Macroeconomia

Por que o populismo deve perdurar nos Estados Unidos

14 dez 2020

A comparação dos números do voto popular dos dois candidatos na eleição presidencial norte-americana sugere que o populismo será um fenômeno mais permanente. Daqui a quatro anos é provável que tenhamos um candidato populista. Será Trump ou alguém do establishment republicano. Não se sabe.

Sabemos que, se não fosse pela epidemia, é bem possível que Trump fosse vitorioso. Considerando somente os votos aos dois candidatos competitivos, isto é, desconsiderando nulos e brancos e outras candidaturas, Trump teve agora somente 0,9 ponto percentual a menos do que obteve em 2016.[1]

O fenômeno do populismo está associado aos perdedores da globalização. Tratamos do tema neste espaço na edição de fevereiro de 2017. Apesar de a globalização ter reduzido pesadamente a pobreza do mundo e também a desigualdade, os trabalhadores de média escolaridade das economias desenvolvidas foram perdedores.

Como Dani Rodrik[2] mostrou, sociedades mais abertas ao comércio internacional tendem a ter maiores cargas tributárias pois, em geral, economias mais abertas são mais sujeitas a choques. É necessário haver mais seguro social. O estado de bem-estar social precisa ser mais abrangente.

Esse não tem sido o caso nos EUA. De 1969 até 2019, o grau de abertura – exportações somada às importações como proporção da economia – subiu de 10% para 26%. Por outro lado, o gasto público, considerando o setor público consolidado, cresceu muito menos, de 30% para 34% do PIB.

Em particular, em algumas áreas a cobertura é marcadamente deficiente, como no setor de saúde. Na comparação com os países ricos, os EUA se desviam completamente da norma na relação entre expectativa de vida e gasto per capita em saúde. Em comparação ao Canadá, o gasto per capita estadunidense em saúde é o dobro, para uma expectativa de vida ao nascer quatro anos menor. Gasta-se mais e se morre mais cedo. Os indicadores de mortalidade infantil e mortalidade materna também são bem piores nos EUA na comparação com o resto do mundo rico.[3]

No recente Mortes desesperadas[4], os professores de Princeton Anne Case e Angus Deaton, este prêmio Nobel de Economia, documentam o fenômeno das mortes de americanos brancos entre 45 e 55 anos produzidas por suicídio, alcoolismo e por overdoses de analgésicos à base de opiáceos. Há uma tendência para os países da OCDE, que era compartilhada pelos EUA, de queda da mortalidade dessa faixa etária. Avanços na prevenção e tratamento de doenças cardíacas e redução do fumo explicam boa parcela do recuo. Na segunda metade dos anos 90, os números para os EUA se descolaram da tendência geral e pararam de cair. Hoje, os EUA apresentam as mesmas 400 mortes anuais para cada 100.000 brancos não hispânicos, entre 45 e 55 anos, observada em 1990. Já na França houve queda de 450 por 100.000, em 1990, para 270 hoje.[5]

O comércio internacional e novas tecnologias de informática que substituíram bem o trabalho com as médias qualificações – ensino médio completo ou superior incompleto –,  associados ao uso generalizado de robôs nas linhas de montagem da indústria, tiveram fortes efeitos. Esses fatores produziram um longo processo pelo qual todo um estilo de vida da classe trabalhadora, construído desde o New Deal de Roosevelt e reforçado pelo crescimento espetacular dos 30 anos gloriosos do pós-guerra, foi sendo destruído.

Não que a oferta de trabalho tenha se reduzido. Não há sinais desse fato. Mas a procura ficou mais concentrada nas ocupações com maiores escolaridades. Adicionalmente, os processos de divisão da produção em inúmeras etapas e da terceirização quebraram o poder dos sindicatos de transferir parte dos ganhos associados às quase rendas das marcas e patentes das empresas aos trabalhadores do chão de fábrica.[6]

A associação de globalização com tecnologia gerou oportunidades para que os ganhos de profissionais altamente bem-sucedidos no campo das artes, cultura, esportes e finanças, os CEO das empresas e profissionais como médicos e advogados fossem acrescidos de alguns zeros. Uma grande empresa hoje, com toda a tecnologia da informação, pode ter inúmeras plantas em diferentes locais. Evidentemente, esse enorme retorno de escala altera o ganho dos gestores, em particular do CEO.

Diversos efeitos reforçam a tendência concentradora do sistema. O ingresso das mulheres no mercado de trabalho teve dois impactos ruins para a desigualdade. Por um lado, tornou mais cara a contratação de bons professores para a rede pública. No passado as mulheres mais talentosas e bem preparadas escolhiam a carreira docente na rede, única possibilidade socialmente aceita.[7] Parte da queda da qualidade do sistema público de educação deve-se ao maior campo de escolha para as mulheres no mercado de trabalho.

Por outro lado, a maior presença da mulher no mercado de trabalho transformou seu salário em importante fonte da renda familiar. Aumentou a formação de casais com o mesmo nível de escolaridade. Homens muito educados passaram a dar preferência a mulheres muito educadas e vice-versa. O que se chama em inglês de assortative matching elevou a desigualdade.[8]

Nos EUA, há sinais de que todas essas tendências são reforçadas pela redução da competição e aumento do poder de mercado das grandes empresas.[9]

Tudo somado, temos o mapa eleitoral norte-americano: azul nas costas Leste e Oeste e vermelho no interior. O americano caipira, conhecido por redneck ou, mais modernamente, por flyovers – aqueles que a elite sobrevoa quando toma o avião de costa a costa –, com a vida perdendo sentido, embarca no primeiro populista de plantão que apresente uma boa teoria da conspiração para explicar seus complexos problemas.

Será que Biden será capaz de iniciar ações que mudem esse estado de coisas? Difícil dizer. A perspectiva não é positiva. Há evidências de que os EUA rejeitam a construção de serviços públicos universais de maior qualidade. Aparentemente, a segmentação racial da sociedade faz com que o branco pobre se identifique com o branco rico e não com o afro-americano ou hispânico. A heterogeneidade racial dificulta a solidariedade entre os pobres e a construção de um sentimento de pertencimento à mesma classe social e de existência de interesses comuns. A saída acaba sendo o populismo.[10]

 


[1] Em 2016 foram 65,9 milhões de votos para Clinton e 63,0 milhões para Trump, isto é, Trump teve 48,9% dos votos. Agora os números foram respectivamente 80,3 milhões e 74,0 milhões, ou 48,0% dos votos.

[2] Dani Rodrik, “Why Do More Open Economies Have Bigger Government?”, publicado no Journal of Political Economy, 1998, 106(5): 997-1032.

[4] Death of Despair, Princeton University Press, 2020.

[5] Death of Despair, página 30.

[6] Este fato é bem descrito no capítulo 6 do excelente The Third Pillar, de Raghuram Rajan, Penguim Press, 2019.

[7] Este efeito foi reforçado pela elevação do grau de compressão salarial promovida pelos sindicados dos professores no período. Ver “Pulled Away or Pushed Out? Explaining the Decline of Teacher Aptitude in the United States”, de Caroline M. Hoxby e Andrew Leigh, publicado na American Economic Review, 94(2): 236-240, de maio de 2004.

[8] Ver “Marry Your Like: Assortative Mating and Income Inequality”, de Jeremy Greenwood, Nezih Guner, Georgi Kocharkov e Cezar Santos, publicado na American Economic Review: Papers & Proceedings, 104(5): 384-353 em 2014.

[9] Ver The Great Reversal, How America Gave up Free Markets, de Thomas Philippon, Harvard University Press, 2019.

[10] Veja “Why Doesn’t the United States Have a European-Style Welfare State?” de Alberto Alesina, Edward Glaeser e Bruce Sacerdote, Brookings Paper on Economic Activity, volume 2 de 2001.


Esta é a coluna Ponto de Vista da Conjuntura Econômica de dezembro de 2020.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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