Meio Ambiente

Redes para um futuro descarbonizado

16 jun 2023

Integrar volumes crescentes de fontes de energia variáveis é desafio que exige transmissão em escala, com investimentos em digitalização, para garantir confiabilidade, eficiência e flexibilidade para as redes de eletricidade.

O Brasil foi confirmado sede da 30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP 30), a ser realizada em novembro de 2025, em Belém. Descarbonizar nosso futuro é compromisso assumido pelo país em sua NDC (sigla em inglês para Contribuição Nacionalmente Determinada) e que ganha mais ênfase neste governo. O objetivo declarado é atingir neutralidade de carbono em 2050. Antes disso, a NDC estabelece a meta de reduzir emissões de GHG em 37% e 50% em 2025 e 2030, respectivamente, com relação aos níveis de 2005.

Apesar de não haver metas de redução para setores específicos no país, o alvo indicativo é atingir participação de energias renováveis (não hidro) da ordem de 45% até 2030. Nossa performance tem sido celebrada até aqui no tema. Mas avançar exige cada vez mais empenho na integração de fontes de energia variáveis (VREs, da sigla em inglês) para evitar custos excessivos e ineficiência no alcance desses objetivos. Discuto neste artigo um dos principais desafios – aqui e além-mares – de integrar volumes crescentes de VREs: entregar transmissão em escala, beneficiada por investimentos em digitalização, de modo a garantir confiabilidade, eficiência e flexibilidade para as redes de eletricidade.

Avançar na descarbonização requer a eletrificação de novos usos, como transporte, e a penetração de energia limpa nas indústrias difíceis de descarbonizar, produzida a partir de tecnologias limpas. Porém essas metas e objetivos colocam novas demandas e desafios sobre os sistemas de redes de eletricidade desenhados no século XX.

Não basta falar em aumentar a participação de renováveis. Importante garantir que essa energia chegue ao consumidor de modo confiável, mas que seja pagável (equidade), através de grids resilientes a um futuro cada vez mais impactado por eventos climáticos extremos. O relatório World Energy Investments 2023 da IEA, lançado em maio, coloca os investimentos em rede como fator limitador da expansão de renewable energy (RE) em muitos países emergentes e em desenvolvimento (exclusive China). Economias avançadas e a China respondem por 80% do volume global e quase todo o crescimento nos anos recentes.

Nos sistemas do século XXI, que são largamente distribuídos, uma miríade de novos atores entra em cena: geração distribuída, resposta da demanda, armazenamento, power electronics na interface entre sistemas AC e DC, micro e mini redes, veículos elétricos (armazenamento sobre roda). Mudam padrões de consumo (cargas) que afetam a forma como os elétrons chegam aos usuários. E demandam novos tipos de coordenação entre a camada de informação - que vem da digitalização - e a camada dos ativos físicos para as decisões de produção, consumo e armazenamento de energia.

O papel das redes é ainda mais importante nesses sistemas elétricos descentralizados, o que requer modernização e acoplamento de novas tecnologias para torná-las responsivas e adaptadas a essa nova realidade. 

O tema foi discutido pela professora Anuradha Annaswami em conferência recente no MIT, que abordou inovações em energia para alcançar um futuro net zero sob a perspectiva da eletrificação e das redes de eletricidade.

Ao redor do mundo, aumentam as preocupações com a capacidade de conectar renováveis ao consumo. A lógica dos investimentos e da expansão nos sistemas de transmissão não se alterou na velocidade da descentralização. Crescem os receios com atrasos, principalmente porque em muitos casos há grande penetração dessas tecnologias em regiões distantes da carga. Mesmo em países onde há mercados de energia desenvolvidos e custo de capital mais baixo, o licenciamento costuma levar anos, em muitos casos devido a emaranhados regulatórios kafkianos e a manifestações NIMBY. Estados Unidos, Europa e Austrália são exemplos onde conectar RE ao grid é o principal desafio para a expansão desses projetos. Há casos conhecidos de mais de uma década, podendo atingir 15 anos no Reino Unido, como aponta artigo recente no FT.

Se na maior parte dos casos a dificuldade é que não há infraestrutura de rede suficiente para conectar essas novas plantas, obstáculos adicionais se somam na experiência brasileira. Pensávamos que os leilões resolveriam todos os problemas: preços zonais (quatro submercados), planejamento e competição por menor requisito de receita atrairiam (e atraíram) investimentos em ativos, com garantia de repasse de receita aos consumidores pelo tempo da concessão. Esse modelo de negócios fez da transmissão a verdadeira cash-cow de finanças corporativas, com retornos moderados, mas garantidos e estáveis. O sistema se expandiu para conectar todo o país.

Só que o mundo gira. Os investimentos em RE nos anos recentes experimentam nova dinâmica. Crescem com a contratação no mercado livre e a micro e minigeração distribuída. E essa descentralização das decisões de produção e da geração efetiva hoje coloca novos desafios, pois as definições de investimentos dos desenvolvedores não consideram os custos e impactos na rede. É muito positivo conectar RE e expandir produção de energia limpa, inclusive para ajudar na descarbonização de nossos produtos tradeables, explorando vantagem competitiva de baixo conteúdo carbônico. Entretanto, não adaptar lógica da expansão a esse mundo descentralizado e digitalizado da descarbonização vai deixar muito consumidor fora do centro da transição energética, com uma conta que pode não caber no seu bolso. Sem contar que decisões que não consideram custos impostos ao sistema são ineficientes.

O governo não está parado. A proposta de Plano de Investimentos do Brazil para o Programa de Integração de Energia Renovável do Climate Investiment Funds (CIF-REI IP) fala de modernização das redes de T&D para aumentar nossa capacidade de integrar renováveis de modo acelerado, promovendo resiliência e equidade. Essa é, porém, a ponta do iceberg.

Esse admirável novo mundo descarbonizado tem complexidades que podem ser gerenciadas com tecnologias e inovação nos ativos e sistemas de comunicação do grid. Incorporá-las, requer adaptação no desenho e na estrutura de mercados. Nas palavras da Annaswamy, esse não é apenas um problema tecnológico, mas algo que requer técnicos, economistas e formuladores de política trabalhando em conjunto. Tudo para garantir as redes que nos conectam a um futuro descarbonizado, resiliente e com equidade. Não é fácil, todavia possível.


Esta coluna foi publicada originalmente em 13/06/2023, terça-feira, pelo Broadcast da Agência Estado.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva da autora, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

Comentários

Alexandre Franc...
A integração de Fontes Renováveis não despacháveis é um grande desafio para o ONS e para os operadores de sistemas de Distribuição. À parte das questões sobre inércia do sistema, amplamente discutidas por técnicos do setor em função dos desligamentos sistêmicos do dia 15 de agosto de 2023, e descartadas pelo ONS como causa do distúrbio, há ainda uma questão de fundo que é o “lastro” – que passou a ser chamado, preferencialmente, de “Capacidade”. Esta questão é ainda mais relevante quando se considera o rápido crescimento da Geração Distribuída no país – GD. Em primeiro lugar, vamos caracterizar a “Capacidade”; neste comentário, a “Capacidade” (ou lastro) será definida como a capacidade de uma dada fonte de entregar potência firme (e não “energia”) por um dado intervalo de tempo finito, adicionalmente à sua capacidade de entregar energia. O que se espera de uma fonte com “Capacidade” é que ela entregue um determinado montante contratado de energia e de potência quando em operação. Naturalmente que a “energia” resulta da integração da potência no tempo. Contudo, a capacidade de um dado SEP para entregar “potência” é tão ou mais importante que sua capacidade para entregar energia. Feita esta consideração, retornemos à questão da integração de Fontes Renováveis não despacháveis. Os parques Solares e Eólicos podem ter previsões de produção de energia razoavelmente seguras e confiáveis para um determinado intervalo longo de tempo (anual, ou mesmo mensal, por exemplo), baseadas em observações e análises estatísticas de longo prazo. Em qualquer lugar do planeta, há uma disponibilidade máxima de 12 horas de insolação diárias (média anual), às quais devem ser subtraídas as horas próximas ao nascer e ao pôr do sol (quando a radiação é fraca e o ângulo de incidência sobre os painéis solares é raso) e os dias nublados e chuvosos. Isto leva a um fator de capacidade máximo de 25% para usinas solares e sistemas de GD solares. Em outras palavras, ainda que seja possível prever com razoável precisão a quantidade de energia gerada por uma usina solar ou por GD durante u intervalo de tempo longo (1 ano, por exemplo) nada se pode dizer a respeito da geração instantânea ou mesmo diária. Portanto, em decorrência da impossibilidade de se prever e assegurar um dado nível de potência injetada na rede por estes geradores, não se pode aplicar a eles o conceito de “energia firme”. Sistemas de geração Solar são tipicamente intermitentes, com variabilidade imprevisível na produção de energia. Em outras palavras, não é possível, para estes sistemas, assegurar qualquer montante de Capacidade ou de Produção (de potência) ao longo de um dado intervalo de tempo. Desta forma, o conceito de garantia física - quanto um ativo físico do sistema contribui para o atendimento da demanda de eletricidade de forma acumulada ao longo de um determinado intervalo de tempo - requer, em especial para Parques Solares Fotovoltaicos, a conjugação com um elemento capaz de fornecer potência nos intervalos de indisponibilidade de produção. No caso da GD, cabe à Concessionária de Distribuição – a única que conhece seu próprio mercado - o provimento deste serviço e dos meios para seu controle e gestão. Isto implica na necessidade de a Concessionária de Distribuição “agregar” (prever o resultado da operação conjunta) destas fontes de GD ou parques, garantindo a segurança do suprimento energético e atendimento de capacidade pelo sistema. Em outras palavras, a geração solar distribuída fica encarregada de fornecer uma dada quantidade de energia em um dado intervalo de tempo, mas as garantias de continuidade, estabilidade de tensão, atendimento à demanda da carga, etc., deve ser assegurada por outro mecanismo ou sistema, de capacidade adequada e rápida resposta. Então, se por um lado o operador do SIN pode exigir que uma fonte ou um conjunto de fontes intermitentes de grande porte disponha de mecanismos para assegurar algum montante da capacidade, os distribuidoras com grande quantidade de GD em suas redes não terão a mesma facilidade para estabelecer mecanismos de suprimento de capacidade (e controle de tensão). A Distribuidora de fato se beneficia da variabilidade estatística de suas cargas pois o fator de carga – relação entre a marga máxima e a média de um dado sistema ou subsistema – tende a ser maior (melhor) quanto maior o número de clientes atendidos por este sistema; entretanto, o mesmo não ocorre com a geração solar fotovoltaica, uma vez que todos os geradores respondem de forma idêntica e simultânea à variação da radiação solar – um dia nublado ou o anoitecer atingem de forma igual e simultânea a todos os geradores. Assim, faz-se mister caracterizar as variáveis de interesse da Operação com base na análise de dados dos sistemas de Supervisão e Controle da Operação, identificar os riscos (de continuidade de fornecimento, de suprimento, de qualidade, etc.) associados à operação de redes elétricas em um cenário com elevada penetração de Fontes Renováveis não despacháveis.

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