Macroeconomia

O papel da falta de sorte na década perdida de 2011 a 2020

9 fev 2022

Fatores exógenos à condução da política econômica, como queda do preço das commodities, mudança de estratégia da Opep para derrubar preço do barril em 2014 e falta de chuvas, também contribuíram para o mau desempenho econômico do Brasil na segunda década do século XXI.

A recessão brasileira de 2014-16, que fez o PIB recuar 3,5% em 2015 e 3,3% em 2016, marcou dramaticamente o fim de um período de cerca de uma década de desempenho econômico mais razoável, que chegou a alimentar a ilusão de que o país poderia manter um ritmo satisfatório de crescimento do PIB, em torno de 4% a.a. O momento talvez mais emblemático dessa fase de otimismo foi a célebre capa da revista britânica The Economist sobre o Brasil, no final de 2009, em que o Cristo Redentor foi transformado num foguete decolando.

A crise que se fez explícita a partir de 2015 e que foi aguda até o final de 2016, entretanto, ao contrário de outras recessões do passado de mesma intensidade e duração, não foi seguida por um período, ainda que breve, de rápido crescimento, que ocupasse o excesso de ociosidade gerado durante a fase de contração.

Na verdade, o que veio na sequência foram anos de desempenho econômico medíocre, com alta de cerca de 1,4% a.a. do PIB em 2017-2019, até novo mergulho de 3,9% em 2020, ano inicial da pandemia. Para 2021, estima-se que o crescimento tenha sido de cerca de 4,5%, evolução que praticamente apenas repõe o que foi perdido em 2020. E a previsão mais recente da turma do Boletim Macro do FGV IBRE para 2022 é de uma alta de somente 0,6%.

Esse quadro de estagnação, com um PIB per capita semelhante àquele de 2011, põe o Brasil próximo à lanterna do desempenho econômico, mesmo no quadro pouco animador da América Latina. E essa frustração não ocorre somente quando a referência são os cenários traçados no começo da década passada – talvez excessivamente otimistas, ao apontarem expansão em torno de 4% a 4,5% a.a. ad aeternum. Passado um ano do “fundo do poço” da recessão de 2014-16, ou seja, no final de 2017, a expectativa de consenso apontava que o PIB brasileiro cresceria 2,8% ao ano em 2018 e 2019, mas a variação efetiva foi de apenas 1,5% a.a.

Formou-se uma narrativa dominante, que persiste mesmo com um razoável distanciamento histórico, pela qual toda a sofrível trajetória da economia brasileira a partir de 2015 tem como causa principal os erros consubstanciados na chamada “Nova Matriz Econômica (NME)”. Oficialmente, a NME durou de 2012 a 2014, mas não é incomum que essa narrativa vá buscar no fim da chamada “era Malocci” (1995-2006) as sementes que gerariam a década perdida brasileira recente.

Contudo, será que boa parte do colapso econômico observado na última década se deveu ao tal conjunto de políticas domésticas “ruins”? Mais: será que a recuperação atipicamente lenta do PIB brasileiro em 2017-19, mesmo com enorme excesso de ociosidade prévio, ainda refletiria o fardo associado a uma eventual “herança maldita” da NME?

No debate econômico, é importante distinguir o que é “bad luck” (má sorte) do que é “bad policy” (má política econômica), sobretudo em uma economia que é exportadora líquida de commodities, apresenta baixa taxa de poupança doméstica e se integrou crescentemente à economia global em termos comerciais e financeiros nas últimas décadas. Easterly, Pritchett, Kremer & Summers já apontavam, em artigo acadêmico de 1993, que parte não desprezível das diferenças de desempenho econômico dos países em período mais curtos (isto é, ao longo de uma década) não se deviam apenas às “good policies”, mas também à “good luck” (sobretudo choques de termos de troca).

Essa é uma questão que tem motivado um esforço de pesquisa do economista Bráulio Borges, do FGV IBRE. As considerações a seguir decorrem de trabalhos seus.

Um primeiro ponto a ser levado em consideração é o fato de que diversos estudos recentes apontam que parcela relevante da variabilidade do PIB brasileiro é explicada por fatores globais, exógenos à economia nacional. Por exemplo:  Di Pace, Juvenal e Petrella, em trabalho publicado em 2020, indicam que aproximadamente 30% dos erros de previsão do PIB brasileiro são explicados por choques nos preços internacionais de commodities, percentual que alcança 50% quando também se incluem os choques no PIB e comércio globais. Desse modo, uma análise mais cuidadosa sobre as causas da década perdida brasileira recente não pode se furtar à análise do panorama global.

De fato, ainda que o mundo tenha escapado de uma nova Grande Depressão associada à crise financeira global de 2008/09, a década iniciada em 2011 foi frustrante economicamente para boa parte dos países, sobretudo para economias muito dependentes da China e exportadoras líquidas de commodities (que tiveram seu superciclo entre 1999 e 2011). Em 2019, o PIB em volume da China foi 10% menor, no nível, do que aquele projetado pelo FMI em meados de 2012 para os anos seguintes. Esse percentual de frustração foi de quase 14% para uma média simples de emergentes exportadores líquidos de commodities (Chile, Colômbia, Peru, México, Rússia e África do Sul), tendo alcançado 24% no caso brasileiro.

O “fundo do poço” dos preços internacionais das commodities em termos agregados foi atingido somente no início de 2016, quando estavam aproximadamente 60% mais baixos do que o pico atingido em 2011. A partir de 2017 houve alguma recuperação, especialmente no fim de 2020 e ao longo de 2021. Mas os níveis reais desses preços ainda estão muito aquém daqueles registrados em 2011, ao menos para boa parte das commodities.

Outro evento internacional importante para o Brasil foi a deliberada mudança da função de reação da Organização dos Países Produtores de Petróleo (OPEP) no final de 2014, que representou forte choque negativo sobre a indústria petrolífera global. A organização atuou para derrubar o preço do petróleo, de modo a dificultar ou inviabilizar outros produtores, como o setor de petróleo e shale gas nos Estados Unidos. O barril caiu de cerca de US$ 100 para US$ 25 entre o final de 2014 e o início de 2016 – algo totalmente inesperado, segundo as projeções de consenso de meados de 2014. Depois daquele evento, os novos investimentos em extração e processamento da indústria petrolífera global recuaram em cerca de 50%, nunca mais voltando para os níveis de 2013-14 (na verdade, caíram ainda mais, quase 20%, em 2020-21, com a intensificação da agenda de combate às mudanças climáticas).

É instrutivo recordar que, com a descoberta do “bilhete premiado” do pré-sal no Brasil em 2006/07, criou-se a expectativa de que o Brasil se tornaria exportador líquido relevante de petróleo e derivados – algo que efetivamente aconteceu a partir de 2016. Em 2015, a Petrobras estava no meio de um ambicioso plano de investimentos no pré-sal, com prazo médio de maturação de cinco a seis anos. Entre 2013 e 2020, a extração de petróleo e gás cresceu mais de 50%, e deve avançar outros 25% até 2025 por conta do programa de investimentos, gerando acréscimo de arrecadação de cerca de 1% do PIB em royalties e participações especiais até o final da década.

A queda do preço do barril de petróleo, portanto, atingiu a Petrobras em meio a um enorme programa de investimentos, o que a tornou superalavancada, talvez mais do que seria prudente. Isso, claro, exacerbou o risco fiscal, já que o governo federal é o principal sócio da empresa. O que se menciona muito menos, entretanto, é que diversas outras empresas petrolíferas também passaram momentos difíceis na mesma época, embora não necessariamente da dimensão dos que abalaram a Petrobras (ainda envolvida com problemas domésticos associados ao chamado “petrolão”).

Outro componente de “bad luck” que ajuda a explicar a “década perdida” a partir de 2011 é local, mas também exógeno. Trata-se do fato de que, entre 2012 e 2021, o volume de chuvas no Brasil ficou 17% abaixo da média dos últimos 40 anos. Há vários impactos negativos decorrentes disso, já que a economia brasileira é altamente intensiva em água. Primeiro, a insuficiência de chuvas afeta o agronegócio brasileiro, cujo peso direto (sem efeitos indiretos ou induzidos) no PIB é de pouco mais de 20% (segundo estimativas do Cepea/Esalq).

Adicionalmente, a matriz elétrica brasileira é altamente dependente da hidreletricidade, que foi responsável por 70% da capacidade de oferta na média de 2012 a 2021, tendo recuado para 60% hoje. A média mundial é de cerca de 15%, e a de países de renda média-alta, como o Brasil, de 20%. Como resultado da estiagem crônica e dessa elevada dependência das hidrelétricas, o Brasil vivenciou um choque de oferta desfavorável, relevante e persistente: as tarifas de energia elétrica residencial subiram ao ritmo de 11% ao ano no período 2012-21, comparado a um IPCA médio anual de 6%. O fantasma de um novo racionamento compulsório nos assombrou em vários anos desse período, mesmo com um PIB crescendo pouco. O PIB agropecuário, que cresceu 4% a.a. em 1996-2011, variou 2,5% a.a. em 2012-21.

Em um exercício econométrico publicado no Blog do IBRE em novembro do ano passado, Borges estimou um contrafactual que apontou que o PIB brasileiro teria sido 22% maior em 2019, em termos de nível, se não fossem os principais fatores de “bad luck” acima relacionados, como choques globais (preços de commodities, ciclo econômico mundial e variáveis financeiras internacionais) e a carência de chuvas local. Dessa forma, a taxa de variação anual média do PIB entre 2012 e 2019 teria sido 2,5 pontos porcentuais (pp) superior, subindo do 0,4% a.a. médio efetivamente registrado para mais próximo de 2,9% a.a.

O economista observa que, no final de 2011, as expectativas de consenso apontavam para um crescimento do Brasil na década seguinte na faixa de 4-4,5% ao ano, o que significa uma frustração anual de cerca de 4pp ante o ritmo de 0,4% observado. Dessa forma, pouco mais da metade dessa perda de crescimento, ou os 2,5pp já mencionados, pode ser explicada por “bad luck”. Dessa frustração, segundo as contas de Borges, 0,9pp está associado aos diversos tipos de choque global, e 1,6pp à insuficiência persistente de chuvas.

Fica claro, portanto, que as narrativas que atribuem toda ou a maior parte da responsabilidade do mau desempenho da economia brasileira na última década à “nova matriz” ou a outros fatores de “bad policy” são exageradas, e não contribuem para um bom diagnóstico do que ocorreu e para um plano de voo adequado para retomar o crescimento sustentável.

Segundo Borges, a ênfase no debate público acaba recaindo sobre as “bad policies” por uma série de razões: políticas, ideológicas ou até mesmo pedagógicas. Nesse último caso, no sentido de evitar, por meio do constrangimento, que alguns erros sejam repetidos.

Porém, para o pesquisador, também há ou deveria haver aprendizado com a “bad luck”, isto é, sobre como reduzir algumas vulnerabilidades, como a excessiva dependência das chuvas, ou o que chama de “defeitos congênitos da política fiscal brasileira, que não foram resolvidos nem pela LRF, nem pelo teto de gastos”, referência ao fato de esta ser pró-cíclica na maior parte do tempo (com algumas raras exceções, como em 2000, 2011 e 2020). Assim, ele vê como fundamental que a pauta de política econômica inclua de forma decisiva iniciativas para tornar a economia brasileira mais resiliente a choques exógenos, globais e locais.

Borges, em particular, também tem a sua visão sobre o papel das “bad policies” na década perdida desde 2011, cujo teor principal compartilha com o economista Manoel Pires, seu colega no FGV IBRE. Afinal, a frustração brasileira foi bem maior do que a de seus pares, como já apontado anteriormente neste texto. e aproximadamente metade dela não pode ser explicada por “bad luck”.

Contudo, também neste caso há uma ênfase no debate público nas políticas ruins cometidas até 2014, como se o mix de política econômica adotado de 2016 em diante não merecesse igualmente um escrutínio. De fato, o impulso fiscal positivo de quase 3% do PIB em 2012-14, além de eleitoreiro e populista, foi excessivamente pró-cíclico, contribuindo para levar o país de volta a uma situação de déficit fiscal estrutural que não se observava desde 1996-1998.

Não obstante, a política fiscal e a monetária pós-2016 pecaram por serem demasiadamente restritivas em um ambiente de elevada ociosidade de fatores na economia – talvez por terem apostado que a recuperação da confiança com a mudança de regime fiscal e as reformas atuaria como forte estímulo à demanda no curto prazo. A composição do ajuste fiscal introduzido com o teto de gastos a partir de 2017, que acabou levando o investimento público federal a quase zero, pode ter sido contraproducente em termos da consolidação fiscal, como sugerem os resultados de um paper recente do IADB (Ardanaz, Cavallo, Izquierdo & Puig 2021). A inflação bastante abaixo da meta em boa parte do período 2017-2019 foi comemorada e inclusive induziu uma revisão bastante agressiva das metas para os anos seguintes, ignorando que aquele resultado refletia uma economia muito aquém do pleno emprego, com sinais de perda de capacidade produtiva pela falta de uso dos fatores (“scarring”).

Assim, uma boa lição a ser tirada tanto da “bad luck” quanto da “bad policy” do período da recente década perdida, na visão dos pesquisadores, é que o arcabouço fiscal idealmente deveria viabilizar uma política fiscal que, além de assegurar a sustentabilidade do endividamento, também atuasse de forma anticíclica na maior parte do tempo. Ademais, a calibragem da meta da inflação deveria ser feita de forma menos ad hoc e o objetivo secundário da política monetária, ligado à atividade e ao emprego e introduzido em 2021, deveria ser levado a sério. Por fim, a velocidade de diversificação da matriz elétrica brasileira desempenhará papel crucial para aliviar, ao menos parcialmente, as restrições de oferta que limitaram nosso crescimento na última década. O que também pode viabilizar a participação do Brasil em mercados que hoje são incipientes, mas que devem crescer expressivamente nos próximos anos (créditos de carbono e hidrogênio verde, dentre outros).


Esta é a Carta do Ibre de fevereiro/2022, publicada pela Conjuntura Econômica.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

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