Macroeconomia

O espaço fiscal para além das angústias do ano eleitoral

1 set 2021

Melhora da trajetória da relação dívida/PIB, efeitos da reforma da Previdência, contenção da folha do funcionalismo e fim dos grandes reajustes reais do salário  mínimo são fatores que indicam que “espaço fiscal” no Brasil, no médio e longo prazo, não é tão exíguo assim.

Recentemente, as expectativas fiscais no Brasil voltaram a piorar na percepção dos agentes do mercado financeiro. Juros longos ultrapassaram a marca emblemática dos dois dígitos, o que, além de refletir a inflação mais alta e a projeção de juros reais mais elevados para combatê-la, também estaria ligado à percepção de maior risco fiscal, na interpretação de alguns analistas.

O ano de 2022 terá eleições presidenciais e para o Congresso, e o entendimento de muitos é de que o governo buscará espaço fiscal na campanha pela reeleição do atual presidente. Isso, por sua vez, levaria ao limite as pressões sobre o teto constitucional de gastos, percebido pelo mercado desde a sua aprovação em 2016 como a grande âncora da solvência pública. 

Especificamente, o aumento da conta de precatórios a pagar pelo governo federal de aproximadamente R$ 56,4 bilhões para R$ 89,1 bilhões entre 2021 e 2022 (dados da Instituição Fiscal Independente, IFI) está levando o governo a arquitetar soluções que evitem que esse ônus adicional consuma todo o espaço fiscal, ou a maior parcela dele, no ano eleitoral. Na análise de muitos, que parece influenciar os preços de mercado, a maior parte dessas soluções para o problema dos precatórios arranha profundamente a credibilidade do teto como âncora fiscal.

Toda essa discussão, entretanto, apesar de se basear em fatos reais e preocupantes, tem um forte viés de curto prazo, na visão do economista Manoel Pires, pesquisador associado do FGV IBRE, em texto no Blog do IBRE. Ele nota inicialmente que o espaço fiscal pode ser entendido como todo o gasto público que o mercado aceita financiar sem qualquer estresse, o que é uma boa definição, mas não avança muito em termos de guiar a política pública. Outros estudos econômicos tentaram estabelecer um teto de dívida pública como proporção do PIB – 60% é um desses parâmetros – como marco a partir do qual se determina o espaço fiscal. Mais recentemente, o FMI elencou fatores relacionados a dívida pública, ativos públicos, projeção de gastos e efetividade e institucionalidade da política fiscal como elementos que determinam e diferenciam o espaço fiscal dos países, inclusive limites para a dívida.

Quando se examina a situação brasileira à luz dos fatores estabelecidos pelo FMI, encontra-se um quadro matizado, longe da plena robustez fiscal, mas igualmente distante das visões mais alarmistas do mercado financeiro. Para começar, houve enorme surpresa positiva em relação à trajetória da dívida bruta entre as projeções feitas em 2020, para 2021 e 2022, e os resultados efetivos – e o que se percebe da perspectiva do presente. Em 2 de dezembro do ano passado, a projeção mediana era de dívida bruta encerrando 2020 em 95,2% do PIB, e 2021 em 96,5%. Um mês antes, em 2 de novembro, as projeções chegaram ao seu pico pessimista, com respectivamente 97,5% e 99,2% do PIB para os dois anos. Na realidade, a dívida bruta fechou 2020 em 88,8% do PIB e a projeção para o fim de 2021 é de 83,3%. Prevê-se dívida bruta de 91,5% do PIB ao fim de 2024, ainda bem abaixo do nível imaginado em novembro passado para o final de 2021.

Pires nota que, tomando-se a datação de ciclos econômicos realizada pelo Comitê de Datação de Ciclos Econômicos do FGV IBRE (Codace), há um padrão de a dívida pública subir ao longo de recessões, como ocorrido em 2008/09, na rápida contração da crise financeira global, e na longa recessão de 2014-16. Na crise da pandemia, porém, a dívida recolocou-se em trajetória de queda ainda durante a recessão. O mesmo padrão pode ser notado na evolução do déficit nominal, que subiu na rápida recessão de 2009 e se elevou bem mais do que o subsequente recuo na de 2014-16. Já na recessão da Covid, o déficit nominal subiu e depois caiu quase na mesma medida. E, quando se toma o resultado primário recorrente, o indicador em 2020 recuou muito levemente, em linha com o que já vinha ocorrendo desde 2018. A projeção de Pires para 2021 é de que atinja -1,29% do PIB, o melhor desde os -2,91% de 2016. O resultado recorrente exclui receitas e despesas extraordinárias, inclusive aquelas incorridas por conta da Covid-19.    

Outro ponto positivo no cenário fiscal dos próximos anos, segundo Pires, é o impacto da reforma da Previdência, que parece bem maior do que as previsões feitas na época da sua aprovação. O efeito estimado hoje acumula economia fiscal de R$ 1,35 trilhão até 2031 em valor presente. Além das medidas restritivas em si da reforma, outro fator que está contribuindo para reduzir a conta previdenciária é o fato de que a política de aumento real do salário mínimo a partir do Plano Real, que se percebia como um resultado férreo e imutável da economia política da redemocratização, simplesmente dissolveu-se nos últimos anos, de forma discreta e quase sem reclamações. Depois de atingir um pico de 23,83% no primeiro mandato do presidente Lula, o aumento real do salário mínimo caiu para 4,32% no quadriênio 2015-18 (presidentes Dilma e Temer). No triênio 2019-21, foi de apenas 1,35%. 

Já as despesas de pessoal (incluindo Previdência do funcionalismo) como proporção do PIB têm trajetória de leve declínio desde 1994 (5,1%), com oscilações. Com a recessão de 2014-16, que reduziu o denominador, esses gastos subiram de 3,8% para 4,3% em 2017, mas permanecem estabilizados nesse patamar até 2020, mesmo com a queda de 4% do PIB no primeiro ano da pandemia.

Mesmo no curto prazo, horizonte que parece dominar as percepções do mercado, há alguns fatos tranquilizadores. O colchão de liquidez do Tesouro Nacional da Conta Única atingiu R$ 1,167 trilhão em junho, o que corresponde a 97% da dívida pública a vencer em 12 meses. É a relação entre caixa e dívida a vencer mais favorável desde dezembro de 2019.

Mas nem tudo são notícias boas no front fiscal, obviamente. Os juros que incidem sobre a dívida pública estão em alta, inclusive porque um dos principais fatores que levaram à surpresa positiva mencionada no início desta Carta foi a forte alta da inflação (e mais ainda do deflator do PIB), que eleva o PIB nominal, denominador da relação dívida/PIB. Os juros prefixados de cinco anos subiram de 5,92% para 9,52% entre julho de 2020 e agosto de 2021. Quando se correlaciona essas taxas com a remuneração pós-fixada, nota-se que o juro real implícito subiu de 1,99% para 4,27%, enquanto a inflação implícita elevou-se de 3,86% para 5,03%.

No frigir dos ovos, nas estimativas de Pires, tomando-se projeções bastante razoáveis de juros reais um pouco acima de 3,5% e de crescimento econômico médio de 2% ou ligeiramente mais, o resultado primário de equilíbrio do Brasil no médio e longo prazo varia de 0,5% a 0,7% do PIB. É um nível bastante factível dada a trajetória do resultado primário recorrente nos últimos anos.

Um outro aspecto do debate sobre o espaço fiscal é bem mais imediatista e volta-se a quanto o governo poderá gastar em novas iniciativas, como a ampliação do Bolsa Família, no ano eleitoral de 2022. Nessa questão, anteviu-se que o reajuste do teto pelo IPCA acumulado em 12 meses até junho (8,35%) ficaria bem acima do INPC fechado de 2021, que corrige os benefícios do INSS e programas sociais como o BPC, além de ser parâmetro para o seguro-desemprego. A diferença entre os dois índices poderia render cerca de R$ 30 bilhões de gastos adicionais em 2022, suficientes para se financiar a extensão do Bolsa Família. Porém, além do já mencionado imbróglio dos precatórios, as expectativas para o INPC fechado do ano vêm subindo, consumindo parte daquela gordura. O índice acumula 9,85% nos 12 meses até julho, e a pergunta agora é se, no final das contas, haverá algum ganho da diferença de indexadores.

Todo esse debate, entretanto, é extremamente conjuntural e carregado de tintas políticas, e não deveria ser confundido com o espaço fiscal de médio e longo prazo, objeto das preocupações de Pires. Na visão do pesquisador, a economia brasileira precisa completar seu ajuste fiscal, mas isso não quer dizer que investimentos públicos de qualidade e gastos necessários a dar mais qualidade ao funcionamento do Estado devam ser riscados da lista de alternativas de política pública nos próximos anos. Como a análise desta Carta indicou, a situação fiscal é problemática, mas longe de desastrosa, se o mix correto de políticas econômicas for implantado.  

O grande problema, porém, é o que fazer com o espaço fiscal que existe. Consumi-lo com emendas parlamentares descoordenadas ou ao sabor das mais variadas pressões de grupo de interesses é não só inútil, como contraproducente. O desafio, portanto, é determinar com boa técnica e prudência o espaço fiscal existente e utilizá-lo de forma eficaz para acelerar o crescimento e reduzir as desigualdades sociais sem comprometer o equilíbrio das contas públicas.


O texto é resultado de reflexões apresentadas em reunião por pesquisadores do IBRE. Dada a pluralidade de visões expostas, o documento traduz minhas percepções sobre o tema. Dessa feita, pode não representar a opinião de parte, ou da maioria, dos que contribuíram para a confecção deste artigo.

Esta é a Carta do Ibre de setembro de 2021, publicada na revista Conjuntura Econômica do mesmo mês.

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fernando

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