Por que a democracia brasileira não morreu?
Além de ser possível gerir a custos mais baixos, o sistema político brasileiro tem feito reformas incrementais na direção correta, a minirreforma política de 2017. Os autores mostram expressiva queda da fragmentação partidária.
Acaba de ser publicado pela Companhia das Letras o livro “Por que a democracia brasileira não morreu”, da dupla pernambucana da ciência política brasileira, Marcus André Melo e Carlos Pereira.
O livro repassa três momentos da conjuntura política dos últimos dez anos – o impedimento da presidente Dilma, a presidência de Bolsonaro e seus contínuos ataques à democracia e o terceiro mandato de Lula – à luz do modelo interpretativo dos autores sobre o funcionamento do presidencialismo multipartidário brasileiro.
A avaliação dos autores é que tanto o impedimento da presidente Dilma quanto a capacidade de o sistema política se defender dos ataques à democracia no governo Bolsonaro são exemplos do bom funcionamento das instituições políticas. Adicionalmente, argumentam que o terceiro mandato de Lula representa um retorno do presidencialismo de coalizão ao seu leito de normalidade – fato que já havia ocorrido parcialmente quando Bolsonaro foi obrigado e construir uma base de sustentação com o centrão no terceiro ano de seu mandato.
Nesta resenha apresentarei o argumento dos autores em dois momentos. No primeiro, apresento o argumento mais geral do funcionamento do sistema político brasileiro. No segundo repasso análise dos três momentos à luz do argumento mais geral dos autores.
Melo e Pereira argumentam que o sistema político brasileiro – voto proporcional, nominal em lista aberta e distritos grandes – gera forte fragmentação partidária. Para contrabalançar a força centrífuga do parlamento, a Constituição federal de 1988 manteve diversos instrumentos da presidência da ditadura militar. E, para que o sistema com uma presidência muito forte não descambasse em tirania, dotou os órgãos de controle de muita independência e latitude de atuação.
A presidência forte também é resultado de aprendizado pelos políticos das enormes dificuldades de governabilidade no período do interregno democrático do pós-guerra até o golpe militar. A presidência forte é um elemento majoritário que modera o excesso de “consociativismo” das demais instituições políticas brasileiras. Tomando-se a definição da Wikipédia, consociativismo é “uma forma de governo que garante representação aos diversos grupos que compõem um país profundamente dividido ou diverso. É frequentemente adotado para administrar os conflitos que surgem numa comunidade nacional profundamente dividida por razões históricas, étnicas ou religiosas”.
A presidência forte moderando o consociativismo é um dos pontos importantes da reflexão da dupla. As instituições políticas de qualquer país são uma construção de longo prazo, em que o respeito à própria tradição e à capacidade de aprendizado é um dos ingredientes para o sucesso. Sucesso é medido pela estabilidade no longo prazo: a capacidade de o sistema processar as divergências e as diferenças da sociedade sem quebrar as regras. As instituições funcionam. O impedimento da presidente Dilma não foi consequência de falhas do arranjo institucional pós-1988. (Voltarei a este tema adiante.) E, segundo Melo e Pereira, a democracia sobreviveu aos ataques do presidente Bolsonaro bem como sobreviverá a outras tentativas, em função das virtudes do desenho institucional brasileiro. Adicionalmente, “o presidencialismo multipartidário, promessa dos revolucionários de 1930, não foi desenhado para gerar eficiência, mas para incluir, mesmo que de forma dissipativa, os mais variados interesses sociais no jogo político. Essa promessa tem sido cumprida e gerado equilíbrio democrático em uma sociedade extremamente diversa e heterogênea”.[1]
Nosso presidencialismo multipartidário viveu um equilíbrio de 1995 até 2006. O equilíbrio “estava assentado em crenças compartilhadas em favor de políticas de inclusão social com sustentação fiscal”.[2] Dois choques exógenos ao sistema quebraram o equilíbrio. Primeiro, a combinação de boom de commodities com a descoberta do pré-sal, e, segundo, a grande crise financeira global. O primeiro choque gerou a sensação de que estávamos ricos. Caímos na armadilha da maldição dos recursos naturais. O segundo justificou ideologicamente a mudança de rota no modelo de desenvolvimento. Optou-se pelo capitalismo de Estado com todo seu intervencionismo e as ineficiências microeconômicas que daí decorrem em associação com o esgotamento fiscal.
Antes da crise econômica e política que desaguou no impedimento da presidente Dilma houve as manifestações de 2013. Para os autores, além de temas laterais – as manifestações internacionais como “Occupy Wall Street” e a Primavera Árabe –, o cerne das manifestações foi o desconforto pela baixa qualidade dos serviços públicos. A população, segundo os autores, não questionou a política de maneira geral. Tema não abordado no livro, a baixa qualidade dos serviços públicos é um dos limites do sistema político de 1988. Assim, há uma dinâmica endógena que desaguou na crise. Outra dinâmica endógena foi o próprio escândalo de corrupção. Um argumento que os autores fariam, e me parece lógico, é que, se Lula II e Dilma não tivessem embarcado no intervencionismo desvairado com consumo de todo o espaço fiscal, o presidencialismo multipartidário brasileiro teria capacidade de digerir e responder a esse difícil limite do modelo de 1988: a capacidade de gerar bens privados, mas a enorme dificuldade de gerar bens de consumo coletivo.[3]
O cerne da primeira parte do livro é o capítulo 7, em que o impedimento da presidente Dilma é analisado. A literatura sobre o tema empregada pelos autores estabelece que são necessários (mas não suficientes) quatro condições para haver um impedimento de presidente: crise econômica; escândalos de corrupção; povo na rua; e perda de apoio no Congresso. Me parece que há uma quinta condição: que as quatro condições anteriores se materializem no início do mandato. Além dessas cinco condições havia uma sexta, lembrada pelos autores. Dilma cometera estelionato eleitoral explícito: avisou os eleitores que Aécio com Armínio promoveriam um ajuste macroeconômico. Quem promoveu foi Dilma com Joaquim Levy. O caso tem grande semelhança com Collor, que avisara o eleitor que Lula iria confiscar a caderneta de poupança.
Além das seis condições havia, segundo os autores, um esgotamento da coligação de sustentação do governo. O governo petista tem um problema estrutural. Trata-se de presidente de esquerda em um Congresso de direita ou de centro direita. A gestão da coalizão no presidencialismo multipartidário brasileiro tem dois tipos de instrumento: o compartilhamento do governo e o varejo, o que na literatura de ciência política é conhecido por pork barrel politics e no Brasil por toma-lá-dá-cá. Trabalho anterior dos autores documentou que ambos os instrumentos são substitutos.[4] A forma que o governo petista encontrou para obedecer aos dois senhores – o eleitorado majoritário que escolheu o presidente e o Congresso Nacional, escolhido por regra eleitoral consociativa – foi usar em demasia o varejo e compartilhar pouco o governo. As coalizões petistas são desproporcionais – a alocação de ministérios não guarda proporcionalidade com o peso dos partidos no Congresso – e a ideologia mediana da coalização é distante da ideologia mediana do Congresso. Todos esses fatos são fartamente documentados. O argumento dos autores é que anos de uma gestão pouco compartilhada e muito centrada no varejo gera desgastes que se acumulam e em um momento de fraqueza aparecem. Assim, quando o momento chegou o Congresso cortou a cabeça da presidente. Foi uma escolha legal e compreensível do ponto de vista da ótica do centrão, que foi o grupo político que liderou o processo. Pode ter dado errado – Temer não se viabilizou em 2018 – mas era um risco que o sistema político resolveu correr em 2016. Os autores reconhecem que o objetivo de controlar a Lava Jato foi um dos fatores que motivou o impedimento da Dilma. Mas de longe não foi o mais importante da longa lista elencada até aqui. De fato, não houve esforços reais de Temer de acabar com a LJ, muito pelo contrário, Raquel Dodge foi bem diferente de Aras à frente do MPF.
Como contraponto às dificuldades de gestão de um presidente de esquerda no Brasil, os autores mencionam o governo Temer, que desenhou a coalizão mais congressual desde a redemocratização. O custo de gestão, na forma de gastos com emendas, foi o mais baixo. Temer compartilhou quase que perfeitamente o governo com os partidos da coalizão. Além de ser possível gerir a custos mais baixos, o sistema político brasileiro tem dado mostras de capacidade de reformas incrementais na direção correta, como foi o caso da minirreforma política de 2017. Os autores documentam a expressiva queda da fragmentação partidária.
Ao longo do tempo o sistema político reforçou a escolha da CF de 1988 e fortaleceu ainda mais as instituições de controle. A emenda constitucional 45 de 1992, aprovada em 2004, aumentou a eficiência do Judiciário com a repercussão geral e a súmula vinculante. Após as manifestações de 2013 foi aprovada a Lei Anticorrupção, que define organização criminosa, e que especifica regras para a delação premiada e acordos de leniência e o financiamento público de campanha.[5]
A segunda parte do livro inicia-se com a pergunta título: por que a democracia não morreu? A resposta tem duas partes. Primeiro, a recessão democrática é um evento bem raro. Principalmente, em economias com renda média alta. Há ampla literatura internacional documentando esse fato. Segundo, o desenho institucional altamente consociativo, com inúmeros pontos de vetos, dificulta muito qualquer aventura autoritária. No caso específico de Bolsonaro, o STF desempenhou papel importantíssimo, descrito em detalhe, mas também o Legislativo defendeu a democracia. Bolsonaro não conseguiu aprovar nenhuma legislação que enfraquecesse o STF.
Aqui vale um esclarecimento sobre a afirmação dos autores de que “as instituições estão funcionando”. Em qualquer democracia, se os militares que detém as armas quiserem dar um golpe, o golpe ocorrerá. Vale para o Brasil mas vale para os EUA: quando Trump avançou o sinal, os militares não aceitaram a aventura. Por outro lado, as instituições não ocorrem no vácuo. Se os homens quiserem acabar com a democracia ela será destruída. O argumento dos autores é que nossas instituições protegem a democracia. Por exemplo, penso eu, seria muito mais difícil com nossas instituições que um único referendo, como ocorreu no Reino Unido, fosse capaz de uma decisão tão radical quanto o Brexit. Aqui certamente haveria recurso, revisão, nova interpretação, talvez um novo plebiscito etc. Talvez o Congresso nem aprovasse um plebiscito com o teor do Brexit (me refiro, num cenário imaginário, a algo da mesma radicalidade do Brexit). Se, de fato, a sociedade quisesse algo do nível de ruptura institucional do Brexit, isso ocorreria com as nossas instituições, mas certamente seria um processo mais custoso e longo. A argumentação dos autores me parece acertada.
Após uma detalhada análise do governo Bolsonaro, com o papel da pandemia, dos escândalos de corrupção no interior do próprio governo Bolsonaro, e com os limites da estratégia populista – Bolsonaro teve que ceder e construir uma coalização com o centrão, mais um sinal de que as instituições protegem a democracia –, o livro termina com a análise de Lula 3. Há um tema muito importante: após todos os choques, o sistema saiu machucado. Um dos elementos importantes do desenho institucional, a poder da presidência da República, reduziu-se. Houve perda de discricionariedade do PR na execução da parcela discricionária do orçamento.
Dois são os temas: o motivo das perdas de prerrogativas da PR e as consequências. A complexidade e delicadeza de nosso desenho institucional têm consequências. Não ocorrem a custo zero. Nossas instituições políticas demandam muito da qualidade da liderança. Dois presidentes eleitos com pouco apetite para a função – Dilma e Bolsonaro – geraram um vácuo ocupado pelo Congresso. No entanto, os autores argumentam que, com os instrumentos à disposição da PR – os diversos instrumentos de compartilhamento de poder e o que resta de execução de emendas com discricionariedade do Poder Executivo –, há espaço para a operação normal do presidencialismo de coalizão. A grande dificuldade, insistem os autores, é a escolha petista de compartilhar pouco o poder e usar muito o varejo.
O livro termina com uma mensagem: a democracia é um processo inacabado e em constante evolução. Em toda a parte. Com mais motivo por aqui, uma democracia relativamente jovem. As pessoas podem vaiar, gritar, reclamar, mas a democracia parece ser the only game in town. O livro inicia-se com uma aposta. Todas as idas e vindas institucionais mais recentemente no Judiciário – uma onda mais garantista, outra menos garantista, e ainda outra mais garantista novamente – fazem parte de um longo processo de aprendizado institucional em que a resultante no longo prazo será – de fato já está ocorrendo – uma melhora. Esta é a aposta dos autores.
A coluna pensa que, se o sistema político conseguir nos próximos anos construir uma posição fiscal suficientemente sólida de forma a manter equilíbrio macroeconômico com inflação baixa e dívida pública em queda, é sinal do acerto das análises de uma das mais produtivas duplas da ciência política brasileira. Ainda estamos observando e torcendo muito. A coluna recomenda fortemente a leitura do livro!
Esta é a coluna Ponto de Vista da Conjuntura Econômica de junho de 2024.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
[1] Página 15.
[2] Página 49.
[3] Tratei desse limite de nosso equilíbrio político em Pessôa, Samuel de Abreu 2011, “O Contrato Social da Redemocratização”, capítulo 7, páginas 204 até 211 do livro Brasil: a Nova Agenda Social editado por Edmar Lisboa Bacha e Simon Schwartzman (GEN, Grupo Editorial Nacional).
[4] Veja Making Brazil Work: Checking the President in a Multiparty System, Nova York, Palgrave, McMillan, 2013, capítulo 3.
[5] Página 58.
Deixar Comentário