Energia

Quão justa é nossa transição energética?

26 set 2023

Garantir acesso a eletricidade na Amazônia Legal é prioridade, mas também é essencial atentar para os demais atributos do ODS 7: garantir energia limpa, segura e em conta para quem está lá e para os demais usuários no País.

Semana de clima em Nova Iorque[1], hora de avaliar o avanço no cumprimento dos SDGs (Metas de Desenvolvimento Sustentável, na sigla em inglês) rumo a 2030.  O ministro Alexandre Silveira, de Minas e Energia, prometeu um Plano de Transição Energética Justa. Em sua apresentação, mencionou Compacts lançados em 2022, como o compromisso firmado entre BNDES e Eletrobras para descarbonizar os sistemas isolados (SISOL) na Amazônia. Quão justa tem sido a abordagem para os sistemas elétricos não conectados ao grid é tema deste artigo.

Acertadamente, no Brasil, as políticas setoriais também priorizam universalização do acesso a serviços de eletricidade. Nas últimas duas décadas avançamos muito: o Programa Luz para Todos (PLPT), com duração ampliada até 2028 para regiões remotas da Amazônia Legal, foi bem-sucedido em expandir atendimento que hoje abrange mais de 99,8% da população. Mas ainda faltam milhares de famílias a serem assistidas. Em Consulta Pública recente, o Ministério de Minas e Energia (MME) registra 223.826 unidades consumidoras nessas áreas que não contam com os benefícios da energia elétrica. Para além desse quadro, grande parte do acesso nos SISOL se dá com base em combustíveis fósseis: fonte cara, ruim para o ambiente, com problemas de integrity associados. O cumprimento dos objetivos do ODS 7 (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável) pode ser enquadrado como Wicked Problem: não termina em um dado ponto do tempo. Em algum momento, uma resposta alcançada é considerada boa o suficiente para prosseguir e implementar, mas não porque é definitiva.

Para enfrentar esses novos desafios, ultimamente cresce a preocupação com a descarbonização dos Sistemas Isolados. A lei de desestatização da Eletrobras estabeleceu a obrigação de a companhia alocar R$ 295 milhões anualmente, durante 10 anos, atualizados pelo IPCA, “para aplicação no programa de redução estrutural de custos de geração de energia na Amazônia Legal”. Como 30% desse montante no mínimo deve ser direcionado para ações que promovam navegabilidade nos rios Madeira e Tocantins, sobram 70%. Essa é uma fonte de recursos, mas há outras possibilidades. Capitais de instituições financeiras de desenvolvimento (DFIs, MDBs etc.) e investidores poderiam ser mobilizados em estruturas do tipo Blended Finance para ações dessa natureza, ainda mais agora que o governo dá sinais de maior comprometimento com o meio ambiente e a região amazônica.

Garantir acesso a serviços de eletricidade na Amazonia Legal é prioridade. Não se discute. Mas é também essencial atentar para os demais atributos do ODS 7: garantir energia limpa, segura e affordable (em conta) – para quem está lá e para os demais usuários no País. É aí que a situação se complica. A implementação de uma solução Pareto ótima – objetivo frequente de política – pressupõe encontrar uma nova alocação que melhore alguém sem piorar outrem. Mas ao onerar usuários ao redor do país, os recorrentes aumentos de encargos, custos e faturas de eletricidade deixam de satisfazer essa condição.

O suprimento aos sistemas isolados é uma história de promessas e atrasos de entrega e sobrecustos. A Conta de Combustíveis Fósseis (CCC), que financia a geração lá, arrecadando receita junto aos demais consumidores, custou R$ 50,4 bilhões entre 2018 e agosto de 2023. E não se vê no horizonte perspectivas de redução desses montantes. Para ilustrar, garantir atendimento aos cerca de 900 mil novos cidadãos identificados na CP 154/23 explica grande parte do aumento de 55% do orçamento da universalização na Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) em 2024. Na proposta do MME, o valor atingiria R$ 2,5 bilhões. Significa que esse problema não é marginal.

Há dois caminhos para avançar. A primeira possibilidade consiste em servir esse segmento da população não importa como. Tentar investir em tecnologias de energia limpa, mas, se não der, seguir na linha de soluções convencionais, jogando para o futuro uma chance de substituir os combustíveis fósseis. Será que essa opção consulta o critério de justiça da transição energética, ao transferir custos caros para os demais usuários já sobrecarregados por tarifas que ainda não foram adaptadas para nosso ambiente descentralizado? Será que isso é sustentável?

Alternativamente, o governo poderia ampliar políticas e regulação para fomentar a entrada de novos capitais, através de arranjos de tecnologias solar, baterias e mesmo combinadas com soluções de backup. Para mostrar que isso não é ficção, vale recorrer ao projeto implementado pelo Grupo Energisa, na Vila Restauração, no Acre, com recursos do programa de P&D, utilizando um Microssistema Isolado de Geração e Distribuição de Energia (MIGDI). Lá, 200 famílias contam agora com abastecimento que combina placas fotovoltaicas, um sistema de armazenamento de energia com bateria de lítio e dois geradores a biocombustível operando como fonte de alimentação de reserva. O projeto foi premiado internacionalmente. E está aí para servir de exemplo e inspiração: é possível sim atender pessoas em regiões e comunidades remotas com tecnologias de energia limpa provadas. E como seu custo de operação é menor, transferem-se menos gastos para os demais usuários no Brasil.

As últimas três décadas mostram experiências de sucesso na universalização da energia elétrica, incluindo regiões remotas em um país de dimensões continentais. Há, porém, muito a fazer, como mostram os números recentes do MME ao identificar quase um milhão de pessoas na Amazônia ainda sem acesso a serviços de eletricidade, um dos marcos da modernidade. Mais do que percorrer o gap, precisamos no presente fazer diferente. Urge incluir a cidadania com tecnologias de energias limpas e diminuindo o ônus financiado por quem já paga contas caras. Sem adaptar políticas, regulação e modelos de negócios para atingir o ODS 7, escalando soluções como a experiência da Vila Restauração, a transição energética não é eficiente nem justa.


Esta coluna foi publicada originalmente em 19/09/2023, terça-feira, pelo Broadcast da Agência Estado.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva da autora, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

[1] A autora refere-se à semana passada, quando o artigo foi publicado, na terça-feira, 19/9, pelo Broadcast da Agência Estado.

Comentários

Alexandre Franc...
Joísa, parabéns (de novo) por abordar temas tão sensíveis.Transição Energética é, sem dúvida, um deles. E com proposta de soluções que vão além do convencional. Sempre entendi que as comunidades isoladas da Amazônia dificilmente seriam atendidas com o modelo tradicional de estender redes elétricas conectando-as ao SIN. Será uma solução cara e ambientalmente questionável - como “rasgar” milhares de km de florestas para construir linhas de transmissão e/ou distribuição longas - e com enormes desafios operativos decorrentes desta característica?? Parece mais razoável e inteligente construir microrredes locais ou até mesmo regionais, com arranjos de tecnologias solar, baterias e backup diesel. Não vai nenhuma violação ambiental nesta proposta; afinal, com um sistema adequadamente dimensionado, o backup fóssil vai opera uns poucos dias por ano, e nossas cargas atuais são resilientes, operando bem com as características de uma microrrede. Um ponto a considerar é que as microrredes e seus componentes são uma tecnologia nova, que requer conhecimento novo na sua operação e manutenção. Paineis solares, inversores, baterias, etc., ainda não são o dia a dia dos nossos eletricistas. Logo, será necessário capacitar pessoal local para estas atividades, o que seria excelente, pois criaria empregos de qualidade e levaria mais escolas técnicas para a região. As perguntas a se fazer, no caso da Amazônia, são 1. Por que insistir na adoção de uma solução cara, como é a integração dos sistemas isolados ao SIN? 2. Qual o arranjo necessário para a adoção de microrredes nestes locais, considerando os aspectos econômicos, tecnológicos, operativos e de manutenção das microrredes? 3. Qual o papel das entidades técnicas, padronizando equipamentos, sistemas, conhecimento para a viabilização das microrredes no país? 4. Que tipo de laboratório será necessário para o desenvolvimento, testes e certificação de equipamentos para microrredes? 5. Os recursos do Programa P&D do setor elétrico não podem ser utilizados para a construção (indiscriminada) de infraestrutura laboratorial. Mas os maiores (e melhores) laboratórios de mundo são entidades abertas, a serviço da sociedade, e com participação de dinheiro público (da sociedade). O EPRI e o NREL parecem ser bons exemplos a serem copiados. 6. Qual o papel do regulador na definição de regras que possam viabilizar este tipo de política?

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