Razões da reforma na tangente do interesse geral
Série de interesses dispersos convergiram na aprovação em 1º turno na Câmara da reforma tributária. Lula teve mérito de expressar vontade política sobre reforma, mas país ainda carece de governo que se afirme diante do futuro.
Reforma tributária votada e aprovada na Câmara dos Deputados, a economia muito melhor do que se podia esperar há pouco mais de seis meses; expectativa de investimentos em várias áreas; desaceleração do ritmo de desmatamento, com nova perspectiva de preservação da Amazônia, grande ativo do país. O país voltando a participar e a ser ouvido nos fóruns internacionais. Não há crise entre Poderes, nem riscos à democracia. Aparentemente, o governo Lula é um sucesso.
Mas não é bem isso. No caso da reforma tributária, uma série de interesses dispersos convergiram em direção à formação da maioria que a aprovou. Sozinho, o governo não teria tanta força. Tiveram importante papel o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, o ministro da Fazenda, Fernando Hadad, e entre os governadores, o de São Paulo, Tarcísio de Freitas. Além do acúmulo de décadas na discussão e debates em torno do caos tributário do país.
Também os lubrificantes – liberação de emendas e, futuramente, uma reforma ministerial – funcionaram em grau superlativo: apaziguaram raivas e definiram boas vontades. Ok, isso também faz parte.
O mérito do governo Lula foi, ao contrário de Bolsonaro, expressar a tal “vontade política”, que Bolsonaro não possuía em relação a governadores e prefeitos. Lula compreendeu que a reforma, interessando ao país, também lhe favoreceria. Conteve a fome da União pela crescente centralização de recursos. E, antes, não se complicou com o jogo inerente ao processo de negociação: percebeu essa convergência de interesses e os atendeu tanto quanto possível. Não atrapalhou o processo político e, claro, “azeitou” as engrenagens.
Dada as características gerais do presidencialismo do Brasil, o governo Lula fez o que deveria ser feito. O que não se via, há muitos governos – com um interregno dos meses de Michel Temer. Não foi pouca coisa: mesmo com todo o personalismo atávico que abraça os presidentes da República, Lula conteve seu ego. Pôs de lado a vaidade. Não desfocou os holofotes do ministro da Fazenda e não interferiu no relativo protagonismo da Câmara. Foi em tudo diferente de Jair Bolsonaro.
Sim, Lula não é Bolsonaro. Aliás, essa mesma reforma poderia ter sido aprovada no governo anterior, pois muitas das convergências agora presentes já existiam. E, na verdade, a reforma só não foi aprovada no período de Michel Temer porque o “Joesley Day” se impôs e, como uma roda viva, carregou o destino para cá.
A torcida vibra, o governo não é tão ruim quanto dizem seus críticos. Tampouco é tão bom como querem fazer crer seus entusiastas. Não ser Bolsonaro é até alvissareiro considerando o que o país poderia estar passando em caso de reeleição. Pode ser uma vantagem comparativa, mas não deveria ser considerado um mérito simplesmente porque, em face dos desafios, “não ser” é pouco. Há uma série de desacertos e dramas que clamam por solução. O país carece de um governo que se afirme diante do futuro.
Questões de amanhã postas desde sempre
A primeira questão é conseguir olhar para frente. A nova estrutura tributária atuará em torno de qual projeto de futuro, em torno de qual tipo de economia? Enquanto várias partes do mundo discutem novas formas de desenvolvimento, novas fontes de energia e Inteligência artificial, o Brasil ainda se preocupa em subsidiar a indústria automobilística, produzir combustíveis fósseis, fornecer o mesmo tipo (falho) de educação que não atendia sequer ao passado.
Pode parecer arcaico falar em “projeto nacional” – e, talvez, realmente seja. Mas, o fato é que na era do imprevisto – para usar o termo de Sérgio Abranches – é necessário que os governos tenham um bom entendimento das transformações das últimas décadas, que abalam o presente, para que possam sinalizar esperanças de superação. Isso não apenas não está dado, como está fora da ordem do dia.
Mesmo não sendo economista, algumas preocupações parecem óbvias. Podem ser expressas em poucos exemplos, ainda que, é claro, não se resumam a eles.
Embora a agropecuária seja nossa melhor fonte de divisas e, possivelmente, a verdadeira vocação do país dada sua geografia, a valorização de commodities oscila, é sazonal. Ao mesmo tempo em que demanda pouca mão-de-obra, o agronegócio atrai riqueza, mas também a concentra. Carece de quem o enxergue na abrangência de seu potencial, transformando-o em virtuosa cadeia de produção que hoje inexiste. Isso vale para as commodities em geral. Governos existem justamente para unir as partes e pensar o todo.
Na educação, em que pese o sempre lembrado caso do Ceará, o país todo tem pressa. Qual a educação necessária para o tempo da Inteligência Artificial? Não se desconhece que as respostas não sejam simples, posto que o terreno é ainda muito movediço. Mas, o atraso brasileiro é secular. Sem orientação oficial, professores encontram-se aflitos: como ensinar o que não se sabe? Como aprender a aprender? As respostas não podem demorar. Acenos de que problemas desse tipo estão sendo pensados são fundamentais.
Na Previdência, todas as mudanças no mundo do trabalho, a precarização e o gradual desaparecimento do emprego formal impõem mudanças para ontem. Ao mesmo tempo, o fantástico alargamento da expectativa de vida faz pensar no que fazer para abrigar a todos que já estão e os que ainda ficarão sem ocupação. Que fazer com um sistema cuja manutenção parece cada vez mais difícil? O quanto a reforma tributária poderia estar vinculada a essa questão?
A lista é longa: poderia englobar saúde, segurança pública, mobilidade urbana. Certamente, a questão do clima. Os exemplos aqui, porém, estão mais para ilustrar lacunas do que para buscar preenchê-las no curto prazo. Servem, antes, para baixar a bola. Mostrar que a reforma tributária é um excelente primeiro passo. Mas, os passos a seguir são também muito importantes. Ela é condição imprescindível, mas não bastante. O problema: há um silêncio ensurdecedor em relação a isso tudo.
Também o sistema político
Não faltarão odes em louvor e a respeito da beleza do presidencialismo de coalizão. Coalizões são naturais e um sistema de freios e contrapesos é mesmo imprescindível, não há divergência em relação a isso. Modelos teóricos são boas explicações de seu funcionamento em vários países. Mas modelos não são normativos. Transplantes nem sempre funcionam: sistemas imunológicos de culturas e formação histórica específicas tendem a rejeitar corpos estranhos. Aqui, portanto, não cabe a tese geral, mas o concreto caso brasileiro.
E no caso concreto deve-se buscar a medida geral de eficiência de um sistema político, que é sua capacidade de gerar desenvolvimento econômico e social; reduzir custos de transação. Nesse ponto, os dados da última década são conhecidos e falam por si. Os custos dispararam e os benefícios escassearam. O “lubrificante” utilizado nas grandes e comezinhas barganhas entre Executivo e Legislativo chega mesmo a fazer com que o mecanismo, não raro, gire em falso.
A exigência por emendas há tempos saiu da casa do “milhão” para avançar no palacete dos “bilhões”. Ministérios com enorme capacidade de movimentação de recursos, como a Saúde e a Educação, são agora o que de fato interessa – não pelos temas, é claro, mas pelos recursos. E, acima de tudo, com “porteiras fechadas”.
Assim, à parte da euforia inefável e momentânea com a aprovação da reforma tributária, o sistema político brasileiro impõe severos custos de transação que, cedo ou tarde, precisarão ser revistos. Estão cotidianamente nas páginas dos jornais e nas homepages dos portais de Internet: o país voltou a discutir questões que pareciam ter sido superadas nas décadas de 1990 e 2000, como a estabilidade econômica e a fome.
No mais, se é verdade que reformas tributárias são sempre arrastadas e de difícil negociação, a reforma tributária brasileira levou nada menos que quatro décadas para ser aprovada. E, ainda assim, até o momento, apenas na Câmara. E se deu menos por méritos ou beleza do sistema político do que pela confluência de interesses diversos que tangenciaram a curva do interesse geral – cuja derivada foi a reforma. Importante e positivo, é claro. Mas, ainda apenas um ponto.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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