Inovações tecnológicas aplicadas ao transporte. Regulação para quem?
Muito se fala da revolução tecnológica em curso no mundo. O World Economic Forum (2016)[1] prevê que estamos diante do início de uma revolução que está mudando a forma como vivemos, trabalhamos e nos relacionamos. Os autores do documento denominam o conjunto de mudanças tecnológicas de Quarta Revolução Industrial. Dentre os avanços previstos, dois deles estão no centro de dois importantes debates legislativos relacionados à mobilidade urbana: a digitalização aplicada ao mercado de táxis e a automação aplicada aos serviços de cobrança embarcada nos ônibus.
Diferentemente de outros momentos no passado, quando as inovações na mobilidade eram promovidas por alterações nas tecnologias dos veículos ou das infraestruturas, neste momento as fontes da transformação são as novas tendências sociais e avanços digitais, especialmente na área de tecnologia da informação e comunicação (TIC) e automação. O desenvolvimento das novas tecnologias está cada vez mais distribuído e descentralizado entre as empresas e países. Hoje em dia uma startup que ainda não foi criada pode se tornar nos próximos anos uma das maiores empresas do mundo e oferecer um serviço em escala mundial, sem nem mesmo possuir bens para tal. São exemplos o Airbnb, que oferece hospedagem em escala mundial sem possuir imóveis, ou o Uber, que oferece serviço de transporte sem possuir veículos. Em ambos os casos as empresas têm menos de dez anos e já são líderes mundiais em seus segmentos.
O modelo de negócios dessas empresas funciona a partir da autorregulação entre os próprios participantes. Os usuários e prestadores do serviço se avaliam mutuamente, e essas avaliações se tornam visíveis para os demais participantes do mercado. Nesse modelo, o mau prestador ou usuário será expurgado do mercado pelo próprio mercado, sem necessidade de processos administrativos e judiciais. Já nos modelos de negócios tradicionais, no caso do setor de transporte, o governo é o ente responsável pela especificação de qualidade do serviço e pelas condições de entrada e saída do mercado por meio de processos burocráticos. Outra vantagem é que passa a existir mais de uma “empresa reguladora”. Se o usuário ou prestador do serviço não concordam com as regras estabelecidas, podem trocar de empresa. Essa opção não é possível quando o Estado é o monopolista da regulação.
Os usuários dos serviços de aplicativos argumentam que, em muitos aspectos, a avaliação do governo é menos eficaz que a do usuário, como em qualidade do atendimento, da direção e da conservação do veículo. Nesses casos, o modelo de autorregulação proposto pelos aplicativos é mais eficiente. Porém a autorregulação é falha para analisar aspectos que não são visíveis para os usuários, como a manutenção preventiva, conservação dos pneus ou atestado de capacidade de dirigir do motorista, por exemplo. Entretanto, esses casos já são objeto de fiscalização regular que todos os motoristas e donos de veículos devem atender. Ou seja, a necessidade de interferências do governo nesse mercado parece ser menos necessária.
Nesse ambiente cria-se um espaço favorável para mudanças importantes no campo institucional, também no sentido da descentralização. Enquanto a regulação tradicional é centralizada nos governos, as novas tendências apontam para regras, normas e ações definidas por outras entidades, privadas e/ou internacionais. Esses são os casos dos aplicativos de transporte, que definem suas próprias regras de preços e condições de acesso.
Observando o rápido crescimento desses novos mercados em todo mundo, fica claro que os participantes avaliam o serviço satisfatório. Portanto, diante das manifestações recentes dos poderes legislativos, a reflexão que devemos fazer é: a regulação proposta nos projetos de lei é para quem? Com qual objetivo? Em vez de propor a regulação tradicional para os novos serviços (regular representa um custo para o setor público), não seria mais interessante, alternativamente, buscar aplicar os novos modelos de regulação para os serviços tradicionais?
Os debates sobre os serviços de aplicativos deveriam estar voltados para outros desafios que se colocam para as cidades. Um deles é como as empresas vão contribuir para a manutenção da infraestrutura (nesse caso as vias públicas). Pensando nisso, São Paulo criou uma taxa incidente sobre o serviço de aplicativos. Outro problema que merece reflexão é o êxodo de passageiros dos sistemas de transporte público coletivo para o privado. Esse movimento pode gerar externalidades negativas, como aumento da tarifa devido ao menor número de passageiros no sistema, aumento do congestionamento e da poluição
Os argumentos que norteiam o debate sobre os aplicativos se repete na polêmica da necessidade dos cobradores no serviço de ônibus urbano. Com o advento de sistemas de bilhetagem eletrônica e avanço nas tecnologias de meios de pagamento, as transações em dinheiro nos ônibus são cada vez menos comuns. Outros modos de transporte, como metrô, trens urbanos, VLTs e até mesmo BRTs já operam sem transações dentro de veículos. As cidades brasileiras que já operam sem transações em dinheiro conseguiram diminuir significativamente os crimes no sistema de transporte.
Os defensores da manutenção do cobrador argumentam que muitos empregos serão perdidos com a mudança. Os contra-argumentos salientam que cerca de 20% do custo da passagem é relativo ao pagamento dessa categoria; ou seja, se por um lado haveria a perda de empregos, por outro os usuários de transporte público teriam acesso a uma tarifa mais baixa, que, por sua vez, poderia atrair mais passageiros para o sistema, reduzindo ainda mais a tarifa, além de movimentar a economia e criar novas oportunidades de emprego. Talvez os dois lados tenham razão e o poder público deva elaborar um plano de transição profissional para essa categoria.
Outras categorias profissionais têm sofrido com os efeitos da automação. Um exemplo é o serviço de caixa de banco. Hoje em dia os clientes de bancos realizam suas operações bancárias utilizando seu computador pessoal ou celular. Como resultado, os bancos estão diminuindo o número de agências e, consequentemente, o número de bancários. Estudo da Universidade de Oxford [2] projeta que profissões como operador de telemarketing, motorista de táxi, caixa, entre outras, desaparecerão nos próximos anos como resultado da automação. A substituição de tais profissionais é inevitável, sendo impossível a aplicação de medidas legislativas que garantam a continuidade de todas estas ocupações. Portanto, é evidente que a automação é uma tendência irreversível que começou na primeira revolução industrial, no século XVIII, e que tende a se acentuar nas próximas décadas.
Os avanços tecnológicos e as novas tendências sociais prometem mudar significativamente o mundo em que vivemos. Nesse contexto, existem vários novos desafios ligados ao transporte que a regulação deve considerar. Serão necessárias políticas regulatórias que tratem as inovações em curso não como hostis, mas como mecanismos que podem gerar muitos benefícios para a mobilidade urbana das cidades e melhorias na qualidade de vida da população. Se não é possível interromper o avanço tecnológico, una-se a ele.
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