Choque de renda de commodities explicou surpresas do PIB, mas vento está virando
Choque favorável de renda de commodities em 2020-22, nos setores agropecuário e extrativo, elevou o PIB brasileiro em cerca de 8% ao longo desse período. Esse fator ajuda a explicar as recentes surpresas positiva do PIB.
A partir de 2020, houve uma inversão no tipo de surpresa apresentada pelo desempenho do PIB brasileiro, comparado às expectativas formuladas no início do respectivo ano. Passou-se de uma fase de surpresas negativas para uma de surpresas positivas. O economista Bráulio Borges, pesquisador associado do FGV-IBRE, vem pesquisando as razões para esses erros de projeção, chegando à conclusão de que fatores conjunturais, como política fiscal e parafiscal, regime de chuvas e choques positivos de renda real do setor de commodities, parecem explicar muito mais essas surpresas favoráveis do que eventuais efeitos gradativos das reformas econômicas implementadas desde 2016.
Nesta Carta, Borges apresenta os resultados de um exercício econométrico contrafactual que aponta que a forte elevação da renda no setor de commodities, a partir de 2020, explica parcela significativa do desempenho favorável do PIB brasileiro nos últimos anos.
Quanto às projeções, 2018 começou com expectativa de crescimento de 2,7%, e o resultado final foi de +1,8%. Em 2019, estimava-se alta do PIB de 2,5% no início do ano, e chegou-se a apenas +1,2%.
Essa tendência começou a mudar em 2020. Em junho de 2020, quando o efeito econômico da pandemia já podia ser aquilatado, a projeção média era de queda do PIB de 6,5%, mas o recuo foi de apenas 3,3%. Em 2021, projetou-se crescimento de 3,4% no início do ano, e se atingiu +5%. Em 2022, o pessimismo levou à uma projeção inicial de alta do PIB de apenas 0,3%, e o crescimento foi de 2,9%. O mesmo enredo parece se repetir este ano: de uma projeção mediana em janeiro de apenas +0,8%, já se evoluiu para +2,2% (em meados de junho).
O pesquisador observa que a restrição a um maior crescimento ao longo de todo esse período não foi a do PIB potencial, que reflete a capacidade de oferta de bens e serviços: segundo diversas estimativas, a economia brasileira operou com excesso de ociosidade relevante de fatores de produção entre meados de 2015 e meados de 2022. Com efeito, é possível dizer que a situação da economia brasileira foi caracterizada por déficit crônico de demanda agregada nos últimos sete anos.
O hiato do produto, a diferença entre o PIB efetivo e o PIB potencial, permaneceu em terreno negativo e relativamente inalterado em 2017-19. Foi somente a partir de 2020 que o hiato começou a se estreitar. Os vários estímulos à demanda introduzidos em reação ao choque pandêmico fizeram com que o excesso de ociosidade fosse consumido e a economia finalmente se aproximasse de um quadro próximo ao chamado pleno emprego no final de 2022.
Borges não está sozinho no esforço para entender por que, a partir de 2020, o PIB teve melhores resultados do que as projeções. Uma hipótese aventada recentemente em artigos na imprensa é de que as reformas econômicas liberais realizadas no período de 2016-2021, nos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro, possam estar começando a render frutos. Alguns dos exemplos mais citados de reformas são a autonomia operacional legal do Banco Central, as reformas da Previdência e trabalhista, melhorias no mercado bancário e de crédito (reforçadas pela emergência das fintechs), novos marcos legais em setores de infraestrutura, o Pix como redutor do custo de transação etc.
Sem negar o mérito de boa parte dessas reformas, Borges vê com ressalvas essa hipótese. Ele nota que algumas das reformas, como a criação da duplicata eletrônica, ainda sequer foram operacionalizadas, e que houve “contrarreformas” no período, como a piora da execução orçamentária e o adiamento de pagamento de precatórios. O economista cita ainda a histerese econômica negativa gerada por uma economia operando abaixo do potencial por seis, sete anos, com possíveis danos persistentes e mesmo permanentes ao estoque de capital humano (via desemprego de longa duração e fuga de cérebros); o impacto da Covid longa no mercado de trabalho; e a perda de aprendizado (também com efeito sobre o capital humano, mas prospectivo) pelo longo período de fechamento de escolas e universidades na pandemia.
O pesquisador menciona uma proxy do PIB potencial brasileiro, a projeção do FMI para a variação do PIB cinco anos à frente (sem contaminação do ciclo, portanto). Essa projeção estava em +2,2% a.a. em 2019 e agora caiu para +2% a.a., indicando que o FMI não identificou aumento do PIB potencial prospectivo à luz do saldo líquido de reformas e contrarreformas dos últimos anos.
Colocando-se claramente no campo de quem enxerga muito mais o papel dos fatores conjunturais do que dos estruturais nas surpresas positivas consecutivas do PIB, Borges aponta inicialmente a magnitude e a composição do impulso da política fiscal de 2020 a 2022, em contraste com a influência na direção contrária do mesmo fator de 2015 a 2017, sobretudo.
A tendência predominante do investimento federal desde 2010 é de queda, mas o dos governos regionais oscilou, caindo de 2% do PIB em 2014 para menos de 1% do PIB até 2017, e voltando a crescer para quase 1,8% em 2022. A elevação do investimento público em 2022, puxada pelos governos subnacionais, pode ajudar a explicar os bons resultados do PIB, já que o multiplicador de impacto sobre a demanda agregada dos investimentos é tipicamente superior a 1 no curto prazo.
Outra parte do grande impulso fiscal de 2020-22 se deu pela via das transferências sociais, com os gastos federais com o Auxílio-Brasil/Bolsa-Família tendo passado de cerca de 0,4% do PIB entre 2004 e 2019 para 1,1% do PIB em 2022 (e para 1,7% do PIB a partir de 2023)
Já no campo parafiscal, houve os saques extemporâneos do FGTS de aproximadamente R$ 20 bilhões no segundo trimestre de 2022 e o programa de empréstimo consignado a partir do Auxílio Brasil, que injetou R$ 9,5 bilhões na economia em outubro do ano passado. Outro fator recente de estímulo à demanda foi o excesso de poupança familiar constituído nas fases iniciais da pandemia, turbinado pelas transferências e forçado pelas quarentenas, que foi quase todo consumido até meados de 2022. Por um cálculo simples da consultoria LCA, em que Borges também trabalha, a poupança em excesso atingiu quase R$ 500 bilhões no começo de 2021, sendo consumida em boa medida até meados de 2022.
Borges ainda aponta que, depois de ter chegado muito perto da necessidade de adoção de racionamentos compulsórios de eletricidade em 2014, 2017 e em 2021, por conta da estiagem crônica que acometeu o Brasil a partir de 2012 (e que explica parte de nossa década perdida recente, segundo trabalho pioneiro do economista disponível no Blog do IBRE), a combinação de chuvas perto da média na virada de 2021 para 2022 e de redução da dependência das hidrelétricas na matriz brasileira gerou um alívio importante nessa restrição de oferta, particularmente a partir de 2022. Neste caso, há uma combinação de melhora conjuntural das chuvas com alteração estrutural favorável de matriz elétrica nacional.
É apenas após elencar todos esses fatores que Borges chega na variável que considera decisiva para explicar a surpresa positiva de crescimento do Brasil nos últimos anos: os grandes choques de aumento de renda associados ao desempenho do setor de commodities, incluindo as alimentares, minerais e o setor de petróleo e gás.
O economista aponta inicialmente que há muito tempo se nota um fato estilizado bastante forte: a elevada correlação entre as variações do PIB brasileiro e as oscilações dos preços internacionais das commodities, algo que se sustenta mesmo quando são utilizados diferentes indicadores para essa segunda variável. Ainda que correlação não implique necessariamente causalidade, sabe-se que o Brasil é um grande exportador líquido de commodities agrícolas, metálicas e, de 2016 em diante, também de petróleo, gás e derivados. É de se esperar, portanto, que a alta dos preços internacionais das commodities aumente os termos de troca do Brasil, com efeitos diretos e indiretos na economia
O aumento da renda do setor exportador de commodities tem impacto direto no PIB, gerando também transbordamentos indiretos, tanto via consumo e investimento quanto em termos financeiros, como queda do risco país, valorização cambial e a consequente criação de graus de liberdade para a política monetária doméstica (ainda que muitas vezes o aumento dessa renda também gere pressões inflacionárias)
Especialmente para esta Carta, Borges investigou de forma mais aprofundada os canais de transmissão dessa correlação entre o PIB brasileiro e os preços internacionais das commodities. O economista traçou a evolução da renda gerada pelo setor de commodities brasileiro utilizando duas métricas, que são bastante correlacionadas entre si, embora apresentem níveis distintos.
A primeira delas corresponde ao indicador de renda associada à exploração de recursos naturais renováveis e não renováveis, estimada pelo Banco Mundial para diversos países. Esse indicador é calculado a partir da diferença entre o preço praticado no mercado e o custo de produção, multiplicando-se o resultado pela quantidade produzida de commodities, que é então dividida pelo PIB. Antes da pandemia, sob essa métrica, a renda total gerada pelos setores de commodities no Brasil oscilava em torno de 3,2% do PIB. Porém, no período que engloba 2021, 2022 e o primeiro trimestre de 2023, esse percentual foi para quase 8% do PIB, com queda ligeira na margem.
A segunda métrica empregada pelo pesquisador parte dos dados das Contas Nacionais Trimestrais do IBGE. Trata-se da soma do valor adicionado a preços básicos (VAPB) da agropecuária com o VAPB da indústria extrativa mineral, dividindo esse resultado pelo VAPB total da economia (que corresponde ao PIB, descontados os impostos sobre produtos). Nesse caso, caminhou-se de um nível de 7-8% antes da pandemia (2017-19) para 13,5%, aproximadamente, na média desde o final de 2020, quando o preço das commodities começou a subir.
No setor agropecuário, o VAPB nominal acumulado em quatro trimestres, deflacionado pelo deflator do PIB total, saiu de uma média anual de R$ 400-450 bilhões por ano no período 2011-19 para cerca de R$ 700 bilhões nos últimos três anos (a preços do 1º trimestre de 2023).
No caso da indústria extrativa-mineral, o salto do VAPB, também deflacionado pelo deflator do PIB total, foi maior ainda, saindo-se de cerca de R$ 250 bilhões anuais em 2018-19 para quase R$ 500 bilhões nos últimos cinco ou seis trimestres. Borges nota que, como a taxação nesse setor é bastante superior à média da economia, isso ajuda a entender a dinâmica das receitas brutas federais com o setor extrativo nos últimos anos. Essas receitas saltaram da média de 0,9% do PIB de 2011 a 2020 para 1,8% do PIB em 2021 e 2,6% do PIB em 2022, e ajudaram a gerar parte importante da melhora dos resultados primários do governo federal e governos regionais em 2021-22.
Fica claro nos números acima que houve uma alta de grande magnitude da renda real gerada pelo setor de commodities nos últimos três anos.
Segundo Borges, as indicações apontam para um fenômeno muito mais explicado por “sorte” do que por “mérito”, já que tanto no caso do setor agropecuário como no do extrativo, os volumes produzidos em 2020-22 cresceram menos do que o PIB total no mesmo período. A elevação da renda, portanto, foi puxada pela alta do preço internacional e pela forte depreciação do real, ampliando o rendimento em moeda nacional de uma mesma receita em dólares. O pesquisador recorda que, a partir de 2020, o câmbio, que vinha oscilando algo abaixo de R$ 4/US$ antes da pandemia, subiu fortemente e, até o ano passado, era negociado predominantemente na faixa de R$ 5,0-R$ 5,5/US$.
Munido de todos esses dados, Borges realizou um exercício econométrico contrafactual para estimar a trajetória recente do PIB brasileiro na suposição de que o choque de renda do setor de commodities nos últimos dois a três anos não tivesse ocorrido. Empregando a técnica de vetores autorregressivos (VAR), ele incluiu, como variáveis endógenas, o PIB total em volume, o VAPB agropecuário real, o VAPB Extrativo real – nos dois últimos caso, deflacionando pelo deflator do PIB, e com dados dessazonalizados –, variações anuais do gasto primário real e variações em pontos percentuais da Selic real. Também incorporou algumas variáveis exógenas, como o Barômetro Coincidente Global KOF/IBRE (indicador de ciclo econômico mundial) e as anomalias nas precipitações pluviométricas no Brasil.
Observando o modelo estimado, o economista chegou a algumas conclusões principais. O efeito multiplicador da renda gerada pela indústria extrativa é próximo da unidade, de modo que sua contribuição para o PIB reside quase completamente no impacto direto do choque de renda. É um resultado intuitivo, já que esse setor é altamente intensivo em capital, tem muito poucos protagonistas (na verdade, duas empresas, Petrobrás e Vale, são responsáveis pela esmagadora maioria da produção), e grande parte da renda é distribuída sob a forma de lucro, com parcela relevante, inclusive, sendo remetida para o exterior.
Já o choque de renda na agropecuária tem muitos transbordamentos e efeitos indiretos, o que também faz sentido em relação a uma atividade bem mais pulverizada, com parcela não desprezível de pequenos e médios produtores, que emprega muita mão de obra, levando a um giro mais intenso do dinheiro e a impactos sucessivos na demanda. O exercício econométrico de Borges revela que o choque de renda agropecuário, após o efeito direto inicial, continua a aumentar ao longo do tempo, atingindo um impacto máximo aproximadamente cinco trimestres depois do momento inicial e com um multiplicador próximo de 2,0.
Em termos numéricos, a partir das elasticidades e defasagens estimadas com o modelo, o economista inferiu que, se a renda real do setor extrativo desde 2020 tivesse se mantido no nível de 2017-19 (quase a metade), o PIB brasileiro no primeiro trimestre de 2023 seria 1,7% inferior ao efetivamente registrado. O efeito não é tão grande, pelo fato já mencionado do pequeno transbordamento da renda extrativa. O pesquisador ressalta que seu modelo é válido apenas para a renda gerada pela extração de petróleo, gás e minérios (fase de OPEX) , e não para os investimentos do setor (fase de CAPEX), que devem ter muitos transbordamentos favoráveis sobre a economia brasileira.
Já em relação ao choque de renda agropecuário, em que o transbordamento é elevado, Borges estimou que, caso a renda real do setor tivesse se mantido no nível de 2017-19, sem o salto observado a partir de 2020, o PIB brasileiro hoje seria quase 6% inferior ao nível efetivo no começo de 2023.
Somando-se o impacto do choque de renda de commodities no setor agropecuário e no extrativo, chega-se a um crescimento adicional acumulado do PIB de 8% ao longo de aproximadamente três anos, montante que é extremamente significativo, já que representa cerca de 2,4 p.p. a mais por ano, em média.
Mais importante, porém, para o pesquisador, é utilizar suas conclusões para perscrutar o futuro. Borges nota que o recuo dos preços internacionais das commodities a partir do final de 2022 e a valorização do câmbio, que se intensificou neste ano de 2023, deverão levar a um choque negativo relevante na renda real gerada pelo setor de commodities nos próximos trimestres e em 2024.
Nas suas projeções, o VAPB agropecuário, que atingiu R$ 727 bilhões em 2021 e R$ 676 bi em 2022, deverá recuar para R$ 630 bi e R$ 625 bi, respectivamente, em 2023 e 2024 (a preços do 1º trimestre de 2023, pelo deflator do PIB total). Já no caso do VAPB da indústria extrativa-mineral, esse valor deverá sair de R$ 454 bi em 2021 e R$ 463 bi em 2022 para R$ 365 bi em 2023 e R$ 350 bi em 2024 (também a preços constantes).
Borges nota que o câmbio utilizado nessas previsões é de R$ 5/US$. No entanto, não só a moeda americana está cotada abaixo deste nível no momento (de redação desta Carta), como já há projeções de horizonte mais longo próximas a R$ 4,5/US$. Neste caso, a queda do VAPB real do setor de commodities seria ainda maior, já que esses setores são muitos mais tradables do que a média da economia
O economista observa que “na prática, a renda do setor de commodities ajudou muito o PIB brasileiro nos últimos dois a três anos, este ano ainda vai ajudar, mas em 2024 vamos ter um impulso negativo de renda relevante associado a esse setor”.
Tal como no caso do período 2020-22, o choque de renda do setor de commodities até pelo menos o final 2024 – agora negativo, de acordo com a projeção de Borges – será liderado pela evolução dos preços relativos. Nas suas projeções de PIB, ele vê crescimento em volume da agropecuária de 12,5% este ano e 2% em 2024, mas com queda de preços de 10% em 2023 e alta de apenas 2% no ano que vem. Já o setor extrativo mineral deve crescer em volume 4,5% e 5%, respectivamente, em 2023 e 2024, mas com queda de preços de, respectivamente, 21% e 4%.
Borges têm dúvidas sobre a presença, no radar dos analistas do mercado e do Banco Central, desse choque negativo de renda no setor de commodities até o final de 2024. “É um impulso negativo relativamente exógeno e relevante sobre a demanda agregada no ano que vem, e, nesse contexto, talvez a Selic possa cair bem mais do que se projeta hoje”, aponta.
Já quando olha o médio e longo prazo, o pesquisador vê a possibilidade de que a renda de commodities volte a se elevar, puxada mais por volume do que por preços. Ele cita a perspectiva de que a produção de petróleo e gás no Brasil cresça quase 80% até o final desta década. Também lembra que a nova “corrida pelo ouro” associada à transição energética mundial vem impulsionando a demanda pelos chamados minerais críticos, tais como lítio, cobre e níquel. O Brasil possui elevadas reservas de boa parte desses minerais e, de fato, levantamentos do setor apontam para forte elevação dos investimentos na mineração em nosso país nos próximos anos, puxados por cobre e lítio.
Esta é a Carta do IBRE de julho/2023, da Conjuntura Econômica.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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