Macroeconomia

Lampejo federativo: a hora de estados e municípios retribuírem

1 fev 2021

O recrudescimento da pandemia da COVID-19, particularmente após a descoberta de novas cepas como a da Inglaterra, África do Sul e Manaus[1], tem provocado novas ondas de infecções, mortes e lockdowns, tanto em diversos países quanto no Brasil. O desafio de evitar uma nova e intensa onda passa necessariamente pela vacinação em massa, sem a qual não é possível impor uma barreira efetiva à disseminação do vírus. Trata-se de uma competição para ver quem chega mais rápido, o vírus ou vacina.

Os efeitos socioeconômicos da pandemia já são bastante conhecidos, particularmente em países emergentes como o Brasil, nos quais a profundidade da desigualdade e vulnerabilidade social ficou escancarada. O apelo à solidariedade social não poderia ser mais forte do que neste momento, uma vez que a condição de trabalho das famílias de menor renda e educação foi profundamente comprometida com as medidas de isolamento social.

No Brasil, com todos os erros e acertos na implementação de respostas inéditas de política econômica, o governo federal e o Congresso Nacional aprovaram robusto pacote fiscal, superior a R$ 600 bilhões ou 8% do PIB[2], um dos maiores dentre os países emergentes e de renda média (gráfico 1). De todo o pacote fiscal, o maior gasto se deu com a transferência de renda para famílias em situação de vulnerabilidade social, o que consumiu quase R$ 300 bilhões. A compensação direta pela perda de receita de estados e municípios também foi importante e custou cerca de R$80 bilhões (gráfico 2).

Gráfico 1: Resposta discricionária de política fiscal (% do PIB)

Fonte: FMI

 

Gráfico 2: Composição do gasto discricionário de política fiscal (R$ bilhões)

Fonte: STN

Com o término do orçamento de guerra e do decreto de calamidade pública em 31/12/2020, as medidas fiscais cumpriram seu papel temporário. Todavia, os atrasos no Plano Nacional de Vacinação (PNI) e o recrudescimento da pandemia têm suscitado a  discussão sobre a volta do auxílio emergencial. O desafio é complexo, principalmente em razão da frágil situação fiscal do país, cujos déficit e dívida são muito elevados e têm perspectiva muito distante de acomodação. Não obstante a vigência do teto de gastos, a desconfiança do mercado sobre o rumo da política fiscal, materializada particularmente na curva de juros e na taxa de câmbio mesmo diante de extraordinária liquidez internacional, revela o tamanho do ceticismo e o ônus potencial de desviar da rota de consolidação fiscal.

A fragilidade do equilíbrio atual parece bastante evidente e estamos caminhando sobre gelo fino. A situação é delicada e exige tanto solidariedade social quanto senso de urgência dos atores políticos. Nesse contexto, como forma de criar uma ponte para o futuro da política social, a solidariedade poderia ser providenciada por estados e municípios, os mesmos que tanta ajuda receberam durante o ano passado.

De acordo com a Instituição Fiscal Independente[3], praticamente todos os estados receberam ajuda superior ao necessário e encerraram 2020 com dinheiro sobrando. Levantamento parcial do Ministério da Economia[4] aponta que, em diversos estados, houve crescimento da arrecadação e a ajuda federal por meio da MP 938 e da LC 173 foi mais do que suficiente para compensar os efeitos da pandemia nas finanças subnacionais. O nível de suficiência do suporte federal, que mede o efeito líquido de perdas e ganhos, foi superior a 115%. Outro indicador, de resultado primário calculado pelo Banco Central, confirma que houve substancial superávit primário de estados e municípios (inclusive suas empresas estatais), de quase R$ 43 bilhões (gráfico 3).

Gráfico 3: Superávit Primário dos entes subnacionais (R$ bilhões e % do PIB)

Fonte: BCB

Por qualquer ângulo que se analise, fica evidente que o socorro federal (“toma lá”) aos entes subnacionais foi calibrado para cima, tendo contribuição importante para a bazuca fiscal adotada de forma extraordinária em 2020. A combinação da exuberante ajuda federal aos estados e municípios e da perda federal de seus instrumentos em 2021, no contexto de enorme fragilidade fiscal e social, mais do que autoriza a pró-atividade e liderança (“dá cá”) dos entes subnacionais. Na verdade, recomenda. É desse tipo de “toma lá, dá cá” que o país precisa, imbuído de senso de reciprocidade e solidariedade federativa.

A relação federativa não deve ser unilateral, egoísta e desequilibrada, pelo contrário. O bom senso e o mínimo de solidariedade federativa fariam bem às finanças públicas, às famílias em situação de vulnerabilidade social e ao Congresso Nacional, que teria algum tempo adicional para aprimorar a rede de proteção social com responsabilidade fiscal[5]. O pagamento de R$190 – valor do benefício médio do programa Bolsa Família (PBF) – para 50 milhões de pessoas custaria por mês R$9,5 bilhões e poderia ser custeado pelo excedente de recursos recebidos pelos estados e municípios por quatro meses, totalizando R$ 38 bilhões.

Se alguém tachar como utópica essa proposta, que fique claro que isso não se deveria à potencial impossibilidade técnica, mas tão somente à inação e falta de vontade política em viabilizá-la. Além dos recursos, já transferidos e disponíveis, as bases de dados para identificação e (adequada) focalização das pessoas que efetivamente precisam de suporte financeiro estão mais do que disponíveis no CadÚnico[6], CNIS[7] e conta digital da Caixa Econômica[8], bastando serem devidamente integradas e compartilhadas. É simples e rápido, notadamente pela experiência pregressa do auxílio emergencial, atuação da Controladoria Geral, do Tribunal de Contas e do Ministério Público da União, bem como da SAGI/Ministério da Cidadania[9].

Notamos admirável liderança e entusiasmo institucional em fóruns como o dos governadores e consórcios do Nordeste e de Integração Sul-Sudeste, em busca de “bailouts” e incentivos federais, procedimentos inúmeras vezes judicializados e que levam a concessões de liminares monocráticas de ministros do STF[10]. A pergunta é por que os mesmos empenho e capacidade de liderança dos governadores não podem ser empregados também num momento, como o atual, em que os governos estaduais têm toda a condição de ajudar, em vez de pedir ajuda.

Assim, com liderança política e um mínimo cumprimento da missão das instituições de fiscalização e controle, é possível providenciar auxílio emergencial às famílias em situação de vulnerabilidade social sem aprofundar o delicado desequilíbrio fiscal do país. Após a União transferir quase R$ 300 bilhões em renda para mais de 65 milhões de pessoas, gastar mais de R$ 30 bilhões para preservar cerca de 10 milhões de empregos formais, oferecer crédito para empresas por meio de fundos garantidores ao custo de quase R$ 60 bilhões e transferir quase R $80 bilhões diretamente para estados e municípios a título de auxílio financeiro, é chegada a hora de o federalismo brasileiro mostrar que funciona de forma bidirecional, em via de mão dupla.

Diante do quadro socioeconômico atual, em que milhões de pessoas perderam sua fonte de renda, é naturalmente preferível implementar esse auxílio emergencial ponte com cobertura mais ampla do que reajustar ou elevar o valor de programas (pré) existentes. É dessa forma, extraordinária e complementar ao PBF, que governadores e prefeitos não só podem como devem utilizar os recursos remanescentes do repasse federal para atenderem temporariamente, e até que a vacinação ganhe fôlego, os cidadãos brasileiros por eles governados.


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

[1] Para maiores detalhes, acesse https://www.thelancet.com/journals

[2] Não obstante o gasto previsto ter sido de R$605 bilhões, o observado em 2020 foi de R$524 bilhões. Contudo, parte do gasto não realizado foi inscrito como restos a pagar e deverá ser executado em 2021, cerca de R$30 bilhões.

[3] Maiores detalhes na nota técnica 43, disponível em: https://www.senado.leg.br/

[5] O Senador Tasso Jereissati, por exemplo, inspirado por estudo encomendado pelo CDPP e de autoria de Vinicius Botelho, Fernando Veloso, Marcos Mendes, Anaely Machado e Ana Paula Berçot, propôs uma LRF Social compatível com o atual arcabouço fiscal do país. Maiores detalhes em https://cdpp.org.br/ e https://www.senado.leg.br/

[6] Disponível em https://www.gov.br/

[9] A CGU, o MPU e TCU identificaram, ex-post, uma série de benefícios concedidos de forma irregular, para pessoas que não reuniam os requisitos legais. A Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação (SAGI) do Ministério da Cidadania tem avançado, desde 2016, na integração das bases de dados e avaliação das políticas sociais.

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