Fiscal

Gasto público e risco fiscal

30 dez 2024

Há impacto tributário no pacote fiscal que incide sobre mercado, levando à reação negativa. Este efeito independe do timing (que foi problemático). E proposta tributa poupança para financiar consumo, o que é inflacionário.

O governo apresentou um pacote de medidas fiscais que envolve a contenção de gastos públicos da ordem de R$ 30 bilhões no primeiro ano e de R$ 40 bilhões no segundo ano. Além disso, foram apresentadas as linhas principais de uma reforma da tributação da renda que consiste em ampliar a faixa de isenção para R$ 5.000 e adotar um imposto mínimo para as altas rendas, em função da constatação de que, no topo da renda, as alíquotas efetivas são muito baixas. A proposta de reformulação do imposto de renda muito provavelmente é fiscalmente positiva para as contas públicas se aprovada como encaminhada.

Apesar de as medidas dos gastos apresentarem perspectivas de economia dentro do que era esperado pelo mercado, e de que sua aprovação seja plausível, a reação foi muito negativa. A taxa de câmbio se depreciou e as taxas de juros mais longas subiram. A reação foi o inverso do que a equipe econômica desejava obter.

Existem três aspectos principais para se analisar a reação de mercado ao pacote fiscal do governo, que vão além do mero risco fiscal embutido em um eventual enfraquecimento das medidas de reforço fiscal. Esses três aspectos estão relacionados à nova proposta tributária: o ‘timing’ do seu anúncio, a incidência da proposta de tributação em si e, finalmente, um aspecto macroeconômico.

Do ponto de vista do timing, o governo passou vários meses dizendo que iria apresentar um pacote de ajuste fiscal concentrado em gasto, buscando a redução de juros e a apreciação do câmbio, mas apresentou uma coisa diferente. Mercado não gosta de surpresa. Em particular, a parcela do mercado que apostou no anúncio do governo, e que se posicionou aguardando redução de juros e apreciação do câmbio, teve que reverter sua estratégia e mudar sua alocação de recursos. Então, o câmbio se deprecia, a taxa de juros sobe, e, nesse momento, o mercado se protege porque não era o que ele esperava. Essa é a primeira questão, fruto do erro de timing do governo ao anunciar a reforma do imposto de renda, misturando-a com a discussão que ele tinha preparado há tantos meses para produzir o efeito que desejava.

Sobre a questão tributária em si, o governo propôs desonerar a tabela do Imposto de Renda (IR) para quem ganha até R$ 5 mil, e vai pagar essa desoneração com uma alíquota mínima sobre o IR para pegar as pessoas mais ricas do país, que têm uma carga tributária efetiva baixa. As medidas se compensam até com certa folga. E temos muita regressividade no IR por conta do desenho do imposto; dessa forma, a iniciativa é louvável. O problema é que essa medida tem um efeito colateral, porque boa parte da redução de carga tributária que temos hoje decorre de isenção de LCA, de LCI e de alguns tipos de debêntures, como de infraestrutura, além da isenção na distribuição de lucros e dividendos. Essa mudança impacta o mercado, pois se trata dos incentivos para alocação da poupança da economia. A mudança mexe na política de investimento, no retorno de ativos.

Apesar de distributivamente correta, a incidência recai mais fortemente sobre o mercado, que precisa reavaliar toda a estratégia de investimentos. Um exemplo: há um resultado famoso em finanças que diz que o preço de uma ação é o valor presente dos dividendos que o acionista recebe. Ou seja, só se investe naquela empresa se ela garante um retorno condizente com o investimento que se está fazendo. A tributação do dividendo diminui o retorno do investidor. Assim, o preço da ação vai cair, porque a ação vai ficar menos atrativa. Uma pessoa que compra uma LCA com determinada expectativa de retorno, se esta começar a ser taxada e pagar imposto de renda, passará a cobrar um juro mais alto para fazer o mesmo investimento. Então, o que acontece no final das contas é que uma parte dessa tributação adicional acaba impactando as taxas de mercado, e a consequência é um pouco mais de juros.

Isso significa que há um impacto tributário no pacote do governo que incide de maneira importante sobre o mercado, e por isso ele reage mal a esse tipo de discussão. Esse efeito independe do timing do assunto e aconteceria de qualquer maneira em outro momento. Em 2021, o então ministro da Economia Paulo Guedes tentou fazer uma reforma muito parecida, propondo tributar dividendos e acabar com o Juros sobre Capital Próprio (JCP). Nos dez dias seguintes à entrega da proposta ao presidente da Câmara, o câmbio se depreciou em quase 30 centavos, que é basicamente a mesma reação que ocorreu no presente episódio. Ou seja, atribui-se o atual movimento do câmbio a risco fiscal, mas há muito mais coisa envolvida. De fato, existe um risco político na tramitação dos projetos, e a isenção pode andar mais rapidamente do que a compensação, que pode sair diluída. Mas isso não é tudo.

O terceiro aspecto é o macroeconômico. A economia está crescendo acima do potencial, o desemprego está caindo, e já existem pressões inflacionárias. Então, o que a economia pede hoje é ajuste fiscal, não mais estímulos. A proposta do governo tributa poupança para financiar o aumento do consumo, desonerando a população de classe média baixa do país. Isso é mais demanda agregada e mais pressão inflacionária à frente. Se o cálculo é de pressão inflacionária mais alta, o mercado antecipará juros mais alto lá na frente.

Existe uma dimensão política nessa reforma que não pode ser ignorada. A classe média baixa, que é beneficiada pela proposta, tem sofrido bastante nos últimos anos com os efeitos da globalização no mercado de trabalho, com a desregulamentação das relações de trabalho e a “uberização” da economia. Para muitos dessa geração, as perspectivas sociais são piores e ninguém sabe muito bem o que fazer quanto a isso. Atualmente, por razões óbvias, é muito mais fácil justificar um benefício público para quem é muito pobre do que para essa classe social. Uma das consequências é a perda de legitimidade dos regimes democráticos e a reviravolta de cânones básicos da política econômica, como a abertura comercial, atualmente posta em xeque nos EUA.

Apesar de a proposta do governo não partir de uma concepção clássica do papel que se pensa para o imposto de renda, o fato é que a proposta tenta atacar esse problema e, se der certo, pode ser que o papel do imposto de renda tenha que ser repensado.

Poderia ter sido diferente? Talvez sim, se tivéssemos uma posição fiscal mais forte, mas esse é um problema que não parece que será resolvido no atual ciclo governamental, que equilibra essa temática com outras prioridades, tais como manter a economia em pleno emprego e ter uma política social mais ativa. O desafio é fazer isso deixando a economia minimamente organizada. O pacote fiscal tentou fazer isso, mas por enquanto sem sucesso.

Este é a Seção Fiscal do Boletim Macro FGV IBRE de dezembro de 2024.


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

 

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