Excesso de variação do deflator do PIB impulsionou arrecadação do governo geral em R$ 174 bilhões em 2021
Em 2021, variação do deflator do PIB deve superar alta do IPCA em cerca de 3 p.p., mais que o dobro da média histórica dessa diferença. Isso, junto com o IPCA 6 p.p. acima da meta, ajudou a impulsionar a arrecadação recorrente do Governo Geral em R$ 174 bilhões (2% do PIB).
Como aponta a figura abaixo, o resultado primário cheio do Governo Geral (União, BCB, INSS e governos regionais, sem levar em conta as empresas estatais não dependentes, federais e regionais) se aproximou de zero nos 12 meses terminados em outubro de 2021. Quando se descontam as não recorrências nas receitas e despesas do governo federal (cerca de 0,6% do PIB em nov/20-out/21, segundo estimativas da IFI/Senado), na prática já teríamos um resultado primário recorrente do Governo Geral próximo de +0,3% do PIB (-0,8% do PIB para o Governo Central e +1,1% para os Governos Regionais).
Trata-se, sem dúvida, de uma evolução que chama bastante a atenção, na medida em que: i) o Brasil vinha registrando déficits primários recorrentes relevantes desde 2014; ii) embora a recuperação da recessão associada à Covid-19 tenha sido relativamente rápida, o PIB brasileiro agregado “andou de lado” ao longo de boa parte de 2021 e ainda está bem abaixo da tendência pré-pandemia (ver figura abaixo); e iii) a maioria das estimativas aponta que a economia brasileira ainda opera com excesso de ociosidade relevante (isto é, um hiato do produto bastante negativo, entre -2% e -5%), não muito diferente daquele observado no final de 2019.
O governo federal tem apontado que esse desempenho favorável das contas públicas refletiria um aumento “estrutural” expressivo da arrecadação bruta federal – ainda que nenhuma medida envolvendo aumento de carga tributária ou redução de renúncias fiscais tenha sido adotada nos últimos 5 anos. Muito pelo contrário: a decisão recente (2020) do STF de retirar o ICMS da base de cálculo do PIS/Cofins tem o efeito de rebaixar a arrecadação recorrente federal.
O argumento do aumento “estrutural” da arrecadação tem sido utilizado pelo governo para sinalizar a existência de “espaço fiscal” para acomodar medidas de redução permanente da carga recorrente (tais como aquelas implicadas pela versão aprovada pela Câmara, no começo de setembro, do PL 2.337/2021, que altera diversos aspectos da tributação direta brasileira[1]) e mesmo para um aumento temporário de algumas despesas (aproximadamente metade dos R$ 400 do Auxílio Brasil, programa que substitui o Bolsa Família a partir do final deste ano, não tem fonte de financiamento prevista a partir de 2023).
Não obstante, diversos analistas têm questionado esse diagnóstico, chamando a atenção para alguns fatores que podem estar impulsionando de forma fortuita a arrecadação recorrente, tais como: i) a forte aceleração da inflação (em um contexto no qual boa parte dos tributos brasileiros são do tipo ad valorem, com alíquotas percentuais aplicadas a bases de incidências nominais); e ii) a mudança temporária, ensejada pelas restrições adotadas no contexto da pandemia, da composição do PIB brasileiro, que tende a favorecer a arrecadação agregada. Isso porque a tributação total sobre bens industriais, energia elétrica, telecomunicações e serviços financeiros no Brasil é significativamente superior àquela incidente sobre produtos agropecuários não manufaturados e boa parte dos serviços (ver figura abaixo). Vale lembrar, neste último caso, que não se trata apenas de uma questão de mudança de mix de volumes produzidos/consumidos; os preços relativos dos tradables também subiram bastante desde o começo de 2020 (ver figura seguinte), bem como da energia elétrica (item que acumulará uma alta de cerca de 30% em 2020-21, contra 15% do IPCA total – refletindo a aguda escassez hídrica). Como os índices de inflação também captam mudanças de preços relativos, na prática há alguma sobreposição entre este item ii) e o i).
Nesse contexto, o objetivo deste post é o de explorar com um pouco mais de detalhe o impacto que a inflação atipicamente elevada vem tendo sobre os resultados fiscais.
Em primeiro lugar, é importante lembrar que, enquanto as receitas tributárias recorrentes tendem a estar mais associadas à dinâmica do PIB nominal (e, portanto, ao deflator do PIB), as despesas primárias governamentais têm como principal referência os “irmãos” IPCA/INPC – e ainda mais a partir de 2017, quando passou a valer o teto de gastos para o governo federal (reajustado anualmente pelo IPCA).
Com efeito, quanto maior a diferença entre a variação do deflator do PIB e a variação do IPCA, melhor tende a ser o resultado primário recorrente em termos absolutos, ceteris paribus. A figura abaixo compara a diferença, em pontos percentuais, entre a variação do deflator do PIB a preços de mercado e a variação do IPCA médio trimestral (diferença que foi calculada a partir das taxas de variação interanuais). Nas barras estão as diferenças trimestrais, ao passo que a linha pontilhada aponta a média móvel de 4 trimestres.
Como já explorei em inúmeros outros posts nesse blog (aqui o mais recente), a diferença expressiva e sistemática entre as variações do deflator do PIB e do IPCA (+1,3 p.p. na média e na mediana 1997-2020) é uma verdadeira “jabuticaba” brasileira, já que em boa parte dos países essa diferença tende a zero em médias mais longas (mesmo naqueles que são exportadores líquidos de commodities, como é o caso do Brasil). Em breve trarei mais novidades neste blog sobre o que estaria por detrás puzzle do deflator brasileiro; de qualquer modo, o que interessa para a análise que está sendo realizada neste post é o fato estilizado apontado na figura acima.
Nos 4 trimestres encerrados em setembro, a variação do deflator do PIB brasileiro superou a variação do IPCA em 3,2 pontos percentuais – mais do que o dobro da média/mediana histórica dessa diferença. Portanto, essa análise exploratória relativamente simples já ajuda a entender ao menos parte da forte melhoria da arrecadação e do resultado primário recorrente neste ano de 2021, bem como da evolução mais favorável da razão dívida/PIB (neste último caso, ajudada tanto pelo primário maior como pelo efeito denominador – é exatamente por conta disso que o “r - g” relevante para avaliar a dinâmica da dívida é aquele que leva em conta o custo de rolagem da dívida e a variação do PIB, ambos em termos nominais ou, alternativamente, o custo real da dívida levando em conta a variação do deflator do PIB e o crescimento em volume do produto).
Não obstante, essa análise precisa ser refinada, já que parte da divergência entre a variação do deflator do PIB e o IPCA na média/mediana dos últimos 25 anos é explicada por fatores que não necessariamente se repetirão (em termos de intensidade e duração), tais como a forte elevação de quase 46% dos termos de troca brasileiros ao longo do superciclo de commodities (1999 a 2011, segundo a datação de Reinhardt, Reinhardt & Trebesch 2016) e o fato de que o deflator do Consumo do Governo subiu 2,2 p.p. acima do IPCA entre 1997 e 2014 (diferencial que recuou para menos da metade disso na média 2015-2021).
Nesse contexto, resolvi calcular aquilo que denomino como “excesso de variação do deflator do PIB” (uma espécie de hiato da inflação do PIB), lançando mão do fato de que, desde meados de 1999, o Brasil opera sob um regime de metas de inflação, as quais são definidas numericamente pelo CMN em termos de variações anuais do IPCA cheio.
A figura abaixo apresenta a evolução desse indicador. É importante notar que a meta de inflação definida CMN foi acrescida em 0,6 p.p. ao ano para o cálculo do excesso de variação do deflator, na medida em que o deflator do Consumo das Famílias no PIB subiu 0,9 p.p. a mais do que o IPCA na média 1999-2020 e ele representou aproximadamente 63% do PIB brasileiro sob a ótica da demanda nesse período[2]. A figura já apresenta projeções para o excesso de variação do deflator até o final de 2023, levando em conta as expectativas de consenso mais recentes para a variação do IPCA e admitindo termos de troca relativamente estáveis nos próximos anos.
Com base no indicador apresentado acima, eu construí uma medida de hiato do PIB nominal, que combina minhas estimativas para o hiato do PIB em volume (ainda não atualizadas à luz das revisões das séries históricas da PNAD-C desde 2012) com o excesso de variação do deflator do PIB (“hiato da inflação”). Vale notar que já há algum tempo eu levo em conta em minhas estimativas do resultado fiscal estrutural brasileiro esse hiato do PIB nominal (aqui a publicação mais recente).
A figura revela que entre 2000 e 2003 o hiato do PIB em volume foi relativamente neutro, ao passo que o hiato do PIB nominal foi bastante positivo, por conta da inflação muito acima da meta durante boa parte desse período. Já entre 2004 e 2013 o hiato do PIB nominal superou o já bastante positivo hiato do PIB em volume – tanto pela inflação acima da meta na maior parte desse período como pela forte elevação dos termos de troca entre 2003 e 2011.
Entre 2016 e 2018 o hiato do PIB nominal foi ainda mais negativo do que o hiato do PIB em volume, constituindo o “pior dos mundos”: a economia muito aquém do pleno-emprego e a inflação abaixo da meta tiveram o impacto de subtrair quase 2 p.p. do PIB, ao ano, do resultado primário recorrente do Governo Geral nesse período, segundo minhas estimativas (aqui). Em 2019 e 2020 esses hiatos foram relativamente próximos entre si (ambos em terreno bastante negativo). Já em 2021, temos um fenômeno inédito: um hiato do PIB nominal razoavelmente positivo em conjunto com um hiato do PIB em volume bastante negativo. Naturalmente, é o excesso de variação do deflator, bastante positivo, que explica essa divergência – impulsionado tanto pela inflação acima da meta como pelos ganhos de termos de troca.
Desse modo, como o que importa para a arrecadação recorrente é principalmente o PIB nominal, na prática temos, em 2021, algo que não era observado desde 2013/14: um hiato positivo nesse indicador. Embora favorável do ponto de vista das contas públicas, trata-se de uma combinação bastante ruim do ponto de vista do bem-estar social, uma vez que temos hoje uma inflação muito acima da meta e uma taxa de desemprego muito acima da taxa natural, gerando um “índice de desconforto/infelicidade/mal-estar” bastante elevado em termos históricos (ver figura abaixo, preparada por meus colegas de FGV-IBRE, Aloísio Campelo e Anna Gouveia).
Com efeito, o superávit primário recorrente do Governo Geral de cerca de 0,3% do PIB nos 12 meses terminados em outubro está associado a um hiato do PIB nominal positivo em cerca de 0,6 p.p. (média 4T20-3T21). Caso esse hiato estivesse zerado, o resultado primário recorrente tenderia a zero – ou seja, o resultado primário estrutural estaria em torno de zero neste ano de 2021, mantendo o nível que vem sendo observado desde 2017 (segundo minhas estimativas).
Levando em conta apenas o excesso de variação do deflator do PIB nos 12 meses terminados em setembro de 2021 – que foi de +5,4 p.p. -, eu estimo um impacto de elevação da arrecadação recorrente do Governo Geral de aproximadamente R$ 139 bilhões, ou 1,7% do PIB estimado para o período. Quando considero as projeções de consenso para o IPCA e para a variação em volume do PIB no último trimestre de 2021, chego a um excesso de variação do deflator de +6,7 p.p. na média de 2021 (vindo de +0,4 p.p. na média de 2020), impulsionando a arrecadação recorrente em R$ 174 bilhões no ano, ou 2% do PIB.
Na medida em que a arrecadação bruta do governo federal corresponde a aproximadamente 2/3 do total arrecadado com tributos no Brasil, teríamos algo como R$ 115 bilhões (1,3% do PIB) do aumento da arrecadação recorrente federal sendo explicada apenas pelo excesso de variação do deflator neste ano (ignorando, portanto, a mudança de composição em volume do PIB já mencionada acima, que também favoreceu a arrecadação). Os demais R$ 59 bilhões (0,7% do PIB) estão associados às receitas próprias dos governos regionais (ajudando a compreender o o superávit primário expressivo dessas esferas neste ano, de cerca de 1% do PIB – o maior desde 2007/2008 -, vindo de 0,5% do PIB em 2020 e 0,2% do PIB em 2019).
Considerando as projeções de consenso mais recentes para o IPCA em 2022 e 2023 e admitindo termos de troca relativamente estáveis nesse horizonte, estimo que o excesso de variação do deflator do PIB será de +3,5 p.p. na média de 2022, convergindo para perto de zero ao longo de 2023. Desse modo, mesmo recuando bastante em relação ao valor de 2021, ainda observaremos em 2022 um hiato do PIB nominal correndo bem acima do hiato do PIB em volume – algo que beneficiará o resultado primário, ceteris paribus. Por outro lado, a perspectiva de crescimento do PIB de menos de 1% em 2022, abaixo do ritmo potencial, deverá fazer com que o hiato do PIB em volume fique ainda mais negativo, de modo que a resultante (excesso de variação do deflator X hiato do PIB em volume) parece apontar para uma um hiato do PIB nominal voltando a terreno negativo em 2022, atuando desfavoravelmente em termos do resultado primário recorrente.
De 2023 em diante, a tendência é que o excesso de variação do deflator caminhe para perto de zero, com a inflação oscilando em torno da meta e termos de troca relativamente estáveis. Caso o excesso de ociosidade da economia (hiato do PIB em volume) zerasse até o final de 2023, teríamos um efeito contrabalançando o outro, mantendo o hiato do PIB nominal em torno de zero e, com isso, assegurando um resultado primário recorrente do Governo Geral em torno de zero, até mesmo ligeiramente positivo (caso as despesas primárias do governo federal em 2023 subam no mesmo montante do IPCA projetado para 2022, em torno de 5%). Contudo, a maioria dos analistas estima que a economia brasileira somente irá atingir o pleno-emprego em 2024 ou 2025, como revela a figura abaixo.
A principal razão por detrás disso está na estratégia de desinflação adotada pela política monetária doméstica, que tem menosprezado o objetivo secundário introduzido em fevereiro deste ano (na Lei que conferiu maior autonomia operacional ao BCB). Já explorei isso antes neste blog (aqui), mas retornarei em um outro post.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
[1] Vale notar que diversas estimativas de impactos fiscais “estáticos” (redistributivos) dessa reforma foram publicados (Receita Federal, IFI/Senado e Comsefaz), mas nenhuma estimativa dos impactos econômicos dinâmicos sobre os investimentos das empresas, empregos e PIB foram divulgadas.
[2] Eu chego em valores praticamente iguais de “ajuste” da meta de inflação do CMN quando considero cestas semelhantes para o IPCA e o Consumo das Famílias (ou seja, excluindo o aluguel imputado e os serviços financeiros indiretamente medidos deste último). Essa análise, contudo, somente pode ser realizada para o período 2001-2019, uma vez que depende dos dados mais desagregados das Tabelas de Recursos e Usos, que são publicadas nas Contas Nacionais Anuais (disponibilizadas com uma defasagem de cerca de 2 anos em relação ao ano de referência).
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