21 anos de meta de resultado primário
Meta de resultado primário foi mudada em 57% dos anos de sua vigência, isto é, em 12 de 21 anos desde aprovação da LRF, em 2000. Desde 2016, foco da discussão fiscal já se deslocou para tamanho do gasto público, mas governo ainda não fez mudança formal da meta fiscal da LRF.
No ano passado o governo brasileiro completou 21 anos de meta de resultado primário. Relembrando, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) foi aprovada em 2000, no âmbito de um acordo com o FMI, e entrou em vigor em 2001, no final do governo Fernando Henrique Cardoso (FHC).
Uma das determinações da LRF é que o governo tenha meta de resultado primário, fixada com um ano de antecedência do exercício fiscal, e ajuste seu orçamento, em tempo real, caso o cenário macroeconômico indique que a meta corre risco de não ser cumprida.
Pois bem, 21 anos depois de seu início, qual foi o desempenho do Tesouro Nacional no cumprimento das metas de resultado primário fixadas com um ano de antecedência? Houve mudança de meta em 12 dos 21 anos de vigência da LRF!
A tabela abaixo resume as informações, mas antes de prosseguir cabe destacar que, em 2003, a meta foi mudada para mais, logo podemos considerar o episódio como cumprimento da meta. Em compensação, em 2012, a meta foi cumprida via uma série de operações não recorrentes (de adiamento de despesa e antecipação de receita), o que abalou a credibilidade do governo e serviu de pretexto para iniciar o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, quatro anos depois. Creio que um ano compensa o outro e, por isso, considero que a meta de resultado primário foi mudada em 57% do tempo de vigência da LRF (12 de 21 anos).
Tabela 1: cumprimento da meta de resultado primário fixada com um ano de antecedência.
Fonte: elaboração do autor com base em notícias da imprensa e informes do Tesouro Nacional e Congresso.
MP=Medida Provisória, PLC=Projeto de Lei Complementar, PEC=Proposta de Emenda Constitucional,
PAC=Programa de Aceleração do Crescimento, FSB=Fundo Soberano do Brasil e E&M=Estados e Municípios.
Passando à minha avaliação qualitativa, o período de metas de resultado primário pode ser dividido em quatro fases:
- Teste em 2001-02: no primeiro ano de vigência da LRF, 2001, o governo FHC mudou e não cumpriu a meta de resultado primário. A mudança foi feita por Medida Provisória (MP) e o não cumprimento da meta não teve repercussões legais para a equipe econômica da época. Como aquele período era o início de uma nova regra fiscal, as autoridades regulatórias foram benevolentes com a equipe econômica de FHC. Além disso, o cumprimento da meta de resultado primário de 2002 minorou o furo de 2001. Em governo de direita, regra fiscal é sempre uma coisa relativa.
- Expansão fiscal equilibrada em 2003-06: o governo Lula começou tecendo loas à política econômica de FHC e não só cumpriu como aumentou a meta de resultado primário da União. Como a situação econômica internacional foi favorável ao Brasil durante o primeiro mandato de Lula, foi possível cumprir a nova meta fiscal com aumento de gasto e de receita fiscal. O resultado foi uma política fiscal expansionista, na linha do “multiplicador do orçamento equilibrado” de Haavelmo: um aumento equivalente da receita e da despesa do governo tem impacto positivo sobre o PIB porque o aumento da receita não gera queda da mesma magnitude do gasto privado.
- Mais investimento e política anticíclica em 2007-11: o segundo mandato de Lula e início do governo Dilma foram marcados pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), com possibilidade de abatimento de alguns investimentos do gasto primário, a partir de 2007, e exclusão de “grandes estatais” (Petrobras e Eletrobras) do cálculo de resultado primário do setor público, a partir de 2010. A lógica era permitir mais investimento pelo Estado, o que de fato ocorreu. No meio do caminho houve a crise financeira global de 2008 e o governo também alterou sua meta fiscal de 2009, via Projeto de Lei Complementar (PLC), para adotar medidas anticíclicas.
- Desaceleração e crise fiscal recorrente em 2012-15: a partir de 2012 o cenário internacional ficou mais adverso ao Brasil, mas o governo inicialmente manteve suas metas fiscais inalteradas, apostando que o problema seria passageiro. Como alguma coisa tinha que ceder, houve utilização crescente de operações fiscais não recorrentes (todas legais) em 2012-14, e mudanças sucessivas de meta fiscal, em 2013-15. Como no período anterior, as mudanças de meta foram feitas por PLC, mas com grande atraso em relação à necessidade da economia e elevado custo político para o governo. A incerteza fiscal aumentou e isso se refletiu no câmbio e na taxa de juro.
- Orçamento com déficit em 2016-21: a partir de 2016 o governo reconheceu o óbvio problema fiscal e mudou sua política para metas de déficit primário. No meio dessa mudança houve o golpe ou impeachment da Presidente Dilma, sob o pretexto de irregularidades fiscais. Seja qual for a opinião do leitor sobre a mudança de governo em 2016, do ponto de vista fiscal, desde aquele ano o Tesouro vem adotando previsões conservadoras de receita, com metas de déficit primário folgadas o suficiente para evitar a repetição das crises fiscais de 2012-15. Ainda assim, foi necessária uma pequena mudança da meta de resultado primário de 2017, devido a um erro de projeção do governo, seguida por uma grande mudança em 2020-21, via duas Propostas de Emenda Constitucional (PEC), para lidar com os efeitos econômicos e sociais da Covid.
Dado que o governo federal tem mudado mais do que cumprido suas metas de resultado primário nos últimos 21 ano, já passou da hora de repensar tal regra. Em um texto anterior, apresentei os quatro problemas operacionais de metas de resultado, quais sejam:
- Política fiscal pró-cíclica: o governo corta gasto e aumenta imposto na recessão, fazendo o oposto na expansão. Em vez de estabilizar, a política fiscal acaba desestabilizando a economia.
- Orçamento sanfona: todo ano começa com contingenciamento e termina com descontingenciamento de gasto primário.
- Orçamento irrealista: sabendo que haverá contingenciamento, todos os órgãos do governo pedem um orçamento acima do que realmente precisam.
- Corrida por aumento e vinculação de receita: o debate político enfatiza a criação de receita tributária, vinculada ao gasto considerado meritório pela classe política, de modo a não comprometer a meta de resultado primário.
Além das considerações teóricas acima, nossa história recente demonstra que metas de resultado aumentam a incerteza fiscal, com possibilidade de crise institucional grave quando o governo é de esquerda. Em resposta a esse problema político, como agentes econômicos racionais respondem a incentivos, desde 2016 nossas autoridades vêm adotando metas de déficit primário grandes o suficiente para diminuir o risco de não cumprimento da LRF.
Dilma propôs o primeiro orçamento com déficit e, como sempre acontece com o primeiro a fazer a mudança, foi penalizada por isso. Temer aumentou o orçamento com déficit e governou quase sem nenhuma restrição de resultado. Bolsonaro continuou a prática, adotando metas de déficit primário bem maiores do que a expectativa do governo e do mercado, de modo a não criar problemas para si mesmo.
O fato é que, desde 2016, o foco de nossa discussão fiscal já se deslocou para o tamanho do gasto público, mas o governo ainda não fez a mudança formal da meta fiscal da LRF. Espero que essa mudança ocorra no próximo mandato presidencial, com substituição da meta de resultado primário em prol de metas de gasto primário. Quais metas de gasto? Há várias alternativas, do teto Temer (congelamento do valor real) a regras mais racionais (com crescimento real não explosivo da despesa). Voltarei a esse tema em outro texto.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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