Mensurando o desafio da política social após o fim do Auxílio Emergencial
O ano de 2020 está marcado pela pandemia da COVID-19, com nefastas consequências sobre a população brasileira. Entre seus efeitos, a pandemia causou um aumento do desemprego e uma diminuição significativa do PIB. Ainda assim, este foi um ano em que a taxa de pobreza atingiu um dos menores valores da história. Possivelmente o menor.
(Este post é baseado no artigo “Perspectiva para os Programas de Transferência de Renda em 2021”, de Vinícius Botelho, que pode ser acessado aqui.)
Tal resultado só foi possível pela criação do Auxílio Emergencial. Com orçamento previsto superior a R$ 320 bilhões, ele representa, de longe, o maior programa de transferência de renda que já existiu no Brasil. Para se ter uma ideia do seu tamanho, basta compará-lo com o orçamento destinado a ações de desenvolvimento social no início de 2020: R$ 92 bilhões. O Auxílio Emergencial representou, portanto, 3,5 vezes todo o orçamento que estava disponível para o desenvolvimento social no início do ano, que já incluía todo o orçamento previsto para o programa Bolsa Família e para o Benefício de Prestação Continuada.
Não fosse o Auxílio Emergencial, a pobreza, segundo as linhas de US$ 1,00, US$ 1,25, US$ 1,90 e US$ 3,20,[1] teria sido entre 6,1 e 6,6 pontos percentuais maior em maio de 2020 do que na média de 2019. O Auxílio Emergencial não só impediu esse aumento da pobreza como fez com que ela, já em maio de 2020, fosse entre 1,8 e 4,5 pontos percentuais menor do que em 2019, segundo esses mesmos critérios.
Contudo, o Auxílio Emergencial é fiscalmente insustentável.
Por isso, uma das grandes questões para 2021 é a mensuração dos efeitos do fim do Auxílio Emergencial sobre a taxa de pobreza, para que se possa avaliar a medida de reformulação necessária para a proteção social existente no país.
Para fazer essa avaliação, é necessário isolar os efeitos dos programas sociais sobre as estatísticas de pobreza. Para fazê-lo, será calculada uma taxa de pobreza que desconsidera os rendimentos oriundos de programas sociais,[2] intitulada de demanda por programas sociais; e a potência dos programas sociais em reduzir a pobreza, que é exatamente a diferença entre a demanda por programas sociais e a taxa de pobreza efetiva. A título de comparação, os dados históricos da demanda por programas sociais, da potência da política social e da taxa de pobreza estão indicados na Tabela 1.
Tabela 1 – Demanda por programas sociais, potência da política social
e taxa de pobreza: 2012 a 2019
|
Linha |
2012 |
2013 |
2014 |
2015 |
2016 |
2017 |
2018 |
2019 |
Demanda por programas sociais |
US$ 1,00 |
5,1% |
4,8% |
4,4% |
4,8% |
5,7% |
6,2% |
6,5% |
6,5% |
US$ 1,25 |
5,8% |
5,7% |
5,2% |
5,6% |
6,6% |
6,9% |
7,1% |
7,0% |
|
US$ 1,90 |
8,3% |
8,0% |
7,1% |
7,6% |
8,8% |
9,2% |
9,4% |
9,5% |
|
US$ 3,20 |
15,4% |
14,7% |
13,1% |
14,1% |
15,7% |
15,6% |
15,7% |
15,5% |
|
Potência da política social |
US$ 1,00 |
2,3% |
2,6% |
2,4% |
2,5% |
2,9% |
2,9% |
3,0% |
2,9% |
US$ 1,25 |
2,4% |
2,6% |
2,5% |
2,6% |
2,8% |
2,7% |
2,7% |
2,6% |
|
US$ 1,90 |
2,6% |
2,9% |
2,6% |
2,7% |
2,9% |
2,8% |
2,9% |
2,9% |
|
US$ 3,20 |
3,2% |
3,3% |
3,3% |
3,3% |
3,4% |
3,1% |
3,2% |
3,3% |
|
Taxa de pobreza |
US$ 1,00 |
2,7% |
2,3% |
2,0% |
2,2% |
2,8% |
3,3% |
3,5% |
3,5% |
US$ 1,25 |
3,4% |
3,1% |
2,7% |
3,0% |
3,8% |
4,3% |
4,4% |
4,4% |
|
US$ 1,90 |
5,7% |
5,1% |
4,5% |
4,9% |
5,9% |
6,4% |
6,5% |
6,6% |
|
US$ 3,20 |
12,1% |
11,3% |
9,8% |
10,8% |
12,2% |
12,4% |
12,5% |
12,2% |
Fonte: PNAD Contínua (IBGE). Elaboração própria
Usando os dados da PNAD COVID-19, pode-se calcular a demanda por programas sociais em cada mês de 2020 e comparar essa estatística com aquela calculada usando os dados da PNAD Contínua de 2019. Essa comparação permite avaliar a dimensão do aumento da demanda por programas sociais este ano, assim como analisar a sua dinâmica ao longo do tempo.
Os resultados desse cálculo estão indicados na Tabela 2. Percebe-se um forte aumento na demanda por programas sociais já em maio de 2020. No entanto, ao longo do ano esse impacto foi fortemente amenizado pela recuperação econômica. Mantido o atual ritmo de recuperação, percebe-se que poderia ser atingido o mesmo patamar de pobreza de 2019, ou algum patamar superior (ao de 2019), até o final do primeiro trimestre de 2021.
Tabela 2 – Diferença na demanda por programas sociais em
cada mês de 2020, na comparação com 2019
Linha |
Maio de 2020 |
Junho de 2020 |
Julho de 2020 |
Agosto de 2020 |
Setembro de 2020 |
Outubro de 2020 |
US$ 1,00 |
6,1% |
5,9% |
4,6% |
3,7% |
3,4% |
2,7% |
US$ 1,25 |
6,8% |
6,5% |
5,1% |
4,3% |
4,0% |
3,2% |
US$ 1,90 |
6,7% |
6,3% |
4,9% |
3,8% |
3,6% |
2,6% |
US$ 3,20 |
6,9% |
6,3% |
4,7% |
3,7% |
3,6% |
2,9% |
Fonte: PNAD Contínua 2019 e PNAD COVID19 (IBGE). Elaboração própria.
A dúvida que essa análise não permite responder é em qual patamar, retornando à estrutura de proteção social de 2019, a taxa de pobreza estacionará.
Para responder essa pergunta, pode-se estabelecer uma relação econométrica entre o PIB per capita e a pobreza. De acordo com as projeções deste Boletim, o PIB se contrairá em 4,7% em 2020 e crescerá 3,6% em 2021. Em termos de PIB per capita, isso significa uma contração de 5,4% este ano e uma expansão de 2,8% no próximo, equivalente a dizer que o PIB per capita de 2021 ainda será 2,7% inferior ao de 2019.
Qual o efeito dessa contração sobre a demanda por programas sociais? Para responder a essa pergunta, foi desenvolvido um modelo econométrico de projeção que relaciona o PIB per capita e a taxa de pobreza,[3] e cujos resultados estão indicados na Tabela 3.
Tabela 3 – Projeção para a taxa de pobreza
Linha |
Projeção 2021 |
Intervalo de confiança da projeção (95%) |
US$ 1,00 |
+0,9p.p. |
+0,5p.p. a +1,2p.p. |
US$ 1,25 |
+0,8p.p. |
+0,4p.p. a +1,2p.p. |
US$ 1,90 |
+1,0p.p |
+0,3p.p. a +1,6p.p. |
US$ 3,20 |
+0,9p.p. |
-0,2p.p. a +2,0p.p. |
Fonte: PNAD Contínua 2019 e Sistema de Contas Nacionais (IBGE). Elaboração própria.
Ainda que esse exercício seja extremamente limitado no número de observações e pelo fato de 2020 representar um choque econômico muito distinto dos demais choques pelos quais a economia brasileira passou de 2012 a 2019, os resultados parecem condizentes com as tendências apontadas pela PNAD COVID19.
Supondo que a política social em 2021 tenha a mesma potência da política social de 2019, o que pressupõe o fim do Auxílio Emergencial e o retorno ao Programa Bolsa Família, ao Benefício de Prestação Continuada e aos outros programas sociais exatamente nos parâmetros e formatos do pré-pandemia, a taxa de pobreza subirá em torno de 0,9 ponto percentual em 2021, na comparação com 2019.
Considerando que a potência da política social oscilou, para todas as linhas de pobreza, em torno de uma média de 2,9% em 2019, os impactos da pandemia requereriam que se expandisse a rede de proteção social em aproximadamente um terço, o que parece factível de se atingir focalizando a estrutura de benefícios atualmente existente no público mais vulnerável.
Contudo, pode-se argumentar que a taxa de pobreza de 2019 era demasiado elevada para se ter como ponto de referência. Usando o mesmo modelo econométrico, pode-se calcular o crescimento de PIB per capita necessário para erradicar a pobreza, segundo qualquer uma das linhas discutidas neste texto.
Partindo do patamar de PIB per capita projetado para 2021, erradicar a demanda por programas sociais segundo a linha de US$ 1,00 já seria um grande desafio: o PIB per capita precisaria crescer aproximadamente 20%. Para a linha de US$ 1,90, o crescimento precisaria ser de aproximadamente 26%. Já para a linha de US$ 3,20, o desafio é ainda maior: seria necessário um crescimento de 51%. Cada nova recessão deixa o Brasil cada vez mais longe dessa realidade.
Considerando a magnitude do desafio, focalizar e fortalecer a proteção social voltada aos trabalhadores mais pobres se faz extremamente importante, assim como o aumento da produtividade da economia brasileira, que também tem o potencial de melhorar a vida das pessoas e fazê-las sair da condição de dependência econômica.
Esse artigo é a seção Em Foco do Boletim Macro Ibre de dezembro de 2020.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva dos autores, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
[1] Calculados per capita e por dia, em dólares medidos por paridade do poder de compra. Em reais, essas linhas representaram, em meados de 2020, os valores de R$ 81, R$ 101, R$ 154 e R$ 259 per capita por mês.
[2] Programa Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada e outros programas sociais para as estatísticas da PNAD Contínua; Programa Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada e Auxílio Emergencial para as estatísticas da PNAD COVID19.
[3] Para maiores detalhes, vide o artigo “Perspectiva para os Programas de Transferência de Renda em 2021”, de Vinícius Botelho, que pode ser acessado aqui.
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