Disparidades regionais do endividamento familiar e os vieses comportamentais
O estudo[1] analisa endividamento familiar nacional (2017-24), focando disparidades regionais e possível influência de fatores comportamentais nas decisões de consumo e crédito, a partir do índice de endividamento da PEIC/CNC.
Palavras-chave: endividamento familiar; economia comportamental; vieses cognitivos; desigualdades regionais; crédito no Brasil.
1. Introdução
Nos últimos anos, o Brasil testemunhou uma expansão expressiva do endividamento das famílias, processo que se intensificou de forma marcante a partir de 2020, no contexto da pandemia da COVID-19. Esse choque sanitário e econômico teve impactos profundos sobre o mercado de trabalho, a renda domiciliar e a percepção de risco das famílias, levando a uma deterioração das condições financeiras em larga escala. Ao mesmo tempo, a pandemia atuou como catalisador de uma rápida transformação no sistema financeiro, impulsionando a digitalização bancária, a popularização dos cartões de crédito e a adoção massiva de meios de pagamento instantâneos, como o Pix.
Esse avanço na inclusão financeira, embora positivo em termos de acesso, também se revelou ambivalente: facilitou o ingresso de milhões de brasileiros no sistema formal, mas também ampliou a exposição de famílias vulneráveis a instrumentos de crédito caros, de curto prazo e pouco transparentes. Entre 2015 e 2023, o número médio de contas por pessoa saltou de 2,1 para 5,5, refletindo o crescimento das fintechs e dos bancos digitais. Em 2023, o Pix superou 42 bilhões de transações, com mais de 70 milhões de novos usuários integrados ao sistema bancário. No entanto, para muitas famílias, essa inclusão veio sem o correspondente fortalecimento de capacidades de planejamento financeiro, resultando em maior fragilidade e dependência de modalidades onerosas de crédito.
Esse cenário não se distribuiu de forma homogênea pelo território nacional. Ao contrário, observam-se expressivas disparidades regionais quanto ao tipo, intensidade e dinâmica do endividamento. Enquanto algumas regiões apresentam dívida elevada atrelada a financiamentos estruturados e otimismo financeiro, outras enfrentam armadilhas crônicas, como o uso recorrente de cartão de crédito para consumo básico, em um contexto de informalidade, instabilidade de renda e baixa oferta de alternativas, o que pode ser um grande problema, especialmente se vier acompanhado de inadimplência.
Diante disso, este estudo busca analisar a evolução do endividamento das famílias brasileiras entre 2017 e 2024 com foco nas diferenciações regionais e nas possíveis interações entre fatores macroeconômicos e determinantes relacionados aos vieses comportamentais. A ideia central é que o avanço do crédito no período, embora promissor do ponto de vista da inclusão, foi desigual e, em muitos casos, disfuncional. De um lado, choques como a pandemia, a aceleração inflacionária e o ciclo de alta dos juros agravaram a pressão financeira sobre os domicílios. De outro, vieses cognitivos, impulsividade, e normas sociais podem ter influenciado decisões financeiras subótimas por parte das famílias, especialmente em ambientes marcados por incerteza e carência de estrutura institucional.
Ao mobilizar os aportes da economia comportamental como lente complementar à análise macroeconômica, este estudo busca aprofundar a compreensão dos fatores que levaram tantas famílias brasileiras a adotar padrões de consumo e uso do crédito que, em muitos casos, culminaram em trajetórias persistentes de vulnerabilidade financeira. Longe de serem meras respostas mecânicas a choques agregados, essas decisões revelam a interação entre restrições materiais, heurísticas cognitivas e incentivos estruturais descoordenados. A pandemia da COVID-19, nesse horizonte temporal, emerge como um ponto de inflexão crítico — não apenas por seus efeitos diretos sobre emprego e renda, mas também pela intensificação da dependência de mecanismos de crédito para a sustentação do consumo básico em um contexto de incerteza elevada e proteção social insuficiente.
Com esse pano de fundo, a próxima seção examina a evolução do endividamento das famílias brasileiras entre 2017 e 2024, com especial atenção para os ciclos econômicos, os choques pandêmicos e os mecanismos de resposta financeira adotados ao longo desse período.
2. A Evolução Recente do Endividamento das Famílias no Brasil
O Gráfico I apresenta a evolução do índice de endividamento das famílias brasileiras entre os anos de 2017 e 2024 tendo como base de dados a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (PEIC) da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC)[2]. As evidências sugerem, de certa forma, um processo de transformação estrutural nas finanças domésticas do país.
No início da série, o percentual de famílias endividadas era de 60,80%, mantendo-se praticamente estável em 2018 (60,28%). Essa estagnação pode ser interpretada como reflexo do contexto econômico da época, ainda marcado pelos efeitos da crise econômica de 2015–2016, com elevado desemprego, restrição ao crédito e perda de poder de compra das famílias.
A partir de 2018, observa-se um movimento de crescimento contínuo no índice de endividamento, que avança em 2019 para 63,64%, 66,46% em 2020, e alcança 70,88% em 2021. Este aumento progressivo pode estar associado a um cenário de juros mais baixos, maior oferta de crédito por parte das instituições financeiras e, sobretudo, às medidas emergenciais adotadas durante a pandemia da COVID-19, que estimularam o consumo e o acesso facilitado ao crédito, especialmente entre as famílias de menor renda com menor poupança. A combinação entre renda reprimida, estímulos fiscais e aumento do consumo contribuiu para a expansão do endividamento. Em muitos casos, o crédito foi usado como estratégia para manter o padrão de vida durante a crise.
Nessa análise, o ano de 2022 marca o ápice desse movimento, com o percentual de famílias endividadas atingindo 77,92% — o maior patamar da série. Esse salto expressivo pode ser entendido como o resultado do acúmulo de dívidas nos anos anteriores, aliado à persistência de um ambiente econômico ainda instável, com inflação elevada, perda de poder de compra e retomada econômica lenta. A ampliação do crédito consignado, do uso do cartão de crédito e das compras parceladas, especialmente entre famílias de baixa renda, também contribuiu para essa elevação.
Nos anos seguintes, o índice se estabiliza: 77,80% em 2023 e 77,88% em 2024. Essa relativa estabilidade em patamares elevados sugere que o endividamento pode ter atingido um nível de saturação, em que a maior parte das famílias já compromete fatia significativa da renda com dívidas, tornando improvável um crescimento adicional expressivo sem alterações estruturais no mercado de crédito ou melhorias substanciais na renda. Além disso, esse platô pode refletir um teto máximo de endividamento suportável por grande parte das famílias brasileiras, especialmente em contextos de informalidade, desemprego ou renda variável.
Esse cenário suscita implicações relevantes para o desenho de políticas econômicas. De um lado, a ampliação do acesso ao crédito pode ser vista como vetor de inclusão financeira e estímulo ao dinamismo econômico, ao permitir maior liquidez e suavização do consumo ao longo do tempo. De outro, a manutenção de níveis elevados e persistentes de endividamento compromete a resiliência das famílias, limita sua capacidade de consumo futuro e eleva o risco de inadimplência sistêmica — elementos que, em conjunto, podem exercer pressões negativas sobre a demanda agregada e o próprio ciclo econômico.
Para compreender com maior granularidade as dinâmicas subjacentes a esse processo, torna-se fundamental desagregar a análise e explorar como o endividamento se manifesta nas distintas regiões do país, em que estruturas econômicas, padrões de consumo e condições de acesso ao crédito conformam realidades heterogêneas e, por vezes, contrastantes. É essa heterogeneidade regional que orienta a próxima seção deste estudo.
3. Disparidades Regionais no Endividamento das famílias brasileiras de 2017-2024.
O comportamento do endividamento das famílias brasileiras nas suas diversas regiões é examinado no Gráfico 2. Pode-se observar que todas as regiões registraram aumento do endividamento médio das famílias ao longo desse período, refletindo choques econômicos e respostas de políticas adotadas em nível nacional. [3]
Porém, cada região traçou uma curva própria, influenciada pela estrutura socioeconômica e condições locais, como renda, emprego e acesso ao crédito. Uma análise detalhada dessas curvas regionais, em diálogo com o contexto macroeconômico, permite compreender tanto os movimentos conjunturais de alta e baixa do endividamento quanto as persistentes disparidades regionais na vulnerabilidade financeira das famílias.
No início da série histórica, a Região Sul já se destacava como a mais endividada do país, com 81,5% das famílias comprometidas com algum tipo de obrigação financeira. Em contraste, as Regiões Centro-Oeste (61,9%), Nordeste (61,7%) e Norte (61,0%) exibiam níveis intermediários de endividamento. O Sudeste, por sua vez, registrava o menor percentual entre as grandes regiões, com 57,3% das famílias endividadas naquele período inaugural.
O maior percentual para a região Sul pode ser reflexo de uma economia consolidada, com alta renda, forte bancarização e cultura de consumo a prazo. O acesso facilitado ao crédito e o uso frequente de modalidades como cartão e financiamentos elevaram a proporção de famílias com dívidas, ainda que nem todas estivessem inadimplentes. Na outra ponta, o que pode ajudar a explicar a posição do Sudeste, talvez esteja relacionado a grande parte da população com maior aversão ao crédito naquele momento, ainda sob efeitos da recessão de 2015–2016. Quanto ao Nordeste e Norte, a combinação de alta informalidade, renda reduzida e cobertura de programas sociais como o Bolsa Família pode ter limitado até então o uso de crédito formal, fazendo com que parte significativa das dívidas ocorresse por meio de canais informais.
Por fim, embora o Centro-Oeste tenha uma base econômica fortemente ancorada no agronegócio, as capitais da região (Brasília, Goiânia, Campo Grande e Cuiabá) concentram grande parte da população urbana e exibem elevado grau de formalização do mercado de trabalho, especialmente por conta da presença do funcionalismo público (notadamente no Distrito Federal). Essa formalização facilita o acesso ao crédito bancário, particularmente nas modalidades de crédito consignado, financiamento imobiliário e crédito pessoal. Famílias com vínculos estáveis de renda são mais propensas a acessar o sistema financeiro formal, o que pode ter elevado a incidência estatística de endividados — ainda que não necessariamente de inadimplentes.
Até o período imediatamente anterior à pandemia da COVID-19, observa-se uma tendência generalizada de elevação dos índices de endividamento em quase todas as macrorregiões brasileiras. No Norte, o percentual de famílias endividadas passou de 61,0% em 2017 para 67,0% em 2019; no Centro-Oeste, a elevação foi ainda mais expressiva, saltando de 61,9% para 72,1% no mesmo intervalo. O Sudeste, embora partindo de um patamar mais baixo (57,1% em 2017), também apresentou crescimento contínuo, atingindo 60,6% em 2019. O Nordeste, após leve recuo entre 2017 (61,7%) e 2018 (58,6%), retomou a trajetória ascendente, alcançando 59,5% no ano anterior à crise sanitária.
A única exceção a esse movimento foi a Região Sul, que partiu de um patamar já elevado — 81,5% em 2017 — e apresentou recuos sucessivos até 2019, quando atingiu 78,6%. Essa trajetória discrepante pode refletir, ao menos em parte, uma dinâmica de saturação do crédito: tendo historicamente operado com altos níveis de endividamento, o Sul pode ter vivenciado uma desaceleração na expansão do crédito às famílias, limitando o espaço para crescimento adicional nesse indicador. Tal comportamento contrasta com o ímpeto observado nas demais regiões, em que ainda havia margem para expansão do endividamento, sinalizando padrões distintos de maturidade financeira e acesso ao crédito no território nacional.
Essa interpretação se alinha à análise desenvolvida na seção precedente, segundo a qual a elevação do endividamento no período pré-pandêmico foi catalisada, em grande medida, pela expansão da oferta de crédito em um ambiente de condições monetárias relativamente acomodatícias. Nesse cenário, regiões com menor inserção prévia nos circuitos formais de crédito — como o Norte, que registrou a maior variação no período (alta de 11 pontos percentuais entre 2017 e 2019) — responderam de maneira mais sensível à ampliação dos instrumentos financeiros disponíveis. Em contraste, o Sul, cuja penetração do crédito já se encontrava em níveis estruturalmente elevados, exibiu um comportamento mais inercial, compatível com um estágio mais avançado de saturação no ciclo de endividamento das famílias.
A partir de 2020, com o advento da pandemia da COVID-19, observa-se uma inflexão marcante nas trajetórias de endividamento das famílias brasileiras, caracterizada por uma aceleração expressiva e generalizada em todas as macrorregiões. O choque exógeno imposto pela crise sanitária — com paralisações abruptas da atividade econômica em razão dos lockdowns e das medidas de distanciamento social — resultou em uma queda aguda da renda domiciliar, especialmente entre trabalhadores informais, autônomos e ocupações de baixa qualificação.
Esse colapso distributivo começa a se refletir diretamente nas estatísticas de endividamento: entre 2019 e 2020, o percentual de famílias endividadas saltou de 67,0% para 72,0% no Norte; de 59,5% para 68,4% no Nordeste; de 72,1% para 65,5% no Centro-Oeste (com recuo pontual, mas retomada posterior); de 60,6% para 63,2% no Sudeste; e de 78,6% para 75,6% no Sul. A magnitude da elevação foi particularmente pronunciada nas regiões historicamente menos expostas ao crédito, como o Nordeste, cuja variação foi de 8,9 pontos percentuais em apenas um ano.
A contração abrupta do mercado de trabalho formal, combinada à intensificação da incerteza econômica durante a pandemia, levou muitas famílias brasileiras a recorrer ao crédito não como instrumento de alavancagem do consumo, mas como estratégia emergencial de subsistência. Em um contexto de forte erosão da capacidade de geração autônoma de renda, despesas essenciais como alimentação, medicamentos e moradia passaram a ser financiadas por meio de instrumentos creditícios. Diante da magnitude do colapso econômico, o governo federal implementou um conjunto abrangente de medidas emergenciais de natureza fiscal, creditícia e monetária.
No plano fiscal, destacou-se a criação do Auxílio Emergencial, que atendeu mais de 68 milhões de pessoas em 2020, injetando liquidez diretamente nas camadas mais vulneráveis da população e atenuando a contração do consumo agregado. Adicionalmente, foram instituídas políticas de preservação do emprego e da renda, como o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda (BEm), que autorizou a redução proporcional de jornadas e salários com compensações públicas. No eixo creditício, foram implementadas linhas de financiamento com condições favorecidas para pequenos negócios, a exemplo do Pronampe e do Programa Emergencial de Acesso a Crédito (PEAC), com vistas a preservar a capacidade operacional de micro, pequenas e médias empresas.
Do lado monetário, o Banco Central adotou postura claramente expansionista, promovendo sucessivos cortes na taxa básica de juros, que atingiu seu piso histórico de 2% ao ano em agosto de 2020. Além disso, houve flexibilização nas exigências de capital e liquidez do sistema bancário, com o objetivo de ampliar a capacidade das instituições financeiras em sustentar a oferta de crédito. Apesar da robustez dessas respostas, o endividamento das famílias continuou sua trajetória ascendente, sobretudo nas regiões de menor resiliência estrutural, refletindo não apenas os limites das intervenções públicas, mas a profundidade e a persistência dos desequilíbrios socioeconômicos exacerbados pela crise sanitária.
O resultado foi uma elevação expressiva do endividamento agregado, reflexo da conjunção entre políticas públicas emergenciais que, embora fundamentais, tiveram eficácia parcial, e uma conjuntura de crise que impôs às famílias escolhas financeiras complexas, muitas vezes tomadas sob condições de racionalidade limitada.
A evolução regional do endividamento das famílias brasileiras entre 2022 e 2024 revela trajetórias assimétricas, que expressam tanto a heterogeneidade estrutural dos mercados de trabalho e dos sistemas financeiros regionais quanto os efeitos residuais da pandemia sobre os padrões de comportamento financeiro. Durante esse triênio, observa-se uma tendência de estabilização em todas as macrorregiões, ainda que em níveis historicamente elevados, sem evidência robusta de reversão significativa.
A Região Sul, que havia atingido o pico de 90,7% em 2023, encerra 2024 com um leve recuo para 88,1%, permanecendo, de todo modo, como a mais endividada do país. O Sudeste, por sua vez, mantém-se praticamente estável: 80,5% em 2022, 79,3% em 2023 e 77,1% em 2024 — uma variação de 3,4 pontos percentuais, ainda insuficiente para caracterizar uma inflexão estrutural. Esses resultados podem ser interpretados como reflexo de três fatores combinados: (i) a recomposição mais rápida do emprego formal, especialmente nos setores de alta produtividade e renda, predominantes nessas regiões; (ii) a maior capacidade de desalavancagem das famílias de renda média e alta, com acesso a instrumentos de planejamento financeiro e valorização de ativos — notadamente de renda fixa, em função da elevação da Selic; e (iii) a emergência de padrões comportamentais mais cautelosos na tomada de crédito, em decorrência de efeitos cicatriciais (scarring effects) associados à pandemia, conforme documentado por Guiso et al. (2013) e Malmendier & Nagel (2011).
Em contraste, o Nordeste apresentou uma trajetória nitidamente ascendente: de 73,2% em 2022 para 75,3% em 2023, e 78,7% em 2024 — o maior crescimento acumulado no período (5,5 pontos percentuais), sinalizando uma dinâmica de endividamento mais resiliente à reversão, possivelmente associada à recuperação mais lenta da renda, maior informalidade e fragilidade das redes de proteção financeira. Já o Norte mostrou flutuação modesta: 72,2% em 2022, 76,8% em 2023 e 76,6% em 2024, estabilizando-se em patamar elevado. O Centro-Oeste oscilou dentro de uma faixa estreita: 73,3% em 2022, 73,8% em 2023 e 74,3% em 2024, o que indica acomodação em níveis altos, sem tendência clara de reversão.
Voltando ao Nordeste, essa persistente trajetória de endividamento na região não pode ser compreendida apenas à luz de indicadores agregados: ela talvez possa revelar também uma dinâmica qualitativamente distinta, em que o crédito atua mais como substituto de políticas públicas estruturantes do que como instrumento de alavancagem produtiva ou mobilidade social. Nesse contexto, torna-se fundamental examinar com maior profundidade as modalidades específicas de financiamento utilizadas pelas famílias brasileiras, pois a natureza dos instrumentos creditícios acessados – sua estrutura de custos, prazos, indexadores e mecanismos de cobrança – influencia decisivamente tanto o grau de fragilidade financeira quanto as possibilidades de superação do endividamento crônico. A seguir, portanto, analisamos a composição das dívidas por tipo de crédito, buscando identificar padrões regionais, segmentações socioeconômicas e implicações comportamentais que ajudem a qualificar o debate sobre as estratégias de mitigação do endividamento excessivo no país.
4. Análise das Modalidades de Endividamento (2017-2024)
Neste ponto da análise, impõe-se examinar com maior profundidade a estrutura qualitativa do endividamento nas distintas regiões do país — dimensão que será explorada a partir do Gráfico 3. Os dados de 2024 revelam uma configuração heterogênea entre as macrorregiões brasileiras, refletindo a confluência de condicionantes socioeconômicos, culturais e institucionais que moldam os padrões locais de crédito. Mais do que variações quantitativas no grau de endividamento, o que se observa é uma diversidade na composição das modalidades utilizadas, o que exige leitura atenta às especificidades territoriais e às formas concretas de inserção das famílias no sistema financeiro.
A análise revela que as famílias acessam diferentes instrumentos de financiamento conforme o contexto regional em que estão inseridas, respondendo a marcadores como estrutura de renda, grau de formalização do trabalho, densidade bancária e até normas sociais relacionadas ao consumo, à poupança e ao risco. A predominância de modalidades de crédito de alto custo, como o cartão de crédito rotativo e o crédito pessoal não consignado, tende a ser maior nas regiões historicamente mais vulneráveis, ao passo que o maior uso de linhas mais baratas e organizadas — como o crédito consignado, o financiamento de veículos e o crédito habitacional — aparece com maior intensidade nas regiões com maior formalização do mercado de trabalho e maior acesso a instrumentos de planejamento financeiro. Trata-se, portanto, de um fenômeno multicausal e espacialmente diferenciado, cuja compreensão requer abordagem desagregada e sensível às desigualdades territoriais que estruturam o acesso ao crédito no Brasil.
O dado mais marcante é o uso quase universal do cartão de crédito como principal instrumento de dívida, com destaque para o Nordeste, onde 92,9% das famílias endividadas recorrem a essa modalidade, superando o Sudeste (88,4%), Sul (79,6%), Norte (75,1%) e Centro-Oeste (72,4%). Esse dado, além de expressivo, é revelador: indica que o cartão de crédito se tornou o principal mecanismo de financiamento cotidiano de famílias brasileiras, especialmente as nordestinas, muitas vezes não como opção estratégica de consumo, mas como recurso emergencial para suprir a insuficiência de renda e compensar a falta de acesso a outras modalidades de crédito. Esse predomínio do cartão de crédito não deve ser interpretado unicamente como uma escolha autônoma do consumidor, mas como expressão de uma arquitetura financeira assimétrica, na qual a ampla disponibilidade desse meio de pagamento coexiste com barreiras significativas ao acesso a modalidades mais seguras e estruturadas de crédito.
Na região Nordeste, onde o uso do cartão apresenta os níveis mais elevados do país, essa preferência pode estar menos vinculada a estratégias de planejamento financeiro e mais associada a um contexto de baixa renda per capita, informalidade laboral persistente e inclusão financeira precária — fatores que limitam o acesso a alternativas de crédito menos onerosas, como o crédito consignado ou o financiamento com garantias reais.
Importa, nesse ponto, destacar que o cartão de crédito, em si, não constitui necessariamente um instrumento financeiro deletério. Quando utilizado de forma planejada — com quitação integral da fatura e controle intertemporal dos gastos — ele pode operar como facilitador de consumo racional. Contudo, seu mau uso, especialmente em contextos de vulnerabilidade econômica, tende a acentuar desequilíbrios orçamentários, transformando-se em vetor de endividamento crônico. Estudos como o de Meier e Sprenger (2010) evidenciam que indivíduos com forte viés do presente são mais propensos a recorrer ao crédito rotativo do cartão, acumulando dívidas mesmo diante de taxas de juros exorbitantes.
Segundo a PEIC/CNC, em novembro de 2024, 83,8% dos consumidores endividados relataram possuir dívidas nessa categoria. Embora a pesquisa não forneça a taxa de inadimplência específica para o cartão de crédito, a prevalência dessa modalidade no endividamento total sugere que ela desempenha um papel significativo nos níveis gerais de inadimplência observados. Nesse período, a inadimplência geral atingiu 29,4%, com 12,9% das famílias declarando não ter condições de quitar suas dívidas em atraso. Esses números refletem a complexidade do cenário de endividamento no país, no qual o cartão de crédito, devido à sua ampla utilização e às altas taxas de juros associadas, pode estar contribuindo substancialmente para os desafios enfrentados pelas famílias na gestão de suas dívidas.
Assim, a elevada participação do cartão de crédito no endividamento familiar, aliada à significativa taxa de inadimplência, evidencia uma dissonância entre a intenção de uso e a capacidade de gestão desse instrumento financeiro. Essa situação é particularmente preocupante nas regiões de menor renda, em que a sobrestimação da capacidade de pagamento e a falta de acesso a alternativas de crédito mais acessíveis tornam as famílias mais vulneráveis a ciclos de endividamento persistentes.
De outra forma, os dados do Gráfico 3 evidenciam a limitada inserção das famílias nordestinas em modalidades de crédito estruturado, como o crédito consignado ou financiamentos habitacionais e de veículos — instrumentos que pressupõem vínculos formais de trabalho, comprovação de renda estável e menor risco de inadimplência. No Nordeste, apenas 3,1% das famílias endividadas utilizam o crédito consignado.
De modo análogo, os financiamentos de automóveis (4,9%) e de imóveis (4,3%) apresentam baixa penetração na região. Isso contrasta com o Centro-Oeste (11,0% para ambos) e o Sul (8,9% para automóveis e 7,8% para imóveis), onde essas modalidades são mais expressivas. Esses dados apontam para um mercado de crédito regionalmente segmentado: enquanto o Sul e o Centro-Oeste conseguem acessar crédito de médio e longo prazo — geralmente de menor risco —, o Nordeste permanece restrito a modalidades caras, flexíveis e de curto prazo.
Essa configuração pode refletir, em grande medida, a elevada taxa de informalidade no mercado de trabalho nordestino, em que mais de 50% da força de trabalho ocupa posições sem registro formal, dificultando o acesso a crédito com desconto em folha ou garantias reais. Diante dessa restrição estrutural, o cartão de crédito assume um papel central — e substitutivo — no cotidiano financeiro das famílias. Trata-se, portanto, de um modelo de inclusão financeira precário, baseado em modalidades onerosas, voláteis e pouco sustentáveis no longo prazo.
Além do cartão e dos créditos estruturados, observa-se que o Nordeste também tem participação relativamente elevada no uso de carnês (18,5%), modalidade associada ao crediário tradicional de lojas e à compra de bens de consumo popular. Essa forma de endividamento, ainda que menos onerosa que o rotativo, reflete padrões de consumo parcelado característicos da população de renda mais baixa, que não dispõe de liquidez imediata para realizar compras à vista.
No tocante ao crédito pessoal, nota-se que ele representa uma parcela moderada do endividamento em todas as regiões, com destaque para o Centro-Oeste (9,9%) e o Norte (8,7%). No Nordeste, 7,7% das famílias endividadas reportam essa modalidade, o que pode ser visto como reflexo tanto do baixo acesso ao sistema financeiro tradicional quanto da cautela diante de empréstimos não consignados, que tendem a cobrar taxas mais altas.
Por fim, um aspecto adicionalmente relevante na composição regional das dívidas em 2024 é o uso residual de instrumentos financeiros tradicionais, como o cheque especial e o cheque pré-datado, cuja presença é minoritária em todas as regiões, embora com variações discretas. No Nordeste, 3,0% das famílias endividadas relataram uso de cheque especial e 0,9% recorreram ao cheque pré-datado — proporções superiores às observadas no Sul (1,1% e 0,0%, respectivamente) e no Norte (2,8% e 0,3%), mas ainda inferiores ao Sudeste, onde essas modalidades atingem 4,9% e 0,7%, respectivamente.
A baixa adesão a esses instrumentos pode refletir tanto o processo de substituição desses meios pelo cartão de crédito, que como visto, apresenta ampla penetração em todas as regiões, quanto a menor inserção bancária formal em parte significativa da população das regiões Norte e Nordeste. Nessas regiões, a bancarização continua limitada, dificultando o acesso a produtos vinculados a contas correntes tradicionais. Essa leitura é corroborada por dados do Banco Central, que indicam que mais de 50% do volume de crédito às famílias se concentra na região Sudeste, enquanto o Nordeste responde por menos de 15% do total — uma assimetria que revela não apenas desigualdades no acesso ao crédito, mas também a concentração estrutural da intermediação financeira no Brasil.
Em síntese, o gráfico das formas de endividamento por região oferece mais do que uma mera fotografia estatística: ele delineia uma verdadeira cartografia das desigualdades estruturais no acesso ao crédito no Brasil. O padrão predominante no Nordeste — centrado no uso de cartões de crédito e carnês — revela muito mais do que uma preferência individual: expressa uma realidade de exclusão financeira, marcada por informalidade laboral, baixa renda per capita e elevada volatilidade orçamentária. Trata-se de uma configuração em que as opções disponíveis para financiamento do consumo são restritas e, muitas vezes, oneradas por altos custos de transação e juros elevados. Assim, o tipo de dívida contraída reflete não apenas as condições materiais objetivas, mas também um ecossistema econômico que limita sistematicamente o acesso a instrumentos financeiros mais estáveis e sofisticados.
Compreender integralmente a dinâmica do endividamento regional exige ir além das explicações estritamente estruturais. Embora fatores como renda, grau de formalização do trabalho e nível de bancarização sejam determinantes importantes, eles não esgotam a complexidade do fenômeno. As modalidades de crédito escolhidas pelas famílias são também moldadas por processos cognitivos e emocionais que influenciam a forma como os indivíduos percebem riscos, projetam o futuro e tomam decisões sob restrições. É nesse ponto que a economia comportamental se impõe como uma lente interpretativa complementar — e indispensável. Os distintos perfis de endividamento observados entre as regiões não decorrem apenas de desigualdades objetivas no acesso a recursos e oportunidades, mas também de arquiteturas mentais e normas sociais localmente construídas, que influenciam sistematicamente os padrões de decisão.
Vieses cognitivos como o viés do presente (que leva à priorização de gratificações imediatas em detrimento de objetivos de longo prazo), a heurística da disponibilidade (que faz com que decisões se baseiem em experiências recentes ou salientes) e a ilusão de controle (a superestimação da capacidade de administrar dívidas) são particularmente relevantes para entender por que famílias inseridas em contextos socioeconômicos semelhantes podem adotar estratégias financeiras radicalmente distintas. Na seção seguinte, explora-se como esses mecanismos comportamentais contribuem para a construção de trajetórias específicas de endividamento, oferecendo uma chave interpretativa que transcende a dicotomia entre a restrição estrutural e o comportamento individual.
5. Vieses Cognitivos e Heterogeneidade Regional no Endividamento das Famílias
O endividamento das famílias brasileiras não é apenas uma história de números ou índices econômicos, mas também um retrato complexo de como decisões financeiras podem ser moldadas por vieses cognitivos, contextos de escassez e desigualdades estruturais. Como discutido anteriormente, a expansão da bancarização, impulsionada por fintechs, Pix e contas digitais, trouxe milhões para o sistema financeiro formal, mas também expôs vulnerabilidades comportamentais que podem agravar o superendividamento. Embora o cartão de crédito tenha se tornado a âncora do consumo nacional das famílias, as disparidades regionais revelam que fatores como renda, cultura local e acesso a serviços financeiros podem interagir com heurísticas mentais, criando padrões distintos de risco e inadimplência.
Assim, tradicionalmente, análises econômicas explicam movimentos de endividamento a partir de fatores macroeconômicos – como variações de renda, juros, desemprego e oferta de crédito. Contudo, para compreender plenamente esse fenômeno é importante incorporar também a ótica da economia comportamental, que considera os aspectos psicológicos e comportamentais na tomada de decisões financeiras pelos consumidores. Ela investiga como limitações cognitivas, heurísticas e vieses afetam as decisões, frequentemente levando a desvios sistemáticos em relação ao comportamento racional predito pela visão tradicional. Pioneiros como Kahneman, Tversky e Thaler evidenciaram que fatores emocionais, pressão social e arquitetura de escolha influenciam também decisões financeiras cotidianas. Esses estudos mostraram que consumidores não apenas respondem a incentivos econômicos objetivos, mas também são afetados por molduras cognitivas, normas sociais e preferências intertemporais inconsistentes.
Ao longo do período analisado, é notório que o comportamento financeiro das famílias brasileiras variou de forma significativa entre as regiões. Essa heterogeneidade sugere que elementos contextuais podem interagir com os mecanismos psicológicos subjacentes. Enquanto algumas regiões possam utilizar o crédito como ferramenta de distinção social ou consumo aspiracional, outras o empregam como mecanismo de sobrevivência e extensão do orçamento, em cenários de escassez e vulnerabilidade. O tipo de crédito utilizado, sua finalidade e a percepção dos seus custos estão imersas em representações simbólicas, que variam segundo a experiência social, o capital cultural e a infraestrutura financeira local.
Seguindo nessa direção e examinando as regiões, verifica-se que, na região Sul, por exemplo, observa-se o maior percentual de endividamento do país (88,1% em 2024). Essa evidência empírica, à primeira vista contraintuitiva — dado que se trata de uma das regiões com maior renda média e menor informalidade —, sugere que variáveis não estritamente econômicas estão em operação. A combinação de maior bancarização, acesso facilitado ao sistema financeiro formal e padrões socioculturais específicos podem ter consolidado uma norma subjetiva de consumo financiado, reforçada por mecanismos de validação social.
Nesse contexto, vale considerar o papel do viés de confirmação — identificado por Nickerson (1998) como a tendência a buscar e interpretar informações de modo a confirmar crenças preexistentes — aplicado à crença generalizada de que a aquisição financiada de bens duráveis, como automóveis e imóveis, constitui uma forma de “investimento seguro”. Tal crença ignora, por vezes, elementos objetivos de risco, como choques exógenos adversos (e.g., instabilidade macroeconômica ou eventos climáticos extremos, como os que têm afetado o Sul nos últimos anos). Esse comportamento pode ser interpretado como uma racionalidade limitada que privilegia narrativas passadas de sucesso no uso do crédito, reforçando uma trajetória de endividamento persistente.
Adicionalmente, é plausível a atuação da heurística da disponibilidade (Tversky & Kahneman, 1974), que leva os indivíduos a superestimar a probabilidade de eventos facilmente lembrados ou intensamente experienciados. Em uma economia regional amplamente bancarizada e marcada por forte presença de instituições financeiras tradicionais, a exposição recorrente a linhas de crédito — em especial crédito pessoal e financiamento de bens — tende a torná-las cognitivamente mais acessíveis do que estratégias de poupança, precaução ou planejamento intertemporal. A arquitetura de escolha predominante, centrada na oferta abundante e simplificada de crédito, amplifica esses efeitos.
Nesse sentido, o alto endividamento na região Sul pode não refletir apenas capacidade de pagamento, mas sim uma interação complexa entre variáveis estruturais (renda, bancarização), normativas (pressões sociais e culturais de consumo) e cognitivas (viés de confirmação, heurística da disponibilidade), compondo um modelo comportamental regionalizado de tomada de decisão financeira que demanda investigações empíricas mais específicas.
No caso da região Sudeste, observa-se o maior incremento absoluto no endividamento familiar entre 2017 e 2024, com um acréscimo de 20,0 pontos percentuais. Esse movimento, embora ancorado em fatores estruturais como elevada urbanização, renda média superior à média nacional e acesso ampliado ao sistema financeiro, exige uma interpretação que vá além das métricas convencionais. Trata-se de uma região marcada por aglomerações urbanas densas, forte desigualdade de renda e presença onipresente de estímulos de consumo — características que tornam particularmente relevante a atuação do efeito de demonstração (Duesenberry, 1949). Em contextos como os de São Paulo, Rio de Janeiro ou Belo Horizonte, o consumo não opera apenas como função da renda, mas como marcador simbólico de status e pertencimento social.
Essa pressão mimética — acentuada por redes sociais digitais e a publicidade pervasiva — conduz famílias, especialmente da classe média baixa, a padrões de consumo descolados de suas possibilidades intertemporais. Nessa dinâmica, o comportamento de endividamento pode ser compreendido como uma resposta a estímulos sociais reforçados por distorções cognitivas. Um deles é a ilusão de controle (Langer, 1975), pela qual indivíduos superestimam sua capacidade de manejar incertezas futuras (como variações de renda, emprego ou taxas de juros) ao assumir compromissos financeiros de longo prazo. Tal otimismo é exacerbado pela recorrência de narrativas meritocráticas e pela crença de que o esforço pessoal será recompensado economicamente no futuro — mesmo em contextos de instabilidade estrutural.
Além disso, destaca-se também a possibilidade da incidência do viés da ancoragem (Tversky & Kahneman, 1974), especialmente no modo como as famílias definem o montante que “podem” gastar a crédito: em vez de partirem de suas restrições orçamentárias reais, muitas ancoram suas decisões em limites oferecidos por instituições financeiras ou em padrões de consumo observados em seu entorno. Em regiões com oferta de crédito ostensiva e mecanismos de comparação social intensificados, essa ancoragem exógena favorece decisões de endividamento subótimas. Trata-se de um fenômeno que a literatura recente tem descrito como overborrowing driven by social salience (Bracha & Brown, 2012), no qual a visibilidade social do consumo, e não sua utilidade marginal, se torna o principal determinante da decisão de financiar.
Dessa forma, o aumento do endividamento na região Sudeste expressa uma racionalidade economicamente limitada, porém psicologicamente coerente, informada por normas sociais de status, vieses cognitivos e estruturas de incentivo que convergem para a manutenção de um padrão de consumo financiado e insustentável para uma parcela relevante da população.
Por sua vez, no Nordeste, a taxa de endividamento passou de 61,7% para 78,7% no período, mantendo trajetória linear de crescimento. Ao contrário do Sul e Sudeste, onde o crédito está associado relativamente à antecipação de consumo durável, aqui ele pode estar funcionando como extensão do orçamento mensal, muitas vezes sendo a única alternativa para garantir acesso a bens básicos.
O predomínio do cartão de crédito – utilizado por 92,9% das famílias endividadas nas capitais em 2024 – é sintomático dessa dinâmica, frequentemente associado à compra de alimentos, pagamento de contas e despesas emergenciais. Neste cenário, a escassez de renda e a informalidade no mercado de trabalho podem amplificar a atuação de vieses comportamentais clássicos. O mais evidente é o viés do presente: a urgência do consumo imediato suprime a capacidade de avaliação das consequências futuras, mesmo diante de taxas de juros elevadas. Essa miopia intertemporal é exacerbada pela “pobreza de atenção”, conceito de Mullainathan e Shafir (2013), segundo o qual a sobrecarga mental causada por dificuldades financeiras recorrentes prejudica a capacidade de planejamento e aumenta a suscetibilidade a decisões impulsivas.
Outro viés relevante é a contabilidade mental (Thaler, R. H. 1999), que fragmenta as dívidas por finalidade ou canal, dificultando a percepção da sobreposição de compromissos e contribuindo para o sobre-endividamento. A baixa presença de alternativas estruturadas de crédito (como consignado ou microcrédito produtivo) reforça esse quadro, em que decisões subótimas são menos uma falha individual do que o resultado de um ambiente de escolhas restritas.
Nesse contexto, políticas públicas eficazes devem combinar oferta de crédito mais barato e seguro com estratégias de comunicação adaptadas à realidade local. Explicitar o custo do crédito em termos concretos (por exemplo, “juros equivalentes a duas cestas básicas por mês”) pode ser mais efetivo do que ações genéricas de educação financeira. Além disso, o desenvolvimento de fintechs comunitárias reguladas pode ser uma via promissora para inclusão responsável e mitigação dos efeitos da escassez.
No Norte, onde 76,6% das famílias estão endividadas, a maior dependência de carnês (38,8%) e crédito informal pode refletir na aversão a instituições formais, como descrevem Akerlof e Shiller (2015). A heurística da confiança pode influenciar com que famílias prefiram acordos verbais com comerciantes locais — mesmo com juros implícitos altos — a interações burocráticas com bancos. No Centro-Oeste, por último, o crescimento contínuo do endividamento (+17,1 p.p.), mesmo com alta renda, pode ser reflexo da ilusão de liquidez: famílias em Brasília e cidades agropecuárias assumem financiamentos imobiliários acreditando que a estabilidade do funcionalismo público ou do agronegócio garantirá fluxo de caixa futuro — uma aposta arriscada em contextos de volatilidade econômica.
Um aspecto adicional importante é que a economia comportamental pode também ser útil para tentar explicar por que políticas nacionais uniformes falham em conter o endividamento. No Sul e Sudeste, onde o crédito consignado e os financiamentos são mais acessíveis, famílias são “nudgeadas” (Thaler & Sunstein, 2008) para modalidades menos arriscadas. Já no Nordeste, a ausência dessas opções — somada à baixa educação financeira — canaliza decisões para o cartão, um default perverso que explora a inércia cognitiva. A solução, portanto, requer intervenções regionalizadas. Campanhas de educação financeira precisam usar linguagem cotidiana para combater a heurística da representatividade, que leva famílias a subestimarem custos. No Sul, alertas sobre os riscos de financiamentos vinculados a status social podem mitigar o viés do presente.
Em última análise, o endividamento no Brasil pode ser considerado um fenômeno tão comportamental quanto econômico. As disparidades regionais não são acidentais, mas reflexo de arquiteturas de escolha desiguais, em que contextos de escassez, normas sociais e vieses cognitivos se entrelaçam. Como propõem Bertrand et al. (2006), políticas que alinhem incentivos estruturais à psicologia decisória são urgentes — não para eliminar o crédito, mas para transformá-lo de armadilha de dívida em ferramenta de inclusão. Enquanto o cartão de crédito seguir sendo a única âncora para milhões, a promessa da bancarização permanecerá incompleta, e as desigualdades regionais, um ciclo difícil de romper.
Abaixo, no Quadro I, sintetizam-se os principais vieses comportamentais identificados ao longo da análise, acompanhados de suas respectivas aplicações empíricas no contexto do endividamento regional brasileiro. A sistematização permite visualizar, de forma comparativa, como diferentes mecanismos cognitivos interagem com condições socioeconômicas locais, contribuindo para padrões distintos de tomada de decisão financeira nas macrorregiões. Trata-se de uma leitura complementar que articula evidências comportamentais com os dados regionais, reforçando a tese de que o endividamento das famílias no Brasil é também um fenômeno estruturado por percepções, atalhos mentais e contextos de escolha assimétricos.
Cabe ressaltar que o quadro não esgota o repertório possível de vieses relevantes. Outros mecanismos comportamentais — como o viés da aversão à perda, o excesso de confiança ou a dissonância cognitiva — podem estar presentes e influenciar as decisões financeiras das famílias, ainda que não tenham sido discutidos diretamente nesta seção.
Quadro I: Resumo dos Vieses Considerados e suas Aplicações
6. Considerações Finais e Proposições de Políticas
A redução sustentável do endividamento das famílias brasileiras exige uma abordagem dual: ajustes macroeconômicos que garantam estabilidade de preços e juros, combinados a políticas regionalizadas que combatam vieses comportamentais e desigualdades estruturais. A macroeconomia não é apenas importante — é condição sine qua non para o sucesso de qualquer iniciativa. Inflação elevada, por exemplo, corrói o poder de compra das famílias, especialmente as de baixa renda, forçando-as a recorrer a créditos emergenciais (como cheque especial) para cobrir despesas básicas.
Já os juros altos, ainda que necessários para conter pressões inflacionárias, encarecem o crédito e perpetuam ciclos de dívida. Portanto, políticas monetárias e fiscais responsáveis — como o controle rigoroso da inflação dentro da meta do Banco Central e a redução gradual da taxa Selic em cenários de estabilidade — são alicerces para que as famílias possam respirar financeiramente.
Intervenções públicas, por exemplo, para conter a inflação de alimentos como a de estoques reguladores e subsídios direcionados a itens da cesta básica em regiões vulneráveis podem aliviar pressões sem distorcer o mercado um gatilho crítico para o endividamento.
Por outro lado, a intensificação da necessidade de se praticar juros básicos alinhados à realidade regional pode minimizar a exclusão em regiões mais pobres, reduzindo o endividamento das famílias, equilibrando assim objetivos macro e micro de controle inflacionário. Por fim, reduzir impostos sobre empréstimos para agricultura familiar e agronegócio, desde que vinculados a metas de geração de emprego, poderia ajudar a estimular a economia real sem alimentar bolhas de consumo.
Contudo, essas medidas macro precisam também ser complementadas por intervenções microeconômicas e comportamentais, desenhadas para as realidades específicas de cada região. Afinal, como argumentam Kahneman e Tversky (1979): “decisões financeiras são profundamente influenciadas por contextos locais e vieses cognitivos, que não se resolvem apenas com números agregados.”
Na medida que se identificou a grande concentração das famílias com dívida no cartão de crédito, propostas de limitar juros rotativos por lei estadual para o cartão de crédito, como aprovado no Ceará em 2023 um teto de 100% ao ano para essa modalidade, pode ser pensado. Outra medida seria usar influencers locais para uma ampla campanha de conscientização que cartão de crédito não é renda, e que os juros compostos têm o poder de destruir as finanças familiares.
Outra medida seria fazer como no Paraná, a criação de alertas para financiamento de veículos e imóveis quando o financiamento comprometer um determinando montante da renda do indivíduo. Esse modelo foi inspirado na ideia de nudge de Thaler e Sunstein (2008). Outra opção seria criar contas automáticas de poupança vinculadas aos recebimentos na tentativa de minimizar gastos por impulsos e criar o hábito de se economizar recursos, como sugerido por Bryan et al. (2010).
Na região Norte quase 35% das dívidas são feitas com carnês informais. Nesse sentido, procurar formalizar essas dívidas com crediários locais via fintechs comunitárias e vinculação a treinamento em educação financeira pode ajudar a minimizar o problema. Também pode-se pensar em criar alertas de gastos em apps bancários para servidores públicos destacando o risco de comprometimento de renda com financiamentos longos.
Na verdade, não há solução mágica para a redução do endividamento das famílias, mas um caminho claro deve estar ancorado em políticas macroeconômicas que assegurem a estabilidade de preços e juros, criando as condições estruturais mínimas para que estratégias regionalizadas possam florescer. No entanto, torna-se cada vez mais evidente que políticas horizontais — como o programa federal Desenrola, que atua de forma uniforme em todo o território nacional — tendem a apresentar eficácia limitada frente à complexidade e heterogeneidade do endividamento no Brasil. Ao desconsiderar as especificidades socioeconômicas, culturais e institucionais de cada região, tais iniciativas correm o risco de operar como soluções paliativas, incapazes de romper com os mecanismos persistentes de vulnerabilidade financeira.
Em contrapartida, intervenções comportamentais bem calibradas — ancoradas em diagnósticos territoriais e sensíveis às práticas financeiras locais — são essenciais para evitar que famílias continuem reféns de armadilhas cognitivas, mesmo em contextos de inflação controlada e acesso ampliado ao crédito. Portanto, uma estratégia eficaz deve conjugar coordenação macroeconômica com granularidade territorial e sofisticação comportamental.
Por fim, é essencial reconhecer que as reflexões aqui propostas devem ser compreendidas como hipóteses de trabalho — indutivas, exploratórias, e ainda em estágio preliminar. Longe de constituírem verdades acabadas, trata-se de caminhos interpretativos que aguardam validação empírica rigorosa por meio de métodos econométricos, estudos longitudinais e experimentações de campo. Tal limitação, contudo, não reduz a potência heurística das inferências delineadas, nem diminui a urgência do debate que propomos. Consolidar essa agenda exige, entre outros esforços, a construção de bases de dados mais integradas, a replicação sistemática dos achados e o desenvolvimento de métricas comportamentais capazes de captar, com sensibilidade e precisão, a complexidade das decisões financeiras que se desenrolam nas múltiplas realidades brasileiras.
Mas, acima de tudo, compreender o endividamento das famílias não é apenas uma tarefa técnica: é também um imperativo ético e social. Tratar com seriedade os dilemas financeiros dos brasileiros é reconhecer que, por trás de cada gráfico, há vidas atravessadas por escolhas difíceis, contextos adversos e aspirações de bem-estar. Especialmente para famílias mais carentes e com maior vulnerabilidade, esse problema não é apenas uma variável econômica — é a expressão concreta das liberdades restringidas, das escolhas moldadas pela escassez e da assimetria no acesso a oportunidades reais de vida digna. Como lembra Amartya Sen: “Desenvolvimento consiste na remoção das principais fontes de privação de liberdade: pobreza, tirania, má governança, carência de oportunidades econômicas, negação de serviços públicos e repressão sistemática.” Que a pesquisa econômica siga, portanto, não apenas como ferramenta de análise, mas como instrumento de libertação — comprometida com a compreensão do real e com a transformação concreta das condições que limitam o florescimento humano.
Por fim, vale recorrer a um antigo provérbio, de origem incerta, mas frequentemente atribuído a Nelson Henderson: “O verdadeiro sentido da vida é plantar árvores sob cujas sombras você não espera se sentar.” Que este estudo possa ser uma dessas sementes — lançada com humildade científica, mas nutrida por um compromisso inegociável com a justiça econômica, a equidade social e a dignidade das decisões que moldam o cotidiano financeiro das famílias brasileiras.
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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
[1] Gostaria de agradecer os pesquisadores do Centro de Estudos do Nordeste do FGV IBRE, Professores João Mário, Rafael Barbosa, Vitor Miro e Isadora Osterno a respeito de seus comentários e sugestões valiosas a essa pesquisa. Agradecer também o suporte técnico dado pelos economistas Thiago Freitas e Pedro Avelino e em especial a economista Gabriela Rodrigues, cujo seu trabalho de conclusão do curso foi inspiração para esse estudo.
[2] A definição de endividamento adotada pela PEIC/CNC considera endividada a família que afirma possuir qualquer tipo de dívida, independentemente de estar em dia ou em atraso. Isso inclui dívidas contraídas por meio de: Cartão de crédito, Cheque especial, Cheque pré-datado, Crédito pessoal, Crédito consignado, Financiamento de carro, Financiamento de casa, Empréstimos com familiares e amigos, Carnês de lojas, outros tipos de financiamento ou empréstimos. A pesquisa é de caráter subjetivo e declaratório e é aplicada a chefes de família em domicílios urbanos das capitais estaduais e Distrito Federal, sendo a unidade observacional a família, e não o indivíduo.
[3] Diante da ausência de informações detalhadas sobre o plano amostral da pesquisa PEIC/CNC, especialmente no que tange à representatividade estatística das capitais estaduais, os índices regionais foram estimados por meio de ponderação dos resultados de cada capital pela população da respectiva unidade federativa, com base em dados oficiais. Embora a abordagem não incorpore os pesos amostrais originais da pesquisa, oferece maior aderência demográfica ao considerar o porte populacional dos estados, reduzindo distorções relevantes. Os valores apresentados no Gráfico 2 devem, portanto, ser interpretados como estimativas regionais aproximadas, úteis para comparações analíticas entre macrorregiões, mas sem pretensão de inferência estatística estrita.
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