eletrificação da mobilidade, principalmente considerando que energia e agricultura mostram tendências de aumento de emissões de GEE, tanto absolutas como relativas. Se ficarmos parados, corremos o risco de ficar para trás. E o planeta não espera ninguém.
Esta coluna foi publicada originalmente em 11/07/2023, terça-feira, pelo Broadcast da Agência Estado.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva da autora, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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