Redes para um futuro descarbonizado
Integrar volumes crescentes de fontes de energia variáveis é desafio que exige transmissão em escala, com investimentos em digitalização, para garantir confiabilidade, eficiência e flexibilidade para as redes de eletricidade.
O Brasil foi confirmado sede da 30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP 30), a ser realizada em novembro de 2025, em Belém. Descarbonizar nosso futuro é compromisso assumido pelo país em sua NDC (sigla em inglês para Contribuição Nacionalmente Determinada) e que ganha mais ênfase neste governo. O objetivo declarado é atingir neutralidade de carbono em 2050. Antes disso, a NDC estabelece a meta de reduzir emissões de GHG em 37% e 50% em 2025 e 2030, respectivamente, com relação aos níveis de 2005.
Apesar de não haver metas de redução para setores específicos no país, o alvo indicativo é atingir participação de energias renováveis (não hidro) da ordem de 45% até 2030. Nossa performance tem sido celebrada até aqui no tema. Mas avançar exige cada vez mais empenho na integração de fontes de energia variáveis (VREs, da sigla em inglês) para evitar custos excessivos e ineficiência no alcance desses objetivos. Discuto neste artigo um dos principais desafios – aqui e além-mares – de integrar volumes crescentes de VREs: entregar transmissão em escala, beneficiada por investimentos em digitalização, de modo a garantir confiabilidade, eficiência e flexibilidade para as redes de eletricidade.
Avançar na descarbonização requer a eletrificação de novos usos, como transporte, e a penetração de energia limpa nas indústrias difíceis de descarbonizar, produzida a partir de tecnologias limpas. Porém essas metas e objetivos colocam novas demandas e desafios sobre os sistemas de redes de eletricidade desenhados no século XX.
Não basta falar em aumentar a participação de renováveis. Importante garantir que essa energia chegue ao consumidor de modo confiável, mas que seja pagável (equidade), através de grids resilientes a um futuro cada vez mais impactado por eventos climáticos extremos. O relatório World Energy Investments 2023 da IEA, lançado em maio, coloca os investimentos em rede como fator limitador da expansão de renewable energy (RE) em muitos países emergentes e em desenvolvimento (exclusive China). Economias avançadas e a China respondem por 80% do volume global e quase todo o crescimento nos anos recentes.
Nos sistemas do século XXI, que são largamente distribuídos, uma miríade de novos atores entra em cena: geração distribuída, resposta da demanda, armazenamento, power electronics na interface entre sistemas AC e DC, micro e mini redes, veículos elétricos (armazenamento sobre roda). Mudam padrões de consumo (cargas) que afetam a forma como os elétrons chegam aos usuários. E demandam novos tipos de coordenação entre a camada de informação - que vem da digitalização - e a camada dos ativos físicos para as decisões de produção, consumo e armazenamento de energia.
O papel das redes é ainda mais importante nesses sistemas elétricos descentralizados, o que requer modernização e acoplamento de novas tecnologias para torná-las responsivas e adaptadas a essa nova realidade.
O tema foi discutido pela professora Anuradha Annaswami em conferência recente no MIT, que abordou inovações em energia para alcançar um futuro net zero sob a perspectiva da eletrificação e das redes de eletricidade.
Ao redor do mundo, aumentam as preocupações com a capacidade de conectar renováveis ao consumo. A lógica dos investimentos e da expansão nos sistemas de transmissão não se alterou na velocidade da descentralização. Crescem os receios com atrasos, principalmente porque em muitos casos há grande penetração dessas tecnologias em regiões distantes da carga. Mesmo em países onde há mercados de energia desenvolvidos e custo de capital mais baixo, o licenciamento costuma levar anos, em muitos casos devido a emaranhados regulatórios kafkianos e a manifestações NIMBY. Estados Unidos, Europa e Austrália são exemplos onde conectar RE ao grid é o principal desafio para a expansão desses projetos. Há casos conhecidos de mais de uma década, podendo atingir 15 anos no Reino Unido, como aponta artigo recente no FT.
Se na maior parte dos casos a dificuldade é que não há infraestrutura de rede suficiente para conectar essas novas plantas, obstáculos adicionais se somam na experiência brasileira. Pensávamos que os leilões resolveriam todos os problemas: preços zonais (quatro submercados), planejamento e competição por menor requisito de receita atrairiam (e atraíram) investimentos em ativos, com garantia de repasse de receita aos consumidores pelo tempo da concessão. Esse modelo de negócios fez da transmissão a verdadeira cash-cow de finanças corporativas, com retornos moderados, mas garantidos e estáveis. O sistema se expandiu para conectar todo o país.
Só que o mundo gira. Os investimentos em RE nos anos recentes experimentam nova dinâmica. Crescem com a contratação no mercado livre e a micro e minigeração distribuída. E essa descentralização das decisões de produção e da geração efetiva hoje coloca novos desafios, pois as definições de investimentos dos desenvolvedores não consideram os custos e impactos na rede. É muito positivo conectar RE e expandir produção de energia limpa, inclusive para ajudar na descarbonização de nossos produtos tradeables, explorando vantagem competitiva de baixo conteúdo carbônico. Entretanto, não adaptar lógica da expansão a esse mundo descentralizado e digitalizado da descarbonização vai deixar muito consumidor fora do centro da transição energética, com uma conta que pode não caber no seu bolso. Sem contar que decisões que não consideram custos impostos ao sistema são ineficientes.
O governo não está parado. A proposta de Plano de Investimentos do Brazil para o Programa de Integração de Energia Renovável do Climate Investiment Funds (CIF-REI IP) fala de modernização das redes de T&D para aumentar nossa capacidade de integrar renováveis de modo acelerado, promovendo resiliência e equidade. Essa é, porém, a ponta do iceberg.
Esse admirável novo mundo descarbonizado tem complexidades que podem ser gerenciadas com tecnologias e inovação nos ativos e sistemas de comunicação do grid. Incorporá-las, requer adaptação no desenho e na estrutura de mercados. Nas palavras da Annaswamy, esse não é apenas um problema tecnológico, mas algo que requer técnicos, economistas e formuladores de política trabalhando em conjunto. Tudo para garantir as redes que nos conectam a um futuro descarbonizado, resiliente e com equidade. Não é fácil, todavia possível.
Esta coluna foi publicada originalmente em 13/06/2023, terça-feira, pelo Broadcast da Agência Estado.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva da autora, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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