Macroeconomia

Histórias surpreendentes em um país desigual

27 ago 2020

Ato nº 1 – A surpresa de José

Esta é a história de José, um agente de inclusão social em início de carreira, e as surpresas que o seu trabalho tem lhe proporcionado. Esses agentes formam uma carreira fictícia no setor público, presente apenas em alguns municípios imaginários. A função de José é encontrar oportunidades de emprego e renda para que as famílias pobres do município de Nova Estagira possam aumentar a sua renda e se emancipar da condição de pobreza. Ele visita a casa das pessoas, conhece os beneficiários de programas sociais e tenta encontrar oportunidades para que essas famílias possam conquistar a autonomia financeira.

O município que contratou e treinou José, apesar de pobre, fica no interior de um estado rico. É uma cidade com mais ou menos vinte mil habitantes, com PIB per capita de R$ 14,3 mil anuais. Aproximadamente 19% da população do município é beneficiária do Programa Bolsa Família.

Como primeira tarefa, José chega a uma casa com quatro pessoas – dois jovens, uma mãe e um padrasto. A renda da mãe vem de faxina e o padrasto é caseiro. O jovem mais velho concluiu o Ensino Médio há dois anos e já teve quatro empregos diferentes. O último era um emprego em que o jovem trabalhava informalmente em um mercadinho de uma cidade vizinha. Atualmente, ele também faz alguns bicos vendendo doces. No dia da visita, esse jovem já estava fora da escola há dois anos.

A reação de José é quase automática. Ele pensa nas características mais visíveis da família e do jovem vendedor de doces. Com essas informações, ele saca o menu costumeiro de programas sociais: Bolsa Família, microcrédito, capacitação profissional de curta duração, intermediação de mão-de-obra, educação financeira...

Pense, por um instante, o que você proporia a esse jovem, no lugar de José.

Mas José é uma pessoa curiosa e gosta de conhecer bem as pessoas com quem trabalha. Algumas medalhas em uma parede qualquer da casa lhe chamam a atenção e ele logo pergunta – qual o esporte? E a resposta revela uma realidade complemente inesperada para José – matemática.

Para a surpresa de José, o jovem doceiro, apesar da sua condição de vulnerabilidade, é hexacampeão na Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (OBMEP). Hexa! José está abismado. Como pode? Aqui? Nem o Brasil é hexa!

O pensamento não abandona José, dias a fio. E ele descobre que, todos os anos, são mais de 17,5 milhões de estudantes que participam da OBMEP, em três níveis. Ou seja, vencer a Olimpíada significa estar à frente de mais de cinco milhões de crianças e adolescentes em série equivalente.

José resolve estudar mais afundo o tema. Afinal, esse achado desafiava todos os seus preconceitos. Desafiava não apenas suas visões sobre a pobreza, mas, mais importante, afetava a forma como ele via os jovens em situação de pobreza.

Ato nº 2 – A ponta de um iceberg

Como alguém que puxa o fio de um novelo emaranhado, José foi encontrando casos e mais casos de pessoas absolutamente extraordinárias advindas de contextos de grave vulnerabilidade social. Jovens que, apesar de acumular camadas e mais camadas de vulnerabilidade, conseguiram dar prova de capacidades extremamente valorizadas.

Esse era o caso de Rivânia Silva, uma jovem sergipana, surda de nascença, que ganhou a medalha de bronze na OBMEP em 2007. Na época, ela ganhou a medalha sem nenhum tipo de preparação oficial na escola. Um caso raro em muitos aspectos, pois suas vitórias foram conquistadas mesmo diante das restrições impostas pela pobreza e pela deficiência – e em um ambiente que não se mostra muito receptivo também a outra dimensão da identidade de Rivânia: sua condição de mulher.  

Com base nos estudos do IMPA, responsável pela OBMEP, José ficou sabendo que as meninas têm desempenho igual aos meninos nas primeiras etapas, porém “desaparecem” nas fases subsequentes, perfazendo, no final, apenas ¼ dos medalhistas. Isso não ocorre porque as meninas vão mal nas fases finais, isso ocorre porque elas, infelizmente, não comparecem aos exames finais, mesmo tendo sido selecionadas nas provas iniciais! Aparentemente, as meninas enfrentam restrições de participação na OBMEP em uma medida muito maior do que os meninos (Araujo, 2018).

Apesar de ter se destacado, as oportunidades não surgiram no seu caminho. A luta de Rivânia continuou solitária – dela e de sua família. Depois de ter cursado Artes Cênicas na Universidade Federal de Sergipe, Rivânia, atualmente com 29 anos, mora com a mãe e tem dificuldades para conseguir uma colocação profissional (Brasil, 2019). O caso de Rivânia se soma a vários outros que, muitas vezes, nem ao Ensino Superior conseguiram chegar (Brasil, 2019).

José agora se perguntava: será que todos os premiados, em algum momento, encontram barreiras maiores que seus talentos?

Felizmente, diversos casos foram surgindo em que a olimpíada foi um trampolim para carreiras acadêmicas prolíferas e, ainda hoje, promissoras. Esse é o caso de João Diego Feitosa, ex-beneficiário do Programa Bolsa Família. João participou da OBMEP pela primeira vez em 2005, quando obteve menção honrosa. Em 2007, ganhou a medalha de ouro e isso abriu as portas para um programa de iniciação científica e outras bolsas de estudos que lhe possibilitaram uma trajetória admirável na engenharia (Brasil, 2019).

Atualmente, João está prestes a completar o mestrado no qual pesquisa um “reator de combustão em leito fluidizado” – parece complicado! O projeto já lhe rendeu uma patente sobre um método específico para extrair energia de rejeitos orgânicos como bagaço de cana, casca de castanha e lodo do esgoto.

O caso de João Diego acendeu a faísca de uma ideia. Ele mostra como o apoio financeiro pode catalisar habilidades excepcionais e viabilizar carreiras que podem trazer benefícios para a sociedade como um todo – começando pelas pessoas mais próximas, como seu irmão mais novo, Wesley, que seguiu seus passos e, depois de acumular prêmios na OBMEP, cursa física na Federal do Ceará.

A ideia, na verdade, surgiu como pergunta: será que é possível fazer diferente? Será que é possível desenhar uma política pública que identifique e promova esses jovens talentos antes que seja tarde demais?

Uma política dessa natureza, claro, só faria sentido se existissem muitos Diegos, Rivânias e Wesleys. Haveria tantos garotos e garotas talentosos no Brasil?

Era necessário fazer uma busca mais ampla e sistemática. José juntou então um grupo de pesquisadores e conseguiu provas de uma façanha: descobriu que, entre 2011 e 2017, 1.288 medalhas da OBMEP foram concedidas a jovens do Programa Bolsa Família. 2 desses jovens ganharam 6 medalhas, 14 jovens ganharam 5 medalhas, 21 jovens ganharam 4 medalhas, 64 jovens ganharam 3 medalhas.

A dificuldade em identificar esses estudantes em meio a bases de dados confusas e incompletas deu a José esta certeza: esses jovens são apenas a ponta de um iceberg de talentos que acabam perdidos todos os anos no Brasil. Milhares e milhares de jovens que são extremamente talentosos, mas não venceram olimpíadas, ou que venceram outras olimpíadas, ou cujas habilidades as olimpíadas não medem.

O estudo original apresentando esse resultado, a história do jovem hexacampeão e uma série de outros casos, estão relatados em Brasil (2018).

José teve muitas alegrias vendo histórias de superação. Nesse processo, contudo, ele também se deparou com histórias de jovens que, apesar do brilhantismo estudantil, permaneceram na pobreza depois de adultos. Jovens brilhantes olímpicos, mas também muitos e muitos jovens brilhantes não olímpicos. Em alguns momentos, bateu tristeza. Será que, nesse país, vencer a pobreza é mais difícil do que vencer olimpíadas?

Alguma coisa precisava ser feita a respeito.

Ato 3 – E agora, José?

Como nas fábulas infantis, as histórias estudadas por José trazem lições. Mas as lições por ele aprendidas são mais concretas e consequentes, pois são reais, ainda que o nosso personagem, José, não seja. Mesmo a história do nosso jovem hexacampeão é real, e está relatada em Brasil (2018). Elas mostram, por um lado, um cenário que desafia boa parte dos preconceitos, correntes nos estratos mais ricos, a respeito de jovens de baixa renda. Eles também revelam, por outro lado, nossa falência como sociedade em identificar e promover talentos em situação de vulnerabilidade social.

As olimpíadas de matemática – e demais olimpíadas do conhecimento – podem e deveriam estar conjugadas a uma política pública ampla de rastreamento e promoção de talentos provenientes de famílias de baixa renda. Funcionaria assim: as olimpíadas rastreariam e identificariam os jovens talentos, a política social ou educacional os promoveria.

No campo do rastreamento, a OBMEP já chega a todos os municípios do país. Pode ser, portanto, o ponto de partida. No campo da promoção, há o exemplo do Programa de Iniciação Científica Júnior, operado pelo CNPq. O PICjr oferece uma bolsa de R$ 100 por mês para alunos premiados que aceitarem participar de um programa de tutoria e orientação acadêmica – mas o programa já foi descontinuado algumas vezes e, atualmente, sofre de severas restrições orçamentárias.

Trata-se de um investimento com uma taxa de retorno muito elevada. Há estudos que sugerem que a “mera” menção honrosa em uma olimpíada já afeta positivamente o desempenho acadêmico do aluno vencedor e de seus colegas de classe. Esse reconhecimento aumenta em, no mínimo, 17% a chance de o aluno premiado ingressar em uma faculdade concorrida – as que normalmente conduzem a bom posicionamento no mercado de trabalho.  Além disso, esse efeito é transmito para os colegas: a presença continuada do vencedor (da menção honrosa) na sala de aula afeta os colegas, que têm suas chances de ingresso em um bom curso universitário aumentadas em 10%, na comparação com os alunos de outras classes, onde não havia premiado. Análises mais detalhadas dos dados sugerem que o reconhecimento de um estudante de alto desempenho serve como catalisador para aumentar a motivação e estimular o esforço em sala de aula por parte dos alunos e dos professores (Moreira, 2017).

Sabemos que a saída que trabalhamos nesse texto não resolveria todos os problemas das famílias pobres. Estamos falando de um grupo relativamente pequeno que, mesmo considerando o conjunto das pouco mais de dez olimpíadas escolares em atividade no Brasil, poderia chegar a algumas dezenas de milhares de inscritos no Cadastro Único e no Bolsa Família[1]. Mas convenhamos que precisa haver algo de muito errado com as políticas sociais no nosso país se habilidade em nível olímpico for uma condição necessária para as famílias de baixa renda saírem da condição de pobreza. Certamente muitos e muitos jovens não olímpicos, com o apoio certo, teriam condições de competir e se desenvolver no mercado de trabalho.

Promover os jovens talentos, portanto, não substituirá a necessidade de uma educação básica de qualidade e um ensino médio menos desprovido de propósitos. A promoção de talentos não exclui essas iniciativas, nem as inviabiliza financeiramente. Assim como não prescinde de outras iniciativas destinadas a viabilizar a emancipação socioeconômica de famílias de baixa renda – a esse respeito, esperamos, em outras oportunidades, discutir políticas públicas que promovam o rompimento da pobreza intergeracional. Todavia, acreditamos que algo deve ser feito agora para não perdermos os talentos que temos hoje. E também para que esses talentos não se percam. Mais do que o prejuízo à nação pelos benefícios que esses jovens deixam de gerar, pare para pensar, por um só instante, nas vidas que eles acabam deixando de lado por conta da sua situação social.

Muito se fala da porta de saída do Programa Bolsa Família e de outros programas sociais. No entanto, essas discussões frequentemente descarrilham para a busca de uma bala de prata, uma panaceia que resolveria todos os problemas. Ocorre que não há uma única porta, existem muitas. Porém, as engrenagens dessas portas são mais complicadas do que, frequentemente, querem admitir especialistas e tomadores de decisão. Discutimos aqui uma das muitas portas possíveis, acessível para um grupo pequeno, mas não desprezível. Considerando a seletividade da OBMEP e o fato de que há mais de dez grandes olimpíadas operando no Brasil, estimamos que, pelo menos, 20 mil famílias inscritas no Cadastro Único estejam com as mãos na maçaneta da porta que leva à emancipação social, mas sem saber que esta porta está trancada, e que talvez não haja outra saída no horizonte.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

Referências:

AGUIRRE, Josefa; MATTA, Juan; MONTOYA, Ana Marıa. Joining the Men’s Club: The Returns to Pursuing High-earnings Male-dominated Fields for Women. (working paper) 2019. Disponível em https://jjmatta.github.io/docs/PaperGender.pdf, acessado em 29 de julho de 2020.

ARAUJO, Carolina. A matemática brasileira sob a perspectiva de gênero. Ciência e Cultura,  São José ,  v. 70, n. 1, p. 32-33,  Jan.  2018.  

BIONDI, R. L., VASCONCELLOS, L. E MENEZES-FILHO, N. Evaluating the Impact of the Brazilian Public School Math Olympics on the Quality of Education. In: Revista Economia, do Latin American and Caribbean Economic Association or Asociación de Economía de América Latina y el Caribe (LACEA), volume 12, número 2, 2012.

BRASIL. Talentos escondidos: os beneficiários do Bolsa Família medalhistas das Olimpíadas de Matemática. Cadernos de Estudos Desenvolvimento Social em Debate. Nº 30. Brasília, DF: Ministério do Desenvolvimento Social; Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação. 2018.

BRASIL. Mentes brilhantes: uma análise de jovens de baixa renda medalhistas das Olimpíadas de Matemática. MONITORAMENTO SAGI: SÉRIE RELATOS DE CASO Nº 3. Ministério da Cidadania. Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação. Setembro de 2019.

GOIS, Antônio. Efeito entre pares. O Globo. 04/12/2017. Disponível em https://oglobo.globo.com/sociedade/efeito-entre-pares-22141931

MOREIRA, D. Recognizing performance: how awards affect winners’ and peers’ performance in Brazil. 2017. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Econômico) – Harvard Business School, Cambridge, 2017.

MORENO, A.C. Meninas representam metade dos classificados na Obmep, mas só respondem por um quarto das medalhas. G1 Educação, agosto/2018. Link: https:// g1.globo.com/educacao/noticia/2018/08/02/meninas-representam-metade-dos- -classificados-na-obmep-mas-so-respondem-por-um-quarto-das-medalhas.ghtml


[1] Nossas estimativas são bastante prejudicadas pela qualidade das bases existentes.

 

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Romulo Ceccon B...

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