O Censo – de 2030
O debate em torno da realização do Censo Demográfico de 2020 é de fundamental importância, pois trata da principal ferramenta que um país tem para se conhecer. A decisão de reduzir o questionário aplicado pelo IBGE ganhou os jornais, que repercutiram análises sobre o impacto que isso representará nos resultados que retratarão a sociedade brasileira nesta década. Mais além dessa restrição, entretanto, precisamos aproveitar a discussão para tratar um tema que está na essência desse debate, sobre o qual considero que não estamos dando a devida luz: a necessidade de acelerar a evolução do nosso sistema de coleta de dados estatísticos.
Nas várias esferas de governo – federal, estadual e municipal – são produzidos dados administrativos que podem gerar informação não apenas para o Censo mas para complementar, e ampliar, todo o sistema de estatísticas oficiais do país, mas que hoje muitas vezes estão empoçados. Dou um exemplo simples. Sabemos que, salvo poucas exceções, todas as pessoas que nascem e que morrem precisam de uma certidão. Hoje os cartórios enviam uma série de documentos diretamente para a Secretaria da Receita Federal, como as operações imobiliárias. Se da mesma forma as certidões fossem enviadas diretamente ao IBGE, não mais seria necessário ir até os cartórios – reduzindo o custo para o estado –, e teríamos mais agilidade em disponibilizar os dados de nascimentos, mortes e separações. Com isso, já estaríamos muito próximos da contagem da população brasileira. Mas não me consta que tenhamos capacidade instalada para fazer estatística em cima dessas informações. Então, o censo demográfico como está desenhado hoje reflete essa ausência de um esforço coordenado, por parte do governo brasileiro como um todo, no sentido de maximizar o uso dessas informações. Sem isso, somos obrigados a ir a público e fazer muitas perguntas, pois não estamos explorando essa potencialidade represada.
É uma questão que não poderia ser resolvida até 2020, pois envolve um processo longo e continuado. Mas precisa ser incentivada desde já, para que em 2030 tenhamos um censo complementado por registros que foram analisados e aperfeiçoados para serem usados em estatísticas oficiais – aí sim, de custo infinitamente menor, além de mais eficiente. E sem ferir o sigilo ou provocar qualquer tipo de constrangimento à população, pois falamos de tecnologias que permitem dar tratamento estatístico aos microdados, desindentificados, e produzir estatísticas. Um dos principais exemplos desse potencial transformador são os países escandinavos, cujo trabalho ao longo de várias décadas os colocou à frente na tecnologia de levantamentos sobre a situação demográfica.
Para isso será preciso, em primeiro lugar, ter vontade política, mudar a cultura e definir uma estratégia para aumentar o grau de acessibilidade a essas informações ao longo dos anos e fazê-las fluir entre os vários níveis de governo, e entre o governo e a sociedade. Se tomamos outros exemplos de levantamentos estatísticos veremos que hoje, em muitos países do mundo, se está caminhando a passos largos para se reduzir significativamente a coleta de dados. Recentemente, o FGV IBRE, em parceria com o IBGE, organizou no Rio de Janeiro o encontro do Grupo de Ottawa, que reúne especialistas no cálculo de índices de preços ao consumidor de 40 países. A tônica do debate foi exatamente como explorar novas bases de dados para tornar o cálculo de preços mais ágil e preciso, desenvolvendo técnicas para tratar grandes bases de dados e extrair o maior número de informações relevantes de cada uma delas. O paralelo com o censo é óbvio.
No Brasil também já existem exemplos interessantes, em vários níveis de governo. No âmbito estadual, por exemplo, pude conhecer pessoalmente o caso do governo do Ceará, que tem um projeto usando a base de dados das notas fiscais eletrônicas. No Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (Ipece), um grupo de trabalho usa técnicas de big data para extrair uma massa de informações que esses registros de compra podem oferecer, como as relações econômicas entre municípios. Isso certamente ajudará o estado a aprimorar a discussão em torno de políticas públicas.
Mas se a economia digital abre possiblidades, ela também abre portas para a desinformação. Enquanto antes tínhamos um modelo de produção de índices concentrado em órgãos oficiais, hoje observa-se uma descentralização na produção estatística permitida pela abundância de dados gratuitos – coletados por devices nunca antes imaginados –, que nem sempre contam com base científica necessária para garantir a consistência dos resultados. Nesse sentido, é importante considerar a criação de uma instância reguladora da produção de estatísticas. No Brasil, já temos uma preocupação parecida no campo da Justiça Eleitoral, com a exigência de que as pesquisas de intenção de voto sejam cadastradas, checadas e autorizadas antes de sua divulgação. Isso para evitar que um grupo que tenha um interesse específico crie dados que sem aderência com a realidade, influenciando a decisão do eleitor de forma artificial. A criação de um órgão para regulação estatística poderia, inclusive, coibir a ação de indivíduos e instituições que mantêm dados relevantes em uma caixa-preta, punindo essa prática. Há vários países que já possuem essas instâncias reguladoras, como Reino Unido e Canadá, que são os exemplos de que mais gosto. No Reino Unido, por exemplo, permite-se a multiplicidade de produtores de estatística, mas nem todos recebem o selo de qualidade dado pela UK Statistics Authority. Cabe ao público ser consciente e buscar informações de qualidade.
Em geral, esses órgãos reguladores são enxutos, com diretores com mandato que os blinda de flutuações políticas, selecionados de forma estritamente técnica. Outro aspecto importante no caso do Reino Unido é que o planejamento estratégico do instituto é definido no nível de um conselho superior. Isso é importante, porque um dos riscos de se fixar um mandato é o de isolamento. E isolamento é o que não queremos. Ao contrário, o objetivo é que haja um contínuo aprimoramento da atividade estatística, olhando para as melhores práticas no nível mundial.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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