Intensificação do regime de dominância fiscal no Brasil em 2024
Dominância fiscal é fenômeno em espectro contínuo, e não estritamente binário. Nesse espectro, pode-se afirmar que o Brasil frequentemente opera num contexto de dominância fiscal, com variações de intensidade ao longo do tempo.
Em 2024, apesar de uma melhoria na contabilidade primária das contas públicas em relação a 2023 e de um crescimento do PIB superior a 3% pelo quarto ano consecutivo, o real enfrentou alta volatilidade e encerrou o ano com uma desvalorização de 21,82% em relação ao dólar, apresentando o pior desempenho desde 2020. Por sua vez, as taxas de juros futuras indicam uma Selic em ascensão, rumo aos 16%, e as expectativas de inflação estão desancoradas, com o IPCA para 2025 sendo frequentemente revisado para cima, em direção aos 6%.
Em cenários como este, em que as taxas de juros aumentam e o câmbio se deprecia, especialmente com a dívida pública em trajetória crescente – com uma projeção de aumento de 7 pontos percentuais nos próximos dois anos, devendo alcançar 85% do PIB em 2026 —, a discussão sobre dominância fiscal volta a ser relevante.
Dominância fiscal diz respeito à forma de coordenação entre as políticas monetária e fiscal, cujo texto seminal sobre o assunto é de autoria de Sargent & Wallace, 1981. Estes autores demonstram que a autoridade monetária sozinha não pode controlar permanentemente a inflação, a menos que a política fiscal e a monetária sejam coordenadas, com a política monetária dominando a fiscal.
Neste caso, quando há um sistema de coordenação em que a política monetária prevalece sobre a política fiscal, o Banco Central estabelece as taxas de crescimento da base monetária, tanto atuais quanto futuras e determina, portanto, a quantidade de receita com senhoriagem (emissão de moeda) disponível para o governo. Assim, o governo restringe seu déficit nominal ao montante que pode ser financiado por meio do aumento da dívida pública, sinalizando fortemente para o mercado que seus déficit fiscais não mais serão financiados via inflação.
Contudo, quando a forma de coordenação é de dominância fiscal, a política fiscal domina a monetária, de modo que o déficit nominal não pode ser totalmente financiado pela emissão de títulos governamentais, sendo acomodado por maiores receitas com senhoriagem, o que implicará maior taxa de inflação.
Ao realizar uma análise minuciosa das equações do aludido artigo seminal, conclui-se também que, sob a hipótese de dominância fiscal, se a demanda por títulos públicos resultar em uma taxa real de juros superior à taxa real de crescimento econômico, além de a autoridade monetária não conseguir controlar sozinha a inflação, a política monetária apresenta eficácia menor no combate à inflação, o que eleva o custo da desinflação.
Por conseguinte, a dominância fiscal é, em teoria, um fenômeno binário. No entanto, na prática, não é fácil medir com precisão, ao longo do tempo, o grau em que o déficit nominal é acomodado pela senhoriagem. Ainda assim, em contextos de déficits nominais elevados e/ou crescentes, aliados a taxas reais de juros superiores à taxa de crescimento econômico, é razoável inferir a presença de algum nível de dominância fiscal. Dessa forma, na prática, seria mais apropriado tratar a dominância fiscal como um fenômeno que se manifesta em um espectro contínuo, em vez de uma condição estritamente binária.
Nesse espectro, pode-se afirmar que o Brasil frequentemente opera em um contexto de dominância fiscal, com variações em sua intensidade ao longo do tempo. De fato, tanto a literatura quanto os dados sugerem que a dominância fiscal tem prevalecido na economia brasileira, sendo poucos os períodos em que a dominância monetária predominou.
Em outras palavras, no Brasil, o governo define seu orçamento de forma independente da autoridade monetária, anunciando os déficits nominais atuais e futuros. Isso determina a quantidade de receita que será obtida através da venda de títulos públicos — por meio do aumento da dívida — e da senhoriagem. Como resultado, quando os déficits nominais criados pelo governo não podem ser financiados com novos títulos, o Banco Central é obrigado a emitir moeda, aceitando uma inflação adicional.
Essa realidade, a propósito, pode explicar as frequentes críticas à efetividade da política monetária, fazendo com que o Banco Central precise elevar as taxas de juros além do que parece razoável para controlar a inflação. Se houvesse uma melhor compreensão do conceito de dominância fiscal, talvez houvesse menos críticas direcionadas ao Banco Central por essas elevações.
Atualmente, dadas as circunstâncias, com maior dificuldade na colocação de títulos públicos para financiar a dívida e a elevação da taxa real de juros em relação à taxa de crescimento econômico, o grau de dominância fiscal encontra-se mais acentuado.
A adoção de medidas como a criação de um Banco Central com autonomia operacional, formalizada em 2020, e a implementação do teto de gastos em 2016, ou mesmo de um teto de despesa mais flexível, como o estabelecido pelo arcabouço fiscal em 2023, contribuem para mitigar o nível de dominância fiscal.
Entretanto, o arcabouço fiscal perdeu toda a credibilidade devido à alteração das metas de resultado primário em abril de 2024, à tentativa de implantação de várias medidas parafiscais, à falta de medidas de ajuste nas despesas nos primeiros nove meses de 2024 e à apresentação dessas medidas em um grau inferior ao necessário, ao mesmo tempo em que se anunciava um plano populista (do ponto de vista eleitoral, considerando que, em todos os países desenvolvidos, a classe média paga imposto de renda).
Logo, se não forem tomadas medidas para recuperar a credibilidade fiscal, como uma mudança de postura do presidente em relação à austeridade na execução da política fiscal, através da implementação de ajustes sucessivos nas despesas obrigatórias — como uma medida provisória que determine que o salário mínimo terá aumento real somente quando o governo federal voltar a registrar superávit primário — o Brasil continuará se encaminhando para um maior grau de dominância fiscal. Isso pode resultar em uma crise econômica sem precedentes na história republicana, mesmo que tenhamos um Banco Central crível e estejamos melhorando a contabilidade primária das contas públicas.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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