Arcabouço “made in Brazil”
Busca de soluções “home based” é comum em muitas áreas, e também em economia. Mas inovações devem ter respaldo na experiência de sucesso e fracasso tanto “at home” como “abroad”. É nesse sentido que avaliamos arcabouço fiscal.
Complexo e pró-cíclico
As linhas gerais do “arcabouço fiscal” foram apresentadas pelo governo recentemente, não obstante o texto oficial ainda não seja conhecido e existir uma série de dúvidas e detalhes relevantes para sua avaliação. A despeito de não conhecermos as premissas utilizadas para a simulação do cenário macrofiscal, que passará a trabalhar sob bandas de primário, o resultado parece demasiado otimista e factível apenas diante de extraordinário desempenho da arrecadação. À luz das intenções fiscais apresentadas, a atual regra de gastos será substituída por mecanismo notadamente mais complexo e pró-cíclico, já que não apenas o gasto top-down mas componentes bottom-up como os de saúde e educação, passarão a vincular-se à taxa de expansão da arrecadação, cuja experiência empírica já nos ensinou que é danosa para o equilíbrio fiscal. A expansão de gastos, vinculados à receita, no período de bonança tornam-se majoritariamente obrigatórios e ampliam a já elevada rigidez orçamentária.
Rigidez vs resistência
De forma semelhante, apesar de a restrição para o crescimento do gasto top-down parecer apertada, dada a limitação para o seu crescimento real no intervalo de 0,6% a 2,5% ao ano, as simulações bottom-up sugerem que seu cumprimento será desafiador. O avanço acima da inflação de rubricas como previdência, saúde e educação, bem como a decisão de retomar a política de valorização do salário-mínimo, agudizam a dinâmica de crescimento de relevantes despesas obrigatórias. De forma conjunta, os gastos com previdência (46%), abono e seguro-desemprego (4%), benefícios assistenciais (4%) e saúde e educação (10%) correspondem a cerca de 65% do teto de gastos e impõem um avanço real de 1,3% ao ano, pelo menos. Ao adicionar as despesas com pessoal (20%), benefícios do bolsa família (8%) e o piso para investimentos públicos (5%), a rigidez e desafio para o cumprimento da regra de gasto tornam-se ainda maiores.
Ban.da
Um fator de que chamou atenção foi a definição de metas de resultado primário em bandas, com intervalo de 0,25% do PIB e centro da meta crescente em 0,5% do PIB até 2026, partindo de déficit de 0,5% este ano. Se o resultado primário for acima (abaixo) do limite superior (inferior) definido, há previsão de bônus para os investimentos públicos e redução de 70% para 50% do crescimento da receita como limitação do gasto, respectivamente. O mecanismo parece se inspirar no sistema de metas de inflação que ancora a gestão de política monetária, com limites máximo, mínimo e centro da meta definidos ex-ante. Todavia, se e como haverá harmonização com a sistemática de reavaliação bimestral, instituída pela LRF, por exemplo, não se sabe.
One size (doesn´t) fits all
Apesar de intelectualmente atraente, a proposta tem limitações e produz ceticismo diante da danosa experiência de bandas de resultado primário praticadas no passado não muito distante. A punição para o seu descumprimento, crescer 50% ante 70% da receita, por sua vez, é demasiado branda, e são desconhecidas as medidas de correção e válvulas de escape. Em suma, há baixo “enforcement”. É ainda útil notar que, de forma imperfeita, a proposta tenta incorporar características do resultado primário ajustado pelo ciclo econômico, cujo consenso e debate no Brasil se mostra pouco maduro. A esse respeito, e longe de esgotar o tema, basta registrar a falta de consenso sobre os ajustes por atipicidades tanto nas receitas quanto nas despesas primárias, bem como para o nível do PIB potencial do país, havendo consenso apenas de que ele é baixo.
Velocidade 5G
A flexibilidade almejada pelas bandas, a julgar pela experiência empírica do país, pode produzir resultado inconveniente e desastroso. Nos últimos 17 anos, desde 2006, a gestão da política fiscal operou sob a forma de cinco bandas fiscais. A primeira, mais contida e que vigorou entre 2006 e 2008, deduziu investimentos públicos selecionados no âmbito do PPI, enquanto a segunda avançou para incluir como deduções os investimentos do PAC, de 2009 a 2012. Entre esses períodos, as deduções da meta de resultado primário autorizadas na LDO saltaram de R$3 bilhões em 2003 para R$41 bilhões em 2012. A terceira geração de abatimentos fiscais seguiu avançando e, além do PAC, incorporou parte das desonerações tributárias concedidas, cuja sistemática vigorou em 2013/14, tendo atingido R$162 bilhões no último ano. Em 2015, a banda larga fiscal foi influenciada por abatimentos de R$67 bilhões a título de frustração de receita com leilões de energia e equalização de passivos (popularmente chamadas de pedaladas fiscais). Em 2021/22, parte da despesa relacionada à resposta ao choque do Covid foi abatida, no montante de R$79/41 bilhões. Em síntese, nos últimos 22 anos, de 2001 a 2022, a banda fiscal passou por 12 carnavais (de 2006 a 2015 e em 2021/22). Somente entre os anos de 2001 e 2005 e 2016 a 2020 é que a meta fiscal definida na LDO e atualizada bimestralmente, como rege a LRF, foi cumprida “by the book”.
De trás para frente
No presente e à luz do que se pode antever com alguma razoabilidade, a banda diagonal exogenamente proposta será cumprida apenas em cenários de desempenho extraordinário da arrecadação. Para tanto, as trajetórias de déficit e dívida apresentadas só parecem factíveis diante de premissas bastante benevolentes em termos de juro real (“r”) e PIB (“g”). A percepção de que a banda fiscal foi definida de forma exógena é corroborada por exercícios de sensibilidade da elasticidade-PIB da receita. Ao que parece, além de premissas de crescimento de 2,5% do PIB ao ano e de um juro real de 4,5%, a elasticidade da receita-PIB assumida é igualmente favorável.
O piso do teto
Assumindo premissas benevolentes para o crescimento real dos sete principais componentes do gasto, mencionados nos parágrafos acima (em rigidez vs resistência), o avanço contratado da despesa gira em torno de 1,5% acima da inflação, no mínimo. Nesse caso, a taxa real de crescimento das receitas, deve ser acima de 2,1% para que a regra de gasto seja cumprida.
La cuenta
Não obstante não seja conhecida a base das receitas que será utilizada como referência para a simulação da regra fiscal, é natural e correto que sejam consideradas única e exclusivamente as receitas administradas e previdenciárias recorrentes, excetuadas, portanto, as receitas não administradas como concessões, dividendos, com exploração de recursos minerais, operações de ativos e Refis. Transferências constitucionais e receitas temporárias, a exemplo da tributação da exportação do setor petrolífero, de igual forma, deveriam ser obviamente desconsideradas.
Rez de chaussée
Dito isso, para que haja avanço real de 2,1% dessas receitas, deve haver crescimento do PIB de 1,7%, 1,86% ou 2% por ano, respectivamente, assumindo elasticidades para a receita-PIB de 1,25, 1,15 e 1,10. Ou seja, para cumprir a regra, o crescimento real do PIB tem que superar o potencial em todo o período ou devem-se aprovar reformas econômicas ou medidas tais que ampliem estruturalmente o potencial de expansão não apenas no futuro, mas dentro do horizonte relevante de vigência da regra fiscal proposta. Alternativamente, aumentos ativos ou passivos, via reversão de renúncias fiscais, devem ser uma constante tal que gerem fluxo de receita recorrente suficiente para financiar o avanço do gasto dentro dos limites da regra.
220 volts
No cenário base, contudo, em que o PIB cresce no nível superior de seu potencial, de 1,5%, o limite máximo para o crescimento do gasto, considerando a elasticidade da receita-PIB mais benevolente de 1,25, seria de 1,3% ao ano, valor abaixo do resultado bottom-up de aproximadamente 1,5% a.a. No cenário conservador, de elasticidade da receita-PIB de 1,1 e que deveria lastrear propostas que almejem solidez e algum grau de confiança ex-ante, a viabilidade para o cumprimento da regra é condicional ao crescimento anual do PIB de 2% a.a. De outra forma, significa dizer que parece haver uma inconsistência da regra fiscal em cenários menos otimistas de crescimento econômico, uma vez que o avanço contratado bottom-up, mesmo no cenário benevolente, entrega uma taxa de crescimento real superior a limitação top-down.
Plus size
É possível simular ainda cenários um pouco menos benevolentes para a despesa bottom-up, cujo resultado seja um avanço real do gasto próximo de 2/2,5%. Para tanto, não é necessário ser demasiadamente pessimista, basta que as principais despesas obrigatórias experimentem maior crescimento vegetativo, notadamente os benefícios previdenciários, assistenciais, com o Bolsa Família, saúde, educação, abono e seguro-desemprego. Nesse sentido, um fator que afeta por via dupla a dinâmica de parte majoritária dessas despesas é a política de valorização do salário mínimo. Quanto mais elevado for seu crescimento real, maior o efeito preço e benefício médio concedido, assim como maior tende a ser o público alvo e potencial número de beneficiários elegíveis desses programas. O resultado, é um avanço real bottom-up ainda mais desafiador para o cumprimento da regra top-down. Na ótica da arrecadação, de forma semelhante, diante da partilha de praticamente metade das receitas com Imposto de Renda e IPI com Estados e municípios, o esforço de reoneração tributária da União deve ser evidentemente maior para produzir o resultado líquido desejado. Em suma, tanto no gasto quanto na receita, a fita métrica deve ser compatível com o apetite e dieta fiscal.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade única e exclusiva do autor, não refletindo a opinião institucional da FGV.
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