O papel dos estados na política industrial
Estados podem atuar numa política industrial mais proativa e focada em falhas de coordenação, usando seu conhecimento local para ajudar o governo federal a estimular não só a oferta de recursos, mas principalmente a demanda.
O lançamento da mais nova política industrial do governo federal, o programa Nova Indústria Brasil, trouxe mais uma vez à tona o debate no país sobre o tema. Buscando contribuir de maneira propositiva, este artigo se propõe a seguinte pergunta: qual é o papel dos estados em uma política industrial nacional?
Para entender um possível papel dos estados, é necessário voltar ao princípios básicos. Uma definição mais geral, em linha com entendimentos mais recentes da literatura, trata como política industrial o conjunto de políticas governamentais com foco setorial (mas não necessariamente o setor industrial) que buscam estimular inovação e produtividade nesses setores. Estes objetivos serão alcançados na medida em que as empresas desses setores desenvolvam as capabilidades necessárias. Aqui usamos “capabilidade” no sentido de uma coleção de rotinas organizacionais (rotina sendo um conjunto de regras, procedimentos e técnicas que representam passos no processo de execução de uma tarefa) que, combinada aos ativos da empresa, dá a ela a capacidade de desempenhar uma atividade que possui importância central na construção de sua vantagem competitiva. Essas capabilidades podem ser desenvolvidas nas diferentes funções das empresas – marketing, produção, tecnologia etc.
Políticas industriais que usam o ferramental clássico (subsídios, tarifas, garantias de compra etc.) muitas vezes partem de um pressuposto implícito de que empresas conhecem o “mapa das capabilidades” e como transitar nele de forma a serem mais inovadoras – ou seja, pressupõe-se que, ao intervir no sistema de preços de forma a mudar os incentivos das empresas, estas tomarão decisões consistentes com o caminho virtuoso para o desenvolvimento das capabilidades, pois a estrutura de incentivos da economia era o principal gargalo.
A prática corrente de política industrial pode ser resumida a um processo em que o governo federal decide prioridades setoriais e tecnológicas, coloca à disposição dos atores recursos (geralmente subsidiados) por meio de fundos, e assume uma postura passiva de esperar que os recursos sejam demandados. Essa prática, além de representar um atalho para uma política industrial de menor esforço e de operar sob a premissa de que incentivos financeiros são o principal gargalo, sofre com um baixo número de projetos consistentes que façam bom uso dos recursos ofertados.
Porém, em muitos casos o gargalo maior para empresas desenvolverem suas capabilidades não é a estrutura de incentivos, mas sim, por um lado, a capacidade da empresa de discernir, dentre os diferentes cursos de ação nas suas diferentes áreas, qual deles leva a um maior desenvolvimento de capabilidades. E por outro, a capacidade de implementar rotinas e processos que constituirão essas capabilidades. Em suma, o gargalo maior se resume a aprendizado, não a incentivos. Essas duas capacidades exigem das empresas um conhecimento significativo não só de suas próprias características e potencialidades, mas também as de outras organizações – sejam no mesmo setor, downstream ou upstream. Isto porque em uma economia de mercado complexa, empresas sempre precisam relacionar-se com outras organizações (outras empresas, universidades, ONGs) para desenvolver suas atividades.
Partindo da premissa de que aprendizado é o principal gargalo, uma política industrial bem sucedida será capaz de prover esses diferentes conhecimentos para as empresas, e mobilizá-los para os objetivos de política econômica. Em outras palavras, a política industrial tem como principais tarefas: 1) no limite do possível, tornar explícito o “mapa de capabilidades” da economia; 2) transmitir esse mapa às empresas por meio de bens públicos, de forma a auxiliá-las nos seus processos de aprendizagem; 3) cumprindo um papel de tecido conectivo, fazer pontes entre empresas, e entre empresas e outras instituições, de forma a criar as combinações mais virtuosas possíveis em termos de desenvolvimento de capabilidades.
De que maneira seria possível para uma política industrial em nível federal desvendar o mapa de capabilidades de uma economia tão complexa como o Brasil, e a partir disso promover conexões e reduzir falhas de coordenação? Surge então um papel central para os estados: de serem os geradores e portadores do conhecimento sobre a estrutura produtiva e tecnológica de seus territórios. Ao possuírem proximidade com o sistema produtivo local muito maior do que o governo federal, e portanto terem maior facilidade de desenvolverem conhecimento sobre seus respectivos sistemas, os governos locais têm a capacidade de subsidiar o governo federal na montagem do quebra-cabeça do mapa das capabilidades produtivas do território nacional. Essa maior proximidade também facilita o trabalho de tecido conectivo naquele território por parte dos agentes públicos.
Estados podem ser atores fundamentais na execução de uma política industrial mais proativa e mais focada em falhas de coordenação, usando seu conhecimento local para ajudar o governo federal a estimular não só a oferta de recursos, mas principalmente a demanda, fomentando assim o desenho de projeto promissores. Para tanto, usando de sua proximidade às estruturas produtivas locais, estados ajudariam o governo federal a 1) identificar quais tecnologias e práticas produtivas devem ser estimuladas e precisam de apoio (seja financeiro, logístico, de capital humano, etc.), 2) identificar quais combinações de atores são os mais capazes de implementar tais tecnologias e práticas, e 3) cumprindo o papel de tecido conectivo, estimular a criação dessas combinações e dos projetos resultantes, e direcioná-las aos recursos e programas do governo federal.
Evidentemente a limitação de capabilidades e recursos de muitos estados os impediriam de atuar adequadamente no sentido de serem braços de inteligência produtiva do governo federal. Aqui surge mais uma tarefa para a esfera federal: a de prover incentivos e recursos para que estados fortaleçam sua capacidade de mapear e monitorar as capabilidades produtivas de seus territórios.
Por fim, é importante mencionar, ainda que de passagem, mais um papel importante que estados e regiões podem cumprir: o de serem espaços de experimentação decentralizada. Como argumentado por autores como Charles Sabel e Yuen Yuen Ang, em um processo cheio de incertezas radicais como é o de desenvolvimento produtivo e econômico, é impossível prever qual é a melhor maneira para um país se movimentar dentro do “mapa das capabilidades”. Diferentes estados então podem servir de laboratórios vivos das diferentes alternativas, com o governo federal cumprindo o papel duplo de estimular essa diversidade de alternativas no âmbito regional, e de monitorar e adotar universalmente as melhores soluções produtivas e tecnológicas.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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