Fiscal

Os limites da política econômica

9 out 2024

A confusão entre as políticas de pleno emprego e a promoção de crescimento econômico elevado turvam o entendimento dos limites da política econômica e podem resultar em inflação elevada, déficit externo e bolhas de ativos.

Há alguns anos o Brasil sofria duas patologias macroeconômicas[1]. A primeira patologia era de curto prazo e relacionada à falta de demanda agregada. Gastos com bens e serviços abaixo da capacidade produtiva da economia resultaram em elevado desemprego e baixo crescimento. A segunda patologia era de longo prazo e devida às restrições de oferta em que a estagnação dos investimentos e a baixa qualidade da educação resultaram em estagnação da produtividade, impedindo a melhoria dos empregos e o crescimento dos salários[2].

Apesar de serem patologias distintas, esses problemas são relacionados. Empresas ampliam seus investimentos quando há demanda por seus produtos. Trabalhadores se qualificam e são estimulados quando se sentem devidamente premiados pelo mercado de trabalho. Economistas criaram o termo economia de alta pressão para designar a situação em que o nível de atividade é alto e a oferta agregada é estimulada pela demanda.

O PIB do segundo trimestre de 2024 cresceu 1,4% em relação ao trimestre anterior, o dobro do esperado pelos agentes de mercado. As expectativas de crescimento convergiram para 3% em 2024. Desde a pandemia, o crescimento surpreende com uma taxa média de 3% a.a., comparado ao crescimento de 1,4% a.a. entre 2017 e 2019.

Quando o PIB se acelera, economistas indagam se há crescimento permanente da capacidade produtiva que significa um maior crescimento em ritmo sustentável – conhecido como PIB potencial – ou apenas uma recuperação cíclica, situação em que a demanda agregada preenche a ociosidade da economia, aproximando o nível de produção corrente do potencial de plena utilização dos fatores de produção.

A análise dos dados deixa pouca margem para dúvida. Do ponto de vista econômico, a taxa de investimento continua baixa, tendo apresentado pequena recuperação apenas em 2024. Dos efeitos das reformas, fala-se muito da expansão do mercado de capitais. Um estudo recente do BNDES (2023) mostrou que o crescimento das emissões das empresas em mercado ocorreu primordialmente para financiar o capital de giro, em vez de financiar novos investimentos.

Por outro lado, os projetos de infraestrutura estão mais bem estruturados, fruto de vários aperfeiçoamentos na gestão. A infraestrutura do país melhorou um pouco nos últimos anos.

Os indicadores de produtividade, com exceção da agropecuária, têm um desempenho muito ruim. Os dados disponibilizados no Observatório da Produtividade Régis Bonelli do FGV IBRE indicam que a produtividade do trabalho ajustada por horas, em 2023, foi inferior aos patamares observados em 2013 e 2014.

O mercado de trabalho, por sua vez, parece indicar algum aumento de PIB potencial, com o desemprego atingindo mínimas históricas sem a observância de grandes pressões inflacionárias.

O mercado de trabalho foi impactado: (i) pela redução de custos decorrentes da menor judicialização, o efeito mais visível da reforma trabalhista de 2019 e, (ii) pela reforma da previdência que, ceteris paribus, ampliou a oferta de trabalho diante de uma demografia bastante adversa exacerbada pelo movimento emigratório crescente dos últimos anos[3]. A redução da taxa de participação do pós-pandemia atua na direção oposta.

Assim, pelo lado do investimento e da produtividade, é difícil justificar que tenha ocorrido aumento substantivo do PIB potencial. Pelo lado do mercado de trabalho, há razões para acreditar que é possível conviver com uma taxa de desemprego mais baixa sem fortes pressões inflacionárias, o que pode justificar algum grau de otimismo sobre estimativas de PIB potencial um pouco mais elevadas.

Mas é importante ressaltar que existem mais restrições para crescer acumulando o fator trabalho do que crescer acumulando capital ou ampliando a produtividade. Esse limite é dado pela baixa taxa de desemprego, restrita oferta de trabalho e pela demografia desfavorável.

Alguns efeitos das reformas só aparecem quando há ampliação da demanda agregada e esse parece ser um fator decisivo para a recuperação econômica. A retomada da demanda agregada decorre de uma série de políticas expansionistas adotadas durante a pandemia, tais como a agressiva redução de juros e estímulos fiscais e creditícios.

Durante um breve intervalo, entre 2021 e início de 2022, as políticas monetária e fiscal se tornaram contracionistas, mas seus efeitos foram amplamente substituídos por um grande choque positivo de commodities e da renda agrícola, descritos por Pires (2023), e que produziram efeitos até o primeiro semestre de 2023.

As políticas expansionistas foram retomadas com a Emenda da Transição e um novo regime fiscal que combina crescimento dos gastos públicos mais próximos ao crescimento do PIB potencial (desconsiderando várias antecipações ocorridas no final de 2023 e início de 2024) com ampliação de receitas não recorrentes de baixo efeito contracionista e políticas para-fiscais. O indicador de impulso estrutural do gasto público, calculado por Resende e Pires (2024), atingiu o valor mais elevado da série histórica entre 2022 e 2023, com exceção da pandemia.

Barboza e Borges (2024) formularam a hipótese de que estímulos fiscais podem ser mais potentes do que a política monetária para justificar por que a demanda cresce apesar da atual contração da política monetária. Por enquanto, a evidência anedótica parece indicar que a tese pode ser verdadeira.

O governo, portanto, tem se esforçado bastante para curar a primeira patologia adotando uma série de políticas com vistas à promoção do pleno emprego, sem descuidar da inflação. Nesse aspecto, até agora, tem sido muito bem-sucedido.

As políticas de promoção do pleno emprego ficaram famosas após Keynes, em 1936, demonstrar que o pleno emprego não era resultado automático do equilíbrio econômico, mas que era possível obter posições de equilíbrio permanente com desemprego involuntário.

O desemprego involuntário não deve ser confundido com o desemprego natural expresso pela concepção da curva de Phillips, mas uma situação na qual existe elevado desemprego e muitos trabalhadores que estão empregados são remunerados em valores inferiores às respectivas produtividades por falta de demanda efetiva. No desemprego involuntário cabe o desemprego disfarçado ou subemprego.

Segundo Carvalho e López (2007), as políticas de pleno emprego foram bem-sucedidas nos 25 anos que sucederam a 2ª Guerra Mundial em função de alguns fatores: (i) a reconstrução da Europa em meio às disputas da Guerra Fria, (ii) o crescimento da produtividade do trabalho, (iii) o círculo virtuoso do crescimento da parcela dos salários no PIB que induziu novos investimentos e; (iv) o direcionamento dos lucros para sistemas financeiros que apoiavam o crescimento econômico.

Na América Latina e no Brasil, em particular, sempre houve muita confusão entre as políticas de pleno emprego e as políticas de elevado crescimento (Carvalho e López, 2007). Tal confusão nos legou a crise dos anos 1980, período eternizado pelo termo “marcha forçada” do saudoso Professor Antônio Barros de Castro em parceria com Francisco E. de Souza, ambos da UFRJ. Difícil não traçar algum paralelo com a crise de 2015-16, apesar de cada evento histórico ter suas próprias nuances.

Críticos sempre alegaram alguma irresponsabilidade subjacente às políticas keynesianas ou que essas ideias funcionam bem em períodos de depressão econômica, mas não em períodos de normalidade econômica ou em contexto de pressões inflacionárias.

Mas os excessos das políticas de pleno emprego sempre preocuparam vários autores keynesianos. Kalecki (1943), em um artigo clássico, advertiu que a manutenção do pleno emprego desafiaria as relações organizadas de trabalho e poderia substituir a instabilidade econômica por instabilidade política.

De fato, a prosperidade até a década de 1960, na economia norte americana, propiciou uma mobilização mais intensa dos trabalhadores e forjou uma era de muitos conflitos que atingiram seu ápice durante o programa The Great Society que ampliava direitos sociais e civis no Governo Lyndon Johnson[4].

No âmbito político, tais tensões culminaram em uma contrarrevolução conservadora a partir dos governos Thatcher e Reagan. No âmbito intelectual e acadêmico, transformou o estado de bem-estar social em fonte de risco moral, comprometendo a noção de cidadania promovida naquele período.

No Brasil, o movimento que ficou conhecido como as jornadas de junho (ou os protestos de 2013) concentrou várias frustrações da sociedade em um período na qual a economia situava-se muito próxima do pleno emprego, mas havia a percepção de que o processo de melhorias econômicas e sociais estava sendo interrompido. O movimento marcou uma virada importante na forma de se fazer política e de se pensar o país.

A confusão entre as políticas de pleno emprego e a promoção de crescimento econômico elevado turvam o entendimento dos limites da política econômica e podem resultar em: (i) inflação elevada que corrói a renda e aumenta a pobreza, (ii) déficits externos que causam fragilidades no balanço de pagamentos e; (iii) bolhas que ocorrem quando regulações são flexibilizadas para estimular o crédito para setores de baixa produtividade comprometendo a eficiência do capital (Quinn e Turner, 2020).

A desconfiança em relação à política econômica não decorre de questões pontuais do dia a dia do orçamento público, mas sim de duas questões mais gerais que permeiam todos os meandros decisórios do governo. A primeira questão é o fato de que os objetivos do governo podem ser distintos dos objetivos do mercado financeiro, como ressaltou Tobin ao analisar o mercado de títulos:

“I suppose their policy objective would be to maintain a slack economy with negligible risks of inflation or capital market congestion, like the one we’ve enjoyed the last four years” (1993, p. 17).

Essa diferença de visões é absolutamente legítima e, a meu ver, reduzir o desemprego deve ser sim um objetivo governamental. Mas a diferença de visão de mundo entre esses atores há muito tempo não era tão grande e isso sempre irá gerar ruídos.

A segunda questão decorre de dúvidas sobre o reconhecimento por parte do governo dos limites da política econômica aqui expostos. E essa pergunta hoje parece muito difícil realmente de ser respondida de forma objetiva. Nessa dificuldade, muito analistas expõem seus preconceitos em relação ao governo. Mas essa é uma fonte de incerteza absolutamente desnecessária e que deveria ser desfeita.

A clara compreensão desses temas e o manejo competente e organizado das políticas é muito importante para eliminar tais dúvidas. Respeitar os limites do orçamento público – o principal instrumento de política econômica do país – e construir um bom sistema de acompanhamento macroeconômico é crucial para monitorar riscos, aperfeiçoar a governança e melhorar o processo decisório.

Com o fim da ociosidade, o governo deveria direcionar mais esforços para tratar a segunda patologia criando condições para promover o crescimento da produtividade ao ampliar a poupança nacional e os investimentos produtivos, e aperfeiçoar a microeconomia de vários setores importantes para o desenvolvimento nacional. A atual estratégia econômica deveria se concentrar nesses aspectos.


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva dos autores, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

Referências

Barboza, R. e Borges, B. (2024). “A tendência do PIB brasileiro”. Jornal Valor Econômico, publicado em 01 de outubro.

BNDES (2023). “O BNDES e o mercado de capitais”. Série Estudos Especiais do BNDES. Edição no 6. Disponível em: https://web.bndes.gov.br/bib/jspui/bitstream/1408/23425/1/PRFol_215926_BNDES%20e%20mercado%20de%20capitais.pdf

Carvalho, F. e Lopez, J (2007). “Are full employment policies obsolete”? International Journal of Political Economy, vol. 36, no 3, p. 5-23.

Castro, A. B. e Souza, F. E. (1985). “A economia brasileira em marcha forçada”. Editora Paz e Terra.

Kalecky, M. (1943). “Political aspects of full employment”. Political Quarterly.

Mounk, Y. (2024). “A armadilha da identidade: Uma história das ideias e do poder no nosso tempo”. Edições 70.

Pires, M. (2023). “Crescimento econômico e ciclo externo”. Jornal Valor Econômico, publicado em 25 de setembro.

Quinn, W. e Turner, J. (2020). “Boom and Bust: A global history of financial bubbles”. Cambridge University Press.

Resende, C. e Pires, M. (2024). “O impulso estrutural do gasto público: metodologia e estimativas iniciais”. Texto para Discussão IBRE.

Tobin, J. (1993). “Thinking straight about fiscal stimulus and deficit reduction”. Challenge, march-april.

Tobin, J. (1996). “Full employment and growth: Further keynesian essays on policy”. Edward Elgar.

[1] Versão ampliada e revista do original publicado no Jornal Valor Econômico no dia 9/10/2024, quarta-feira

[2] Esse tipo de situação ocorre com certa frequência. Destaca-se a situação para a economia norte-americana no início dos anos 1990 (Tobin, 1996).

[4] Uma boa descrição desses conflitos na dimensão civil e seus efeitos sobre a ascensão das políticas de identidade podem ser encontrados em Mounk (2024).

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