Setor Público

Política na regulação

15 fev 2023

Sobre Emenda Aditiva 54, transferindo normatização de agências reguladoras para Conselhos ligados a ministérios, vale reler a Theory of Economic Regulation, do Nobel Stigler: consumidor tem desvantagem no processo de regulação.

Desafios não faltam ao ambiente de negócios no Brasil. As manifestações de políticos, do presidente e até de membros do Congresso lembram a tradução do título do filme dos irmãos Coen, “Onde os Fracos não têm Vez”. Em meio a declarações de impacto, uma iniciativa recente balançou a cena regulatória. Trata-se da Emenda Aditiva nº 54 apresentada pelo Deputado Danilo Forte (União Brasil, Ceará) à Medida Provisória 1.154/23, que reestrutura a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios.

A Emenda 54 revisita a função de regulamentação de dez agências reguladoras federais, desde aquelas criadas na década de 1990, como ANEEL, ANATEL e ANP, até a mais recente, a Agência Nacional de Mineração (ANM). No formato proposto, a normatização passaria a ser atribuição de Conselhos ligados aos ministérios, compostos por representantes dos respectivos órgãos ministeriais, das Agências, dos setores regulados, da academia e dos consumidores. De acordo com a Justificação, a criação desse mecanismo visaria proporcionar melhor relacionamento e execução das tarefas na Administração Federal, de modo a discriminar funções reguladoras e julgadoras, com maior clareza e controle sobre as atividades dos entes reguladores.

De modo geral, a Emenda 54 não foi bem recebida. Manifestações na mídia e artigos de opinião de associações e representantes de empresas reguladas criticam o que entendem ser um “retrocesso institucional”. Com um processo mais burocratizado, a medida adicionaria custos de transação, aumentando a percepção de risco no ambiente de negócios.

A proposta do Deputado Danilo Forte chega pouco mais de cinco décadas após a publicação do artigo “Theory of Economic Regulation”, de George J. Stigler. Citado como uma das principais razões pelas quais o autor teria recebido o prêmio Nobel de economia, em 1982, o paper é considerado um marco da regulação econômica. Abre caminho para contribuições de Becker e Peltzman, com eles dando origem ao que hoje conhecemos como economia da regulação.

A principal inovação de Stigler foi analisar a regulação – entendida aqui como intervenção no campo econômico – como resultado de um processo político. Ela é ofertada por políticos, governantes e reguladores em resposta à demanda ou pressão de grupos de interesse – empresas e consumidores. Estes entram em desvantagem: são menos articulados. Além do mais, fazer lobby custa tempo e dinheiro. Na competição com produtores informados, organizados e politicamente efetivos, Stigler aponta que “(…) as a rule, regulation is acquired by the industry and is designed and operated primarily for its benefit”.

O cinquentenário da publicação do artigo de Stigler foi objeto de número especial da revista Public Choice, de outubro de 2022. Sua leitura mostra que o tema permanece atual e útil para entender o resultado observado da regulação. Frequentemente esta se traduz em regras complexas, aumento dos custos de transação, barreiras à entrada e menos competição. Para o setor de eletricidade, há evidências de que produz preços mais altos do que se esperaria caso fosse motivada pela busca do interesse público de corrigir falhas de mercado.

Também a regulação por meio da Emenda 54 pode ser compreendida como consequência de um processo político. O Deputado Danilo Forte se insurge contra suposta “autonomia excessiva” do modelo de agências reguladoras independentes. Já em 2022, ele contestava a postura da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) na mudança da metodologia de cálculo dos custos dos sistemas de redes de eletricidade. Em novembro, havia protocolado projeto de decreto legislativo objetivando reverter decisão da Agência, que elevaria custos para produtores localizados nas regiões Norte e Nordeste, relativamente mais distantes da demanda (centro de carga).

Melhorar o processo político que produz a regulação não é tarefa fácil, ainda mais em contexto no qual o Legislativo alarga sua fronteira de atuação com regras que ocupam espaço técnico da regulamentação. Diversos grupos de interesse têm intensificado o recurso ao Legislativo Federal para demandar regras que lhes favoreçam – coerentemente com o processo descrito por Stigler e outros. A cada Medida Provisória, dezenas ou mesmo centenas de emendas são protocoladas em busca de favorecimentos e ganhos. Na falta da aprovação de uma reforma articulada – a última foi em 2003 – resulta um patchwork (colcha de retalhos) de normativos em eletricidade. Para ilustrar, a Lei 10.848/04, que institui o modelo comercial vigente, foi alterada por quatorze outras desde sua publicação.

A qualidade do processo regulatório é medida por princípios de boa governança. Dentre eles, a clareza de atribuição de funções recomenda que cada ente deve atuar de acordo com sua competência, em um processo inclusivo, sim, mas embasado e transparente. Um bom começo para fortalecer a fronteira entre Legislativo e Executivo seria o governo apresentar logo a sua proposta de estratégia e diretrizes para o vencimento das concessões de eletricidade e o tratamento regulatório a outorgas com preocupantes problemas de sustentabilidade. As notícias recentes sobre o futuro incerto de concessões de distribuição como as da Light, Enel RJ e Amazonas Energia[RB1]  certamente reclamam ações tempestivas, pelas quais os consumidores de energia elétrica anseiam e agradecem.

Esta coluna foi publicada originalmente em 14/02/2023, terça-feira, pelo Broadcast da Agência Estado.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva da autora, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 


 [RB1]A concessão da Amazonas Energia vencerá apenas em 2049, após a privatização da concessionária em 2018 (o aditivo ao contrato de concessão foi assinado em 2019).

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