Os quatro problemas da meta de resultado primário
Política fiscal pró-cíclica, orçamento superdimensionado e “sanfona” (espremido no início e esticado no final do ano) e corrida por aumento e vinculação de receitas são problemas decorrentes da meta de resultado primário. Uma meta de gasto resolve todos esses problemas.
O corte do orçamento federal de 2022 despertou as críticas usuais, com reclamações sobre a redução de recursos para gastos meritórios, como atendimento do INSS e bolsas de estudo, enquanto programas menos transparentes e de eficácia duvidosa foram preservados.
O corte de R$ 3,1 bilhões foi até pequeno em relação ao total de despesa primária programada para este ano, de aproximadamente R$ 1,7 trilhão, mas ainda assim é sempre ruim reduzir recursos em relação à programação debatida e aprovada pelo Congresso.
A prática não é nova. Ela remonta à adoção da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) de 2000, que começou a ser praticada em 2001 e manda o governo cortar despesas ou aumentar receitas caso o cenário macroeconômico indique que não será possível cumprir a meta de resultado primário.
A lógica da LRF, adotada no âmbito de um acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), era produzir o superávit financeiro necessário para controlar a dívida pública. Passados 21 anos de sua adoção, podemos dizer que a meta de resultado primário teve mais efeitos ruins do que positivos sobre a economia brasileira, por quatro motivos.
1 – Política Fiscal Pró-Cíclica
Meta de resultado induz o governo a estimular a economia em momento de expansão, e contrair a economia em momento de recessão.
Quando a economia evolui melhor do que o esperado pelo governo, a receita vem acima do projetado no orçamento e, portanto, é possível aumentar despesas, cortar impostos e ainda assim cumprir a meta de resultado primário. Foi isso que aconteceu no tempo de “vacas gordas”, em 2004-08, quando a elevação dos preços internacionais de commodities gerou uma renda extra para o governo federal.
Em contraste, quando a economia evolui abaixo do esperado pelo governo, a receita fica menor do que o previsto no orçamento e é preciso cortar despesas ou aumentar impostos para cumprir a meta de resultado primário. Se o corte de despesa e aumento de imposto se demonstrarem inviáveis, resta à equipe econômica mudar a meta fiscal ao longo do ano, com grande custo político e econômico. Foi isso que aconteceu no período de “vacas magras”, em 2012-16, quando o cenário internacional desfavorável ao Brasil criou tensões orçamentárias crescentes, que por sua vez geraram contingenciamentos anuais cada vez maiores, e mudanças recorrentes de meta fiscal.
2 – Orçamento sanfona
Quando o governo tem meta de resultado, ele tem que ajustar a despesa à evolução da receita ao longo do ano e isso gera um “efeito sanfona” na execução orçamentária.
No início do ano, quando a receita ainda é muito incerta, as autoridades adotam uma postura conservadora, reestimando a receita para baixo e contingenciando o gasto aprovado pelo Congresso. O corte ocorre sobre as despesas discricionárias e penaliza programas de longo prazo, sobretudo o investimento. Todo ano começa com arrocho fiscal.
À medida que o ano passa e a evolução da receita é conhecida, as autoridades tendem a liberar os recursos retidos no início do ano. Isso acontece tanto em anos de bonança, quando a receita vem em linha ou acima do esperado, quando em anos de crise, quando a receita vem abaixo do esperado e o governo altera sua meta fiscal (geralmente no último trimestre). O resultado é uma expansão fiscal em novembro ou dezembro, com os Ministérios correndo para gastar o que for possível antes do calendário virar. Todo ano termina com expansão fiscal.
3 – Orçamento superdimensionado
Nós economistas aprendemos, no primeiro ano de curso, que agentes econômicos respondem a incentivos. Gestores públicos são agentes econômicos e, portanto, também respondem aos incentivos gerados pela regra fiscal.
Quando o governo adota meta de resultado primário, é racional que a equipe econômica conservadoramente contingencie recursos no início do ano, para eventual liberação no final do ano, como eu descrevi na seção anterior. Agora coloque-se no lugar do ordenador de despesa fora da equipe econômica.
Se você sabe que os técnicos do Ministério da Economia cortarão seu orçamento em 10% no início do ano, o que você faz? Você pede um orçamento 11,11% acima do que você precisa. Em outras palavras, se você precisa de R$ 100, você pede R$ 111,11 para que, após o corte de 10%, você fique com os R$ 100 que realmente precisa.
O resultado da expectativa de contingenciamento é o incentivo para que TODOS os Ministérios peçam mais recursos do que eles realmente precisam, o que por sua vez gera um clima de desconfiança entre a equipe econômica e o restante do governo, com os técnicos da economia tentando achar os excessos em cada pedido de recurso dos demais ministérios.
Todos os envolvidos no processo se comportam racionalmente, mas o resultado para o país é um orçamento fictício, com grande desperdício de horas de trabalho na avaliação e execução de programas. Há uma perda de eficiência do governo e crises políticas recorrentes na “Esplanada dos Ministérios”.
No passado, quando emendas parlamentares eram contingenciadas, a meta de resultado primário também gerava crises recorrentes entre os poderes Executivo e Legislativo. Agora isso acabou, sob o preço de um orçamento secreto. As emendas impositivas, sejam elas individuais, de bancada ou de relator, são consequência direta do erro da LRF em criar metas de resultado primário.
4 – Corrida por aumento e vinculação de receita
O quarto e último problema da meta de resultado primário também é simples e intuitivo: quando o governo tem meta de resultado, teoricamente você pode ampliar a despesa desde que você também apresente um aumento de receita que a financie.
A meta de resultado primário estimula a classe política a procurar fontes orçamentárias para financiar os programas que ela acha necessários sem alterar a meta de resultado primário. E para piorar o quadro, como os programas podem ser contingenciados pela equipe econômica, a classe política também procura vincular as novas receitas à aplicação dos recursos nos programas por ela desejados.
O resultado do processo é a concentração da discussão orçamentária no aumento e vinculação de receita em vez de no controle e eficiência do gasto. Por exemplo: quer aumentar o recurso para a saúde? Vamos aumentar a tributação sobre cigarros e bebidas e direcionar a arrecadação extra somente para o SUS. Quer aumentar a verba dos esportes e cultura? Vamos legalizar os jogos de azar e canalizar o ganho de receita para incentivos ao esporte e à cultura. Quer desonerar ou subsidiar o emprego? Recrie a CPMF e direcione a arrecadação para a desoneração da folha de pagamento.
A lista de ideias para “taxar-vincular-gastar” é grande, cada uma delas com méritos e fragilidades distintas, mas todas elas têm um elemento comum: quando a equipe econômica diz que o resultado primário não pode ser alterado, o resto do governo e o Congresso respondem buscando aumento de receita para pagar o aumento de despesa que consideram meritório, sem alterar o resultado primário.
Conclusão
Diante dos problemas listados acima, os leitores devem estar se perguntando: se a regra de primário é tão ruim, por que ela dura até hoje? A resposta passa pela aquela clássica passagem de Keynes: “A dificuldade não está muito em desenvolver novas ideias, mas sim em escapar de ideias antigas”. Em outras palavras, as pessoas têm relutância em abandonar o conhecido pelo novo, mesmo quando o conhecido é claramente ruim.
No caso da meta de resultado primário, a persistência da “ideia ruim” se deve a uma combinação de condições históricas e medo, de um governo de esquerda, em mudar as regras herdadas de um governo de direita.
Todos os pontos mencionados nas seções anteriores já eram conhecidos desde a adoção da LRF, em 2000, mas naquela época o governo Fernando Henrique optou por (ou foi forçado a) adotar meta de resultado primário para atender à exigência do FMI, que emprestou dólares para o Brasil lidar com as crises cambiais de 1998-99 e 2001-02.
A subordinação de nossa política economia às regras do FMI prosseguiu até o final de 2005, quando o governo Lula decidiu pagar a dívida que ainda restava junto ao FMI e adquirir mais autonomia de política econômica. A autonomia se refletiu na inflexão da política econômica, em prol de um papel mais ativo do Estado na economia em 2006-08, com aumento das transferências de renda e do investimento público, mas sem alterar a regra de resultado primário.
Até houve algum debate sobre mudança de regra fiscal em 2005-06, substituindo metas de resultado primário em prol de metas de longo prazo focadas no gasto, mas duas coisas impediram a mudança.
De um lado, naquela época os principais defensores da mudança da política fiscal queriam mais arrocho em vez de expansão fiscal. Como já havia ocorrido arrocho por três anos seguidos no governo Lula, de 2003 a 2005, a manutenção da meta de resultado primário foi uma defesa contra mais contração fiscal.
De outro lado, a bonança internacional de 2003-08 aumentou substancialmente a arrecadação do governo, permitindo que o governo Lula cumprisse suas metas de resultado primário em paralelo ao aumento de gasto. Optou-se por não consertar o telhado em dia de sol. As consequências vieram depois, quando o “tempo” virou.
A partir de 2012, com o fim da bonança externa, o Brasil entrou em mais uma “década perdida”. O crescimento desacelerou, a receita do governo veio abaixo do esperado e, para manter as metas fiscais de antes da crise, as autoridades da época resolveram adotar operações temporárias de antecipação de receita e adiamento de despesa.
A aposta de 2012 era que a crise seria passageira, como foi a crise de 2008-09, de modo que as operações fiscais não recorrentes (necessárias para compatibilizar as demandas da população com as metas fiscais exigidas pelo mercado financeiro) seriam temporárias.
Faço uma pausa para esclarecer que fiz parte da equipe econômica daquela época, como Secretário Executivo do Ministério da Fazenda. Na discussão “interna” do governo, que sempre acabava nos jornais, defendi a flexibilização da política fiscal, com mudança da regra de resultado primário para uma “banda de resultado primário”, com possibilidade de não contingenciamento imediato de recursos. Minha ideia era adotar o modelo que já funcionava bem na política monetária, onde a meta de inflação tem intervalo de flutuação e o Banco Central pode dosar a taxa de juro de acordo com a situação da economia. Porém, para que isso funcionasse na política fiscal, seria necessário que a flexibilização de curto prazo fosse acompanhada por reformas fiscais de longo prazo, na previdência, na tributação e na folha de pagamento, temas que o governo não estava disposto a discutir em 2012.
Até houve mudanças estruturais importantes naquele ano, como a criação do Fundo de Previdência dos servidores federais (Funpresp), o fim da “guerra dos portos” (ICMS) e a eliminação do “piso de juro” da poupança (sem o que a SELIC dificilmente teria caído abaixo de 7% ao ano), mas o esforço reformista não foi muito mais longe. Fim da pausa.
Voltando, a crise que começou em 2012 não foi passageira. A desaceleração da economia durou até 2016 e o governo recorreu cada vez mais a operações fiscais não recorrentes (todas legais) e mudanças de meta fiscal para lidar com as pressões orçamentárias.
O debate sobre mudança de regra fiscal só ressurgiu em 2016, quando o governo Dilma propôs a adoção de uma meta de gasto, mas o projeto acabou não analisado devido ao “golpeachment” daquele ano (deixo para o leitor escolher se foi golpe ou impeachment).
Na sequência, após a saída de Dilma, o governo Temer optou por adotar uma meta de gasto, mas sem abandonar a meta de resultado primário. Como sempre acontece quando há duas regras fiscais, desde então prevalece a meta que for mais estrita.
Em 2017-19 a meta de resultado foi mais estrita. A partir de 2020 a meta de gasto se tornou mais estrita, mas a pandemia fez o governo Bolsonaro alterar o limite de despesa (correto) de modo improvisado e incerto (errado).
Agora, dado que há grande incerteza sobre a política fiscal, provavelmente voltaremos a discutir novas regras fiscais na campanha eleitoral, com provável mudança em 2023, seja qual for o resultado da eleição.
Há várias alternativas em discussão e, diante dos problemas criados pela meta de resultado primário nos últimos 21 anos, espero que finalmente o Brasil evolua para uma regra fiscal mais racional, focada no gasto em vez de no resultado.
Por que uma meta de gasto é melhor do que uma meta de resultado? Usando os quatro problemas que apresentei anteriormente como guia:
- A meta de gasto torna a política fiscal anticíclica. Quando a economia vai bem, a receita vem acima do esperado, o gasto se mantém na meta inicial e o resultado fiscal sobe. Quando a economia vai mal o oposto acontece e, portanto, o déficit público se torna anticíclico: sobe na recessão e cai na expansão.
- Uma meta de gasto acaba com contingenciamento e orçamento sanfona. O que o Congresso aprovar é o que o governo tem para gastar ao longo do ano. Não é necessário cortar recursos em janeiro para liberar em dezembro. Como o resultado se torna a variável de ajuste, o orçamento pode ser impositivo e previsível, no sentido de que vale o decidido pelo Congresso, sem contingenciamento pela equipe econômica.
- Com meta de gasto não há contingenciamento e, portanto, não há necessidade de que os diversos órgãos de governo peçam recursos além do necessário para compensar a “tesourada” da equipe econômica. Com meta de gasto o debate fica mais claro e objetivo, supostamente sem orçamento superdimensionado e com menos desconfiança mútua entre os membros do governo.
- Por fim, uma meta de gasto foca o debate... no gasto! Pode e deve haver debate sobre criação de receita, mas quando o limite é de gasto, a principal discussão do orçamento é avaliar o custo e benefício de cada tipo de despesa pública, como é padrão em países desenvolvidos.
Pelos quatro motivos acima, assim como em 2016, sou favorável a uma regra fiscal focada no gasto em vez de uma regra fiscal focada no resultado, mas sei que isso pode soar ortodoxo diante do teto Temer de gasto, vigente no Brasil desde o “golpeachment” de 2016.
Dado que esse texto já está longo, por enquanto minha resposta às críticas de que meta de gasto é coisa de ortodoxo ou neoliberal é curta e simples: o teto Temer é uma das diversas regras de gasto possíveis, não a única regra de gasto possível.
É perfeitamente possível ter meta de gasto com crescimento real não explosivo da despesa pública. Não é porque Meireles cometeu o erro brutal de congelar a maior parte do gasto primário no valor real de 2016 por 10 anos que devemos abandonar a ideia de meta de gasto, mas deixo os detalhes do que seria esse tipo de regra em um governo popular e progressista para outra ocasião.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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