Energia

Quem tem medo da separação de fio e energia?

8 mar 2023

A liberação do mercado de energia avança no Brasil, com mais consumidores de baixa tensão aderindo à contratação livre. Fim de concessão de 20 distribuidoras é oportunidade para separar serviços de rede e oferta de energia.

Volto aqui a um tema bastante abordado, que está no topo da agenda de 2023: o avanço da liberalização dos mercados. Ainda não se sabe a visão do novo governo sobre a reforma do setor elétrico que tramita há anos no Congresso. Mas como não há vácuo no poder, na falta de decisões estruturadas, mercados, agentes, políticos e a comunidade de negócios encontram seu caminho. Essa concertação pode produzir distorções e ineficiências. Discuto aqui como evitar que a #portabilidade da conta de luz seja mera arbitragem regulatória em tempos de término dos contratos de concessão de distribuição de eletricidade.

A liberalização de mercado é a forma de garantir aos consumidores a possibilidade de usufruir dos benefícios da competição na geração. A negociação direta junto a comercializadores (retailers) pode aumentar a eficiência das compras, permitindo aos usuários acessar preços melhores, pacotes mais adequados a suas necessidades e perfis de risco distintos.

No Brasil, a liberalização avança através do mercado livre. Puxada pelos comercializadores, a agenda da #portabilidade da conta de luz é uma realidade que avança.  Um número cada vez maior de consumidores de baixa tensão adere à contratação livre através da expansão da micro e mini geração distribuída (MMGD, que tem nos painéis solares um grande exemplo). Esse segmento já alcança 18 GW, volume que pode dobrar nessa década, de acordo com as projeções oficiais. Incentivos em lei e na regulação conferem vantagem de custo e tornam atrativa essa opção, reforçando a espiral da morte das utilities – a mudança para o mercado livre aumenta preços para quem fica e tem que suportar parcela maior dos custos da rede, estimulando mais saída na baixa tensão. Por sua vez, grandes consumidores comerciais e industriais há muito contam com a possibilidade de contratação direta, que apenas se amplia com a redução dos limites mínimos nos anos recentes.

No front das políticas, a redução dos limites de acesso ao mercado livre está programada para ocorrer em 2024 na alta tensão. Para a baixa tensão, consultas públicas realizadas no ano passado previam prazo de 2026 para classes comercial e industrial e 2028, para residencial e rural – prazos estes que a nova administração pode ou não confirmar.

Por que liberalizar?   

A defesa da liberalização já vem de longe, o que permite aprender com quem já trilhou esse caminho. Vale considerar a perspectiva trazida por Stephen Littlechild, pioneiro na regulação em mercados reestruturados no Reino Unido e um grande entusiasta da opção de estender retail competition a consumidores residenciais. Em artigo recente sobre a evolução dos mercados varejistas em eletricidade, Littlechild (2022) aponta que, em uma lista de 88 economias em desenvolvimento, a parcela daquelas que passaram por algum tipo de reforma aumentou de 1/3 para 2/3 entre 1995 e 2010; porém, a evolução dessa contratação direta foi bem mais modesta, aumentando de 1% para 7%. Com avanços e retrocessos, outros países têm se juntado a essa lista, a exemplo de Argentina e Turquia.

Novos desafios despontam para mercados reestruturados. Alguns destaques são a onda de frio extremo no Texas em 2021, quando consumidores em um dos sistemas mais liberalizados do mundo enfrentaram dificuldades, com exposição a preços altos continuados e contas exorbitantes. A elevação dos preços do gás produziu onda de falências de comercializadores no Reino Unido desde 2021. Também os efeitos da recuperação dessincronizada na crise da pandemia, que afetou cadeias de suprimento, e a guerra na Ucrânia servem de estopim ou catalisador para revisitar – em diversas geografias – desenhos de mercado pressionados por políticas de incentivo a renováveis em tempos de descarbonização. Esse é o caso da União Europeia, que realizou recentemente consulta pública com foco em garantia de acesso a energia limpa e segura em um mercado mais resiliente.

A necessidade de limitar os impactos do aumento e da alta volatilidade dos preços de energia sobre consumidores somou novos problemas a antigos. Há fartas evidências de falta de atividade dos consumidores, que trocam pouco de fornecedores (low switching); pequena economia (vantagem de custos) para a contratação direta quando comparado a pacotes ofertados pelas distribuidoras ou incumbentes que fornecem energia mediante tarifas reguladas; e informação escassa ou de baixa qualidade sobre as ofertas de contratos no mercado. Esses impactos penalizam mais grupos e regiões de menor renda.

Ainda assim, grande parte desses mercados se move agora para seu próximo desafio: adaptar a estrutura do setor para novas tecnologias e prioridades de política; ou seja, hora de avançar e construir novas bases a partir da competição no retail. Não cabe retroceder ou restringir a escolha do consumidor. A mensagem é perseverar.

Como acelerar uma transição energética justa

Por aqui, estamos diante de uma oportunidade ímpar para abrir caminho para uma liberalização funcional e inclusiva. O término dos contratos de concessão de distribuição de 20 distribuidoras de eletricidade pode – e, na visão desta colunista, deve – abrir caminho para a separação dos serviços de rede e oferta de energia. Até então o tema era tabu. O argumento das distribuidoras era de que não havia previsão contratual. Agora que vencem os contratos e há espaço para adaptá-los, surge a barreira de que falta de previsão legal – faltaria aprovar no Congresso a reforma que prevê a separação contábil e tarifária entre a comercialização regulada de energia elétrica e a prestação dos serviços de rede de distribuição de eletricidade.

Na ânsia de dar solução imediatista a desequilíbrios de algumas distribuidoras, corre-se o risco de gerar um “leading case” que valide a crença de Roberto Campos, de que o Brasil nunca perde oportunidade de perder oportunidade.

Dois cenários emergem para promover a separação entre fio e energia. Em um primeiro, mais ambicioso, a legislação atual permite revisitar contratos implementando unbundling. Nesse caso, faça-se. Mas é muito provável que as distribuidoras se oponham a essa opção, alegando a necessidade de previsão legal e segurança jurídica. Em assim sendo, conforme o disposto no art. 7º da Lei nº 12.783/2013 e no Decreto nº 8.461/2015, os contratos de concessão de distribuição vincendos devem estabelecer as condições para a sua renovação, dentre as quais poderiam ser definidas regras e prazos para a separação de atividades de rede e de comercialização de energia, ao menos em seu aspecto contábil. Essa segregação – que não pode aguardar indefinidamente a aprovação de um PL cuja tramitação se arrasta há seis anos no Congresso Nacional – é a única forma de democratizar os benefícios da #portabilidade da conta de luz. Permite às distribuidoras focar na operação e expansão das redes em tempos de investimentos em digitalização e resiliência, melhorando incentivos, alocação de custos e riscos entre quem sai e quem fica no ambiente regulado.


Esta coluna foi publicada originalmente em 07/03/2023, terça-feira, pelo Broadcast da Agência Estado.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva da autora, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

 

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