O problema é a política fiscal de muito má qualidade, não é a comunicação
O atual governo parece não achar relevante tomar medidas que impeçam o crescimento de sua dívida bruta, ou do déficit público total, desde que não afetem o resultado primário. Isto é um enorme erro de política macroeconômica.
Autoridades governamentais têm insistentemente passado a mensagem que não há problemas fiscais maiores. No dia 7 de janeiro, o ministro Fernando Haddad repetiu este mantra. Que o problema maior foi a comunicação. Parece que se chegou a um diagnóstico oficial consensual que a comunicação incoerente está no cerne da deterioração dos preços de ativos. Isto incluiria a desvalorização acentuada do real a despeito da enorme intervenção que o Bacen fez em dezembro no mercado à vista. Este fato acabou por forçar o Copom a elevar a taxa Selic em 1% ao ano e prometer mais dois aumentos desta mesma magnitude. Baseado neste diagnóstico, o governo tomou ações “corretivas”. Primeiro, trocou-se o responsável pela comunicação do governo, saindo Paulo Pimenta e entrando Sidônio Palmeira como titular da Secretaria de Comunicação. Segundo, reforçou-se a divulgação dos resultados positivos e dos esforços bem-sucedidos para o efetivo controle das contas públicas. O governo quer passar a mensagem que está agindo e respondendo aos problemas identificados no seu diagnóstico oficial.
Só que não! O diagnóstico não está correto. Não temos um problema de comunicação, o problema é de fundo: a política fiscal está sendo gerida de forma desastrosa. Não adianta afirmarem o contrário. Mais adiante vou mostrar que os fatos são bastante claros e não deixam margem para dúvidas. O que solidificou no governo a ideia de que a comunicação oficial representava o cerne do problema? A meu ver a gota d’água que causou o diagnóstico do governo sobre a comunicação foi o anúncio do pacote de corte de gastos concomitante ao anúncio da elevação do nível de isenção do IR para incríveis 5 mil reais. Nesta visão, o governo anunciaria o pacote de corte de gastos e depois, mais para meados deste ano de 2025, seria divulgada a elevação no nível de isenção do IR. Em outras palavras, não é que as medidas tenham sido incorretamente anunciadas, mas sim que a divulgação deveria ter sido feita de forma homeopática, dando prazo para que o público em geral absorvesse melhor cada um dos lados. No entanto, a essência do problema não é esta, uma vez que no fim das contas já estava decidido que haveria elevação do piso de isenção. Isto é, dizer apenas que a intenção do governo é cortar os gastos não representaria os fatos objetivos, pois a intenção era uma diminuição de despesas antes e um aumento mais adiante. Os resultados líquidos das duas políticas (corte de gastos e elevação do piso de isenção) ainda estão por ser vistos. Contudo, é muitíssimo provável que seja uma elevação de despesas, já que as medidas fiscais restritivas foram atenuadas pelo Congresso e é muito provável que as medidas compensatórias do aumento do piso de isenção de IR não sejam aprovadas em sua integridade.
Já no artigo de setembro para o Broadcast, eu mencionei o risco de pedaladas no arcabouço – medidas que têm impacto fiscal, ou seja, aumentam a DBGG (dívida bruta do governo geral), mas que não alteram o déficit ou superávit primário, nem a dívida líquida do setor público num primeiro instante. Na ocasião eu dei três exemplos que contaram com o de acordo do Ministério da Fazenda. O que estamos observando agora são exatamente medidas que têm esta característica. Vou dar três exemplos novamente que foram noticiados na semana que passou. Primeiro, vimos uma enorme reestruturação das dívidas de estados aprovada no Congresso. Vou voltar a este assunto no terceiro item. Mas, tendo sido aprovada esta medida, no dia 9/1 vimos por reportagem na Folha de SP que “Governo Lula libera R$51 bilhões em novos empréstimos a estados e municípios em 2024”, página A11. Estes empréstimos foram feitos pelo BNDES, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal. Ora, estes não têm impacto primário e além disso, no caso de inadimplência podem vir a ser custo do Tesouro, pois muitos têm garantias da União. Ou seja, a política é emprestar novamente para entes que tiveram dívida renegociada recentemente. Segundo, também no dia 9/1, no jornal Valor Econômico vemos “Governo faz nova ofensiva em construção naval”, página A3. São quase 31 bilhões de reais de créditos selecionados (este montante de projetos selecionados é nominalmente quase o máximo que foi atingido para a indústria naval no governo Dilma). Desses, uma parte de R$5,33 bi já foi aprovada. O governo tenta mais uma vez (a terceira ou quarta tentativa histórica) estimular a construção naval com recursos públicos. Sabemos o que acontece se dá errado: ou a União arca com as perdas, ou tem-se que os emprestadores federais terão este prejuízo, caso a iniciativa não chegue a bom termo (como não chegou em todas as tentativas no passado). De novo, não é uma despesa que impacte o arcabouço, ou o primário hoje, mas que pode ter este efeito no futuro. Terceiro, no dia 10/1, o ministro Fernando Haddad em reportagem no jornal Valor Econômico, página A2, afirma que vetará pontos da renegociação da dívida dos estados que afetem o primário. Aqui reside o problema: quase toda a renegociação impacta o custo da DBGG, mas não impacta o primário nem a dívida líquida. Em diversas ocasiões mencionei que esta renegociação seria muito custosa, e Manoel Pires do FGV IBRE estimou custo de 48 bilhões por ano (na transição poderá no primeiro ano atingir até 62 bilhões). Isto foi divulgado por Luiz Schymura, também do FGV IBRE, em coluna de 3/9/2024 no Valor Econômico. Destes a maior parte não mexe com as contas do arcabouço, nem com o déficit ou superávit primário. Isto faz com que os vetos ao projeto tenham pouco impacto em reduzir o déficit total adicional gerado pela reestruturação. Parece que o Ministério da Fazenda tem a visão que, desde que o primário não se altere, não há problema fiscal. Para se ter ideia, este ano o déficit primário será de 0,4% do PIB, mas o déficit total será de 8,5% do PIB. E este é o que determina em última instância o crescimento da DBGG.
Aqui cabe falar de um número calculado pelo IFI (Instituição Fiscal Independente), no seu RAF (Relatório de Acompanhamento Fiscal) 95, publicado em 19/12/2024. Na seção sobre dívida bruta, o IFI estima a probabilidade de a DGBB/PIB ultrapassar 90% em algum dos anos de 2025 a 2029. Em junho tal probabilidade era 49,6%. Na versão de dezembro (considera o cenário macro de aumento de juros, mas não considera a renegociação de dívidas, o pacote fiscal de dezembro, nem o aumento da faixa de isenção do IR para 5 mil reais por mês) esta probabilidade passa a incríveis 82,9%!
O governo parece não achar relevante tomar medidas que impeçam o crescimento de sua dívida bruta, ou do déficit total, desde que não afetem o primário. Isto é um enorme erro de política macroeconômica. Já vimos os efeitos das pedaladas da Dilma antes. Os números da IFI mostram o impacto do descontrole fiscal na dívida bruta – chegando em níveis perigosamente altos com alta probabilidade, sem perspectiva clara de redução. O problema do governo não é de comunicação, mas sim de fundamentos econômicos péssimos. Há tempo para corrigir o rumo (cada vez menos), mas para tanto é preciso que o diagnóstico para o problema seja correto.
Agradeço a ajuda de Manoel Pires do FGV IBRE, que esclareceu suas estimativas para a renegociação de dívidas estaduais e pontos sobre o primário e o déficit total. Obviamente, as conclusões do artigo são somente de minha responsabilidade.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
Este artigo foi publicado originalmente pelo Broadcast da Agência Estado, em 14/01/2025, terça-feira.
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