Trabalho

Mercado de trabalho do Nordeste teve perda permanente na recessão de 2014-16, mas não na crise da pandemia

5 abr 2023

Pesquisadores do IBRE detectam que recessão de 2014-16 deixou perda permanente no mercado de trabalho do Nordeste, mas não no brasileiro. Já na crise da pandemia, queda e recuperação no Nordeste e no Brasil foram semelhantes.

É fato bem conhecido que o mercado de trabalho do Nordeste apresenta, ao longo de décadas, características sistematicamente piores do que as do Brasil como um todo em termos de emprego, desemprego, participação, informalidade, rendimentos, escolaridade etc. Um achado novo, no entanto, da equipe de pesquisadores do FGV-IBRE voltada ao mercado de trabalho, é que a crise de 2015-16 deixou perdas permanentes nos indicadores nordestinos que não ocorreram no Brasil como um todo. Já a crise econômica da pandemia, que provocou piora inicial do mercado de trabalho muito maior tanto no Nordeste como no Brasil, foi, ao contrário de 2015-16, seguida de recuperação equivalente naquela região e no País como um todo.

As razões para as “cicatrizes” deixadas pela crise de 2015-16 no mercado de trabalho nordestino ainda não foram investigadas pelos pesquisadores do IBRE. Mas há algumas hipóteses de trabalho, levantadas pelos especialistas em trabalho do think-tank e também por nossa equipe do recém-criado Centro de Pesquisa FGV IBRE Nordeste. Essas e outras hipóteses para o fenômeno devem ser objeto de uma agenda de pesquisa do IBRE e, particularmente, do novo FGV IBRE Nordeste.

Os dados das comparações a seguir dos mercados de trabalho nacional e nordestino provêm da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC), do IBGE.

Tomando-se o período 2012-22, a taxa de desemprego do Nordeste sempre foi superior à do Brasil. Essa diferença era de 1,9 ponto porcentual (pp) no primeiro trimestre de 2012 – 9,8% (NE) e 8,0% (Brasil) – e de 3pp no quarto trimestre de 2022 (respectivamente, 10,9% e 7,9%). No mesmo intervalo de tempo, a taxa de participação brasileira variou de 62,3% para 62,1%, e a nordestina de 57,8% para 54,6%, ambas com queda profunda e posterior recuperação no período pandêmico. Já a taxa de informalidade saiu, entre o quarto trimestre de 2015 – a partir do qual pode-se distinguir os trabalhadores por conta própria com CNPJ (formais) dos sem CNPJ (informais) – e o 4ª tri de 2022, de 38,3% para 38,8% no Brasil como um todo, e de 53,1% para 51,4% no Nordeste. 

Em termos da evolução do rendimento médio real do trabalho no período 2012-22, no Brasil houve alta de 5,3% (de R$ 2667 para R$ 2808), e, no Nordeste, de 3,5% (R$ 1821 e R$ 1885). O rendimento médio brasileiro era 46% maior que o nordestino em 2012, margem que subiu para 49% em 2022.

Quando o foco é a escolaridade da força de trabalho, no período de 2012-22, o Nordeste permanece com uma proporção maior de pessoas na população ocupada (PO) sem instrução ou com fundamental incompleto do que o Brasil como um todo. No 1º tri de 2012, esse contingente correspondia a 43,6% dos ocupados nordestinos e a 33,1% dos brasileiros, com diferença de 10,5pp. No 4º tri de 2022, essas parcelas eram de, respectivamente, 27,8% e 20,8%, com a diferença reduzida para 7pp. Já os trabalhadores com superior completo saíram de 9,5% para 17,5% da PO do Nordeste de 2012 a 2022, e de 14,1% para 22,8% no Brasil. A diferença entre a região e o país nesse último quesito era de 4,6pp em 2012 e de 5,3pp em 2022. Esses números, tanto nordestinos como brasileiros, deixam claro o progressivo aumento da escolaridade da PO nacional.

Nas faixas intermediárias de escolaridade, que vão de fundamental completo a superior incompleto, as proporções da PO eram maiores no Brasil do que Nordeste em 2012 (embora com diferença menor do que as faixas extremas de escolaridade), mas se aproximaram bastante em 2022. No caso de trabalhadores com fundamental completo ou médio incompleto, as parcelas da PO nordestina e brasileira praticamente se igualaram em 2022, em torno de 14%.

Fernando Veloso, pesquisador do Ibre e participante do grupo com foco em trabalho, nota que o mercado de trabalho no Nordeste é pior tanto em função da escolaridade média menor da força de trabalho (em relação ao Brasil como um todo) como por características específicas dos postos de trabalhos oferecidos, que derivam da dinâmica econômica regional.

Assim, tanto a informalidade média é maior quanto a renda média é menor para trabalhadores nordestinos na comparação com trabalhadores brasileiros com os mesmos graus de escolaridade. E essas diferenças se mantêm bastante regulares ao longo do período 2012-22.

No grupo sem instrução e com fundamental incompleto da PO nordestina e brasileira no quarto trimestre de 2015, respectivamente 76,6% e 62,1% trabalhavam na informalidade. No 4º tri de 2022, essas proporções passaram a, respectivamente, 76,8% e 63,8%. Já no grupo com superior completo, houve até algum aumento da diferença entre Brasil e Nordeste no período. Em 2015, as proporções dos participantes desse grupo educacional na PO nordestina e brasileira com trabalho informal eram de, respectivamente, 13,8% e 13,5% (quase idênticas), tendo aumentado para 18,2% (Brasil) e 19,6% (Nordeste) em 2022 – uma piora em ambos os casos, portanto.

Quando se passa à renda real média do trabalho, a diferença pró-Brasil como um todo, na comparação com o Nordeste, era de 47% em 2012 e de 58% em 2022 no grupo sem instrução e com fundamental incompleto. Já no grupo com superior completo, o diferencial, no mesmo período, passou de 19% para 26% (nesta faixa educacional, a renda caiu significativamente em 2012-22 tanto no Nordeste como no Brasil).

Tanto no caso da informalidade como no da renda real do trabalho, a vantagem do Brasil como um todo sobre o Nordeste se mantém também nos níveis médios de escolaridade ao longo de todos os períodos analisados (2012-22 para renda, e 2015-22 para informalidade).

Até aqui esta Carta detalhou o fenômeno bastante conhecido das piores condições do mercado de trabalho nordestino, comparadas às do País como um todo. A seguir, apresentaremos os achados mais originais dos nossos pesquisadores, que são a grande diferença comparativa entre o Nordeste e o Brasil no enfrentamento e recuperação da crise econômica de 2015-16, com desvantagem para a região nordestina; e a forte similaridade da região e do País no enfrentamento e recuperação da crise econômica da pandemia.

Em termos da evolução da PO, por exemplo, no Brasil como um todo, saiu-se de 88,01 milhões no primeiro trimestre de 2012 para 99,37 milhões no quarto trimestre de 2022, com alta de 12,9% no período. Nota-se o impacto da recessão de 2014-16: a PO brasileira caiu de um máximo à época de 92,96 milhões no quarto trimestre de 2014 para um mínimo de 88,85 milhões no primeiro trimestre de 2017, num recuo de 4,4%. No quarto trimestre de 2017, no entanto, já se estava de volta ao nível de 92,23 milhões e, com algumas oscilações, chegou-se a 95,51 milhões no quarto trimestre de 2019. Foi aí que sobreveio a pancada da pandemia, com a PO brasileira despencando até 83,44 milhões no terceiro trimestre de 2020. Esse movimento foi seguido pela “recuperação em V” que levou até o patamar já citado de 99,37 milhões ao fim de 2022.

A história da evolução da PO nordestina no mesmo período é diferente, a começar pelos dois pontos extremos. Saiu-se de 21,54 milhões no primeiro trimestre de 2012 para 22,48 milhões no último trimestre de 2022, numa alta de apenas de 4,4%, quase três vezes inferior à expansão da PO nacional no mesmo intervalo de tempo.  O recuo da PO do Nordeste na recessão 2014-16 foi de 9,6% (22,70 milhões no 4º tri de 2014; 20,51 milhões no 1º tri de 2017) – mais que o dobro, portanto, do recuo da PO brasileira no mesmo período. Já a recuperação até o quarto trimestre de 2017 foi pífia (ao contrário do que aconteceu no Brasil como um todo), chegando-se a apenas 21,35 milhões.

No caso do Brasil, entre o vale da PO na recessão 2014-16 e o ponto mais alto do primeiro arranque de recuperação (até o 4º tri de 2017), a diferença negativa foi de apenas 1%, com recuperação quase total. No caso do Nordeste, a diferença negativa na mesma comparação foi de 6%. Às vésperas da pandemia, no quarto trimestre de 2019, a PO nordestina era de 21,74 milhões, ainda 4,2% abaixo do pico do quarto trimestre de 2014. Já no caso do Brasil, a PO às vésperas da pandemia estava 2,7% acima do pico do 4º tri de 2014. Fica claro, portanto, que, ao contrário do que ocorreu com o Brasil como um todo, a recuperação da PO nordestina após a recessão de 2014-16 foi lenta e incompleta.

A queda e posterior reação da PO nordestina à crise da pandemia, no entanto, guarda muito mais paralelismo com os mesmos movimentos no Brasil como um todo. Entre o quarto trimestre de 2019 e o pior momento no terceiro trimestre de 2020, a queda da PO foi de 12,6% no Brasil e de 16,2% no Nordeste. E desse ponto mais baixo até o quarto trimestre de 2022, a PO subiu 23,4% no Nordeste e 19,1% no Brasil. A PO nordestina no final de 2022 estava 3,4% acima do imediato pré-pandemia (4º tri de 2019) e, no caso brasileiro, 4% acima. Em ambos os casos, houve recuperação mais do que total das perdas associadas à Covid-19.

Uma outra forma de verificar como o Nordeste foi pior do que no Brasil no ciclo da recessão de 2014-16 e posterior recuperação, e similar ao Brasil no ciclo da pandemia, é olhar, primeiramente, para a variação média anual da PO nos períodos 2014-17 e 2017-19. No caso nordestino, houve queda anual média de 2,4% no primeiro período, seguida de alta anual média de 1,4% no segundo, caracterizando-se forte perda. Já no Brasil, ocorreu queda anual média de apenas 0,6% no primeiro período, seguida por avanço de 2% no segundo, indicando clara superação  no mercado de trabalho dos efeitos da recessão de 2014-16.      

Quando se passa à fase da pandemia, a PO em 2020 caiu 7,7% e 10,2%, respectivamente, no Nordeste e no Brasil. No Nordeste, ela veio a subir 6% em 2021 e 7,9% em 2022. No Brasil, essas duas variações foram de, respectivamente, 5% e 7,4%.

É importante notar que o aumento da PO de mais 10% no Brasil como um todo no período 2012-22 não é nenhum feito espetacular, levando-se em conta o crescimento da população em idade de trabalhar (PIA) no mesmo período. O que chama a atenção é o pífio crescimento da PO nordestina de apenas 4% no mesmo período, quando seria de esperar um aumento mais compatível com a expansão superior da PIA da região. A queda da taxa de participação nordestina no período, de 3,2pp (57,8% para 54,6%), ajuda a explicar o fenômeno.

Uma vez bem radiografada a forma pior – sempre na comparação com o Brasil como um todo – como o mercado de trabalho do Nordeste foi afetado pela recessão de 2014-16, e a forma melhor como reagiu à crise da pandemia, resta tentar explicar as razões para essa diferença. Os pesquisadores do IBRE e, em particular, do FGV IBRE Nordeste, ainda não investigaram as causas com os instrumentos da pesquisa econômica. Mas alguma hipóteses iniciais, formuladas apenas pela percepção dos pesquisadores sobre a história recente do Nordeste, foram formuladas.

Fernando Holanda Barbosa Filho, pesquisador do Ibre do núcleo de mercado de trabalho, vê a possibilidade de que a forte contração do papel do Estado na crise de 2015-16 tenha sido particularmente prejudicial ao Nordeste. Houve na região uma onda de investimentos, não necessariamente da melhor qualidade, oriundos de financiamentos públicos tanto federais quanto locais (quando não diretamente realizados pelo Estado), que subitamente foi abortada. Por essa hipótese, a dinâmica econômica criada pela indução do Estado naquela época não alterou a estrutura produtiva subjacente, levando a excessos pouco sustentáveis, cujo fim súbito deixou uma cicatriz permanente no mercado de trabalho nordestino.

Já Carlos Alberto Manso, do FGV IBRE Nordeste, nota que o Nordeste sofreu uma seca de sete a oito anos, terminada em 2017, que foi a pior dos últimos 100 anos. Se não houve uma catástrofe humanitária como no passado, devido aos programas sociais e à melhor gestão hídrica, isso não quer dizer que a economia regional – não só o setor agropecuário altamente empregador no Nordeste, mas também a própria indústria local, muito ligada às atividades primárias, como no caso dos laticínios – não tenha sofrido. Manso acrescenta que uma seca dessa magnitude e dessa duração desorganiza o sistema produtivo, o que pode levar a efeitos muito duradouros sobre a dinâmica econômica e o mercado de trabalho.

Flávio Ataliba, do FGV IBRE Nordeste, nota finalmente que, diferentemente da época da recessão de 2015-16, a economia nordestina na crise econômica da pandemia contou com o enorme volume de recursos do Auxílio Emergencial (além do Pronampe para micro e pequenas empresas), que fluiu em maior proporção justamente para uma região mais pobre e com mais informalidade. Na crise de 2015-16, havia apenas o Bolsa-Família como programa voltado de forma mais abrangente à população pobre (fora os programas direcionados aos idosos, como aposentadorias rural e urbana e BPC). As transferências do Bolsa-Família são apenas uma pequena fração do que foi injetado por família com o Auxílio Emergencial que, após 2020, sofreu interrupções, redução de valor e posteriormente novo aumento, já na forma do Auxílio Brasil – mas, de qualquer forma, mantendo-se sempre muito acima do Bolsa Família em termos de volumes de transferências. Na pandemia, por causa do Auxílio Emergencial, a pobreza caiu fortemente no Brasil, o que pode ter beneficiado em especial uma região particularmente pobre como o Nordeste.

Todas essas hipóteses, como já mencionado, são apenas possibilidades, complementares e não excludentes, ainda não pesquisadas para explicar a diferença da reação do mercado de trabalho nordestino à crise de 2015-16 e à crise da pandemia. Essa é uma agenda de trabalho – incluindo, claro, outras hipóteses que surjam – que está na mira do FGV IBRE Nordeste. Talvez a compreensão das causas dessas diferentes reações do mercado de trabalho do Nordeste a distintas crises traga elementos para que políticas públicas possam atacar aquilo que de fato precisa ser mudado no país: a antiga e estável desvantagem dos nordestinos na vida laboral na sua região, relativamente ao resto do Brasil.

Esta é a Carta do IBRE de abril/2023, da Conjuntura Econômica.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

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