Problemas e avanços do gasto tributário no Brasil, e uma sugestão de agenda

Brasil precisa de uma lei de regulamentação geral de GTs (incluindo todos os níveis da Federação), com a definição de órgão gestor desse tipo de política pública e com o objetivo de que haja integração com o orçamento público.
Os gastos tributários (GTs) no Brasil atingiram 6,9% do PIB em 2024, incluindo as esferas federal e estadual. Essa é uma área em que o País fez alguns avanços em termos de transparência, mas muito pouco na governança. Tanto do ponto de vista fiscal quanto da qualidade das políticas públicas, é preciso uma nova agenda para os GTs no Brasil, tema que será tratado em detalhe nesta Carta.
GTs são políticas de incentivo fiscal aplicadas em favor de determinados grupos, sejam setores, empresas ou pessoas, e realizadas por meio do sistema tributário. No GT, o instrumento é a renúncia fiscal, e não o gasto público. Nem toda renúncia fiscal ou perda de arrecadação é considerada GT, já que pode não se tratar de uma política pública visando beneficiar um grupo específico.
Por exemplo, a redução de IOF, um imposto regulatório, e a isenção de IR sobre dividendos não são GTs, pois não discriminam beneficiários. Já o Simples, que beneficia pequenas empresas, ou a Zona Franca de Manaus (ZFM), que dá tratamento diferenciado às empresas da região, são exemplos de GTs.
Para caracterizar que determinada renúncia fiscal discrimina a favor de determinado grupo – e, portanto, que se trata de um GT – é preciso ter um sistema tributário de referência, em relação ao qual a vantagem aparece.
Os GTs têm problemas bem conhecidos como alternativa de política pública no Brasil e no mundo. Um deles é a opacidade, isto é, a falta de transparência, quando comparados com as políticas públicas convencionais cujo custo aparece no Orçamento de despesas (sempre muito detalhado), e na etapa seguinte, têm a visibilidade da execução efetiva do gasto. No caso do GT, o dinheiro nem sequer entra no orçamento. Assim, é um tipo de política pública mais difícil de monitorar e avaliar.
Um problema adicional é a fragmentação do orçamento público, o qual, ao não incorporar muitas políticas públicas que efetivamente existem (como os GTs), perde legitimidade política. Outro aspecto dessa fragmentação é a dificuldade de integrar as políticas públicas como um todo. Como operam de formas muito diferentes, o mais comum (e não só no Brasil) é que as políticas públicas via gasto não “conversem” com os GTs, levando por vezes ao acúmulo de diferentes tipos de benefício para um mesmo setor, e de forma opaca. Isso, por sua vez, facilita o trabalho dos lobbies em busca de vantagens frequentemente injustificáveis.
Finalmente, por conta da opacidade e da fragmentação do orçamento público, existe uma tendência à irreversibilidade das políticas – em especial dos GTs, já que é mais fácil avaliar e reverter uma política feita por meio de gasto público do que uma por meio de renúncia tributária. Em resumo, cria-se uma tendência a políticas públicas mais ineficientes e de baixo retorno social (ou de retorno desconhecido).
Manoel Pires e Giosvaldo Teixeira Júnior, pesquisadores associados do FGV IBRE (Pires coordena o Centro de Política Fiscal e Orçamento Público do FGV IBRE), fizeram parte do grupo de pesquisadores de um “country report” sobre GT no Brasil. Trata-se de pesquisa encomendada pelo Council of Economic Policy (CEP), instituição suíça, para incluir o Brasil em seu ranking de transparência de GTs.
O relatório avaliou questões como transparência, mensuração, avaliação, governança, facilidade de acesso e disponibilidade dos dados. Os autores do country report também fizeram contribuições adicionais ao objetivo inicial do CEP, levantando de forma pioneira os GTs dos governos estaduais no Brasil desde 2002. Para realizar essa tarefa, Giosvaldo teve que descer às minúcias de todas as LDOs de 2002 a 2024 de todos os Estados brasileiros, além de incontáveis normativos.
Os GTs no Brasil, incluindo governo federal e Estados, aumentaram de 2,3% do PIB em 2002 para 6,9% do PIB em 2024. A parcela federal saiu de 1,3% para 4,9%, e a estadual, de 1% para 2,4%, de 2002 a 2024. Pires ressalta, porém, que a elevação do GT estadual nesse período não é necessariamente crescimento de renúncia fiscal, mas também melhoria da metodologia de estimação. Ele observa que, no início da série, vários Estados simplesmente não tinham números, e a conta não os incluía. Já nos anos finais, todos os Estados relatam seus dados. Por outro lado, as medidas do GT federal ao longo do tempo, divulgadas regularmente pela Receita Federal, são comparáveis.
Os pesquisadores do FGV IBRE apontam que o grande aumento do GT no Brasil ao longo dos últimos 20 anos deveu-se, em parte, ao salto durante o boom de commodities da primeira década deste século, quando a situação fiscal ficou mais confortável. Adicionalmente, o aumento da carga tributária em marcha forçada entre o final dos anos 1990 e meados dos anos 2000 (da ordem de 6 pontos percentuais do PIB), para restaurar a solvência fiscal, deixou o sistema tributário muito distorcido. Assim, a subida do GT como proporção do PIB também foi, até certo ponto, uma forma de compensar empresas e setores que sofreram mais com a elevação prévia de carga tributária.
De qualquer forma, segundo os dados do site Global Tax Expenditures Transparency Index (GTETI), uma iniciativa do CEP e do German Institute of Development and Sustainability, (IDOS), o Brasil não desponta como um país com nível particularmente elevado de GT. Incluindo só o nível federal, e para o ano de 2022, o GTETI aponta 3,7% do PIB de GT no Brasil. Os Estados Unidos, por exemplo, têm 5,75% do PIB e a Rússia, uma recordista, registra 14,83% do PIB. A Austrália tem 7,53% do PIB. Mesmo considerando o nível de quase 7% do PIB do GT brasileiro mencionado anteriormente – a soma do dado oficial para o governo federal com o do country report do CEP para os governos estaduais –, não se chega a nível discrepante no cenário internacional.
Em termos qualitativos, o Brasil se sai bem na comparação internacional do GTETI em transparência do GT, ficando em sétimo lugar entre 105 países avaliados pelo CEP. A nota brasileira foi de 65,3, de um total máximo de 100. A Coreia do Sul, a primeira colocada do ranking, ficou com 76,1. Pires nota que as notas em geral para a transparência do GT no mundo são baixas, com o Brasil, sétimo colocado, mais próximo da metade da pontuação máxima do que dos 100 pontos. “Estamos muito bem colocados, em termos relativos, num tema em que todo mundo vai meio mal”, ele diz.
O índice de transparência do GT é composto por cinco subíndices, e aquele em que o Brasil vai melhor é a disponibilidade pública de dados, em que pontua 15,3 de um máximo de 20. Em termos de arcabouço institucional, o Brasil registra 12,6/20, nota parecida com a de metodologia (12,8/20). Em transparência da metodologia dos dados, a nota sobe para 15/20. E, finalmente, o Brasil vai particularmente mal em “assessment”, uma categoria que inclui aspectos de governança e avaliações transparentes dos GTs. Nesse quesito, a nota brasileira é de apenas 9,6/20. Segundo Pires, essa categoria é aquela em que os países em geral têm as piores notas. Na sua visão, “o Brasil vai bem nas questões de transparência ‘stricto sensu’, mas em tópicos mais abrangentes, vai pior”.
No country report do Brasil, seus autores constataram que há uma discrepância muito grande entre o que acontece no nível nacional, em que o patamar de transparência é bastante bom, e no nível estadual, em que cai bastante. A mesma assimetria ocorre em relação à governança, embora aí também no nível federal haja evidentes fragilidades. De qualquer forma, avançou-se nos últimos anos na consciência sobre a necessidade de controlar melhor os GTs em expansão, com aprovação de vários normativos com esse propósito.
Em termos federais, o GT no Brasil é transparente e existe estabilidade metodológica na sua mensuração (há dados federais desde o início dos anos 1990). Também está em curso um processo gradual de se tentar uma gestão melhor dos GTs federais. Algumas normas recentes foram aprovadas com o objetivo de reforçar o controle e a transparência.
A DIRBI (Declaração de Incentivos, Renúncias, Benefícios e Imunidades de Natureza Tributária), introduzida no ano passado, obriga as empresas a informarem regularmente os GTs dos quais se beneficiam. O mecanismo pode ser bastante útil para reduzir GTs desnecessários e injustificáveis, justamente por revelar situações por vezes absurdas.
No caso do PERSE (Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos), há empresas beneficiadas que nada têm a ver com esse setor, como plataformas de entrega de comida. O benefício fiscal para o setor de eventos, criado por motivos óbvios na pandemia, continuou por um longo período após o fim da emergência sanitária e das quarentenas que justificaram sua criação. O PERSE finalmente será descontinuado este ano, tendo gastado anualmente cerca de três vezes mais do que as estimativas do setor de eventos e da própria Receita Federal. Já nas LCAs, títulos incentivados para o setor agrícola, chegou a haver cadeia de fast food se beneficiando. Um dispositivo como a DIRBI joga um foco de luz nos reais valores e nas distorções dos GTs, mostrando que o potencial de prejuízo (financeiro e de bem-estar) dessas políticas pode ser muito maior que o imaginado.
Outros avanços recentes na tentativa de controle e melhor gestão dos GTs foram o teto de renúncias fiscais, implantado na gestão de Paulo Guedes no Ministério da Economia, e a própria reforma tributária, cuja relevância para esse tema será tratada de forma mais detalhada na parte final desta Carta. Há ainda um processo embrionário de produzir uma revisão da qualidade dos GTs, com o CMAP (Conselho de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas, do Ministério do Planejamento) tendo produzido alguns estudos, de qualidade variável.
Segundo Pires, “independentemente de se avaliar pouco ou muito, e da qualidade da avaliação, é sempre um desafio transformar a avaliação em decisões de política”. Ele nota que o esforço de levantamento global dos GTs do CEP indica que as dificuldades políticas para que as avaliações desaguem em efetivas revisões de políticas públicas é mundial, não apenas do Brasil.
Para o pesquisador, também merece atenção no Brasil o fato de que muitas renúncias produzem custo fiscal, mas não são consideradas GTs, o que reduz a transparência dos incentivos fiscais. Independentemente da questão metodológica, esse é um tema, para Pires, que deveria constar em algum normativo da Receita e ter certo nível de transparência. Lucros e dividendos, o regime de lucro presumido e o Repetro (regime aduaneiro especial com isenções tributárias para equipamentos de pesquisa e lavra de petróleo e gás natural) são exemplos vultosos dessas renúncias que não são consideradas GTs, mas que possuem um custo.
Outra questão é que, apesar de avanços no controle dos GTs, o esforço principal se dá em termos de redução do impacto fiscal dessas renúncias. Mas não se identifica nenhuma melhoria na governança do GT, nem nenhum esforço de integrar a renúncia fiscal no orçamento público. Algo que permitiria medir, por exemplo, quais os benefícios totais, de diferentes naturezas, para os diversos setores econômicos. “Nunca se sabe quanto custa a política pública de fato; foca-se sem muito sucesso no controle, mas não em melhoria”, assinala Pires.
O panorama dos GTs estaduais no Brasil, como já mencionado, é pior que o dos GTs federais. Entre os Estados, a aplicação dos critérios de renúncia fiscal é bastante heterogênea, com classificações muito diferentes entre eles. Mas mesmo em um único ente da Federação, os montantes de GT ao longo do tempo também costumam não ser comparáveis, por causa de muitas mudanças metodológicas. “Essa heterogeneidade faz com que estimativas estaduais de renúncia fiscal sejam muito pouco confiáveis, praticamente inúteis”, aponta Pires.
Mas também há avanços no âmbito estadual, como recente levantamento de GTs pela Fenafisco (Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital) e a própria série do GT estadual consolidado produzida pelo country report em cuja confecção participaram os pesquisadores do FGV IBRE citados nesta Carta. Pires acrescenta que, durante a crise de 2015-16, alguns Estados avançaram no tema: Rio Grande do Sul e Espírito Santo melhoraram bastante a governança, o monitoramento e a mensuração dos GTs. Mesmo assim, no panorama dos Estados como um todo, os procedimentos ainda possuem muitas fragilidades, o monitoramento é precário e os sistemas de governança e avaliação são praticamente inexistentes.
A agenda
Os pesquisadores do FGV IBRE que participaram do country report sobre GT no Brasil recomendam que o País consolide, em relação ao tema, as boas práticas internacionais a partir dos relatórios sobre os países mais bem ranqueados. É preciso também avançar na avaliação subnacional, e há um calendário de reuniões dos pesquisadores com algumas Secretarias de Fazenda estaduais para levantar o estágio atual do processo normativo de concessões de GTs. O objetivo é estudar as metodologias de estimação de renúncias, construir bases de dados mais confiáveis e avaliar o controle normativo dessas renúncias fiscais.
Mas há também uma ideia mais ambiciosa por detrás de todo esse trabalho: uma lei de regulamentação geral sobre GTs (incluindo todos os níveis da Federação), com a definição de órgão gestor desse tipo de política pública e com o objetivo de que haja integração com o orçamento público. “A ideia é uniformizar conceitualmente o assunto no País”, diz Pires. Isso permitiria unificar e aprimorar a metodologia de estimação em todo o Brasil, permitindo levantar com maior precisão o real custo fiscal dessas políticas, e comparar o que é feito na União e em cada Estado.
O pesquisador observa que as políticas públicas têm leis gerais e órgãos gestores, seja na Saúde, Educação ou até em programas de transferência como o Bolsa-Família. Porém, nada de parecido ocorre com a política de GTs, “que não têm dono” na arquitetura da gestão do Estado. O máximo a que se chega é que, uma vez que um GT é aprovado na União ou em algum Estado, cabe à Receita Federal (no primeiro caso) ou à respectiva Receita estadual fiscalizar o uso adequado do benefício. Não há um órgão central encarregado de coordenar, monitorar, avaliar e propor aprimoramentos na teia algo caótica dos GTs no País.
A integração dos GTs no orçamento público é importante para que se mapeie adequadamente os diferentes benefícios que são canalizados para os diversos setores. Alguns desses setores, como o caso bem evidente da agropecuária, são beneficiados por subsídios creditícios, renúncias tributárias e proteção tarifária. A criação de um órgão de gestão dos GTs permitiria harmonizar esse instrumento de política pública com outros tipos de incentivo, de forma a racionalizar o apoio estatal a setores econômicos e maximizar o ganho de bem-estar derivado desse tipo de intervenção. E, naturalmente, a racionalização do orçamento público facilitaria encontrar fontes de economia fiscal, na forma de redução de gastos ou de renúncias.
Outra utilidade de uma lei geral dos GTs seria dar aos órgãos de fiscalização um instrumento para poder fazer a fiscalização das renúncias tributárias. Hoje, eles não fazem justamente porque não têm nenhuma lei em que se apoiar.
Pires e seus colegas pensam que o GT no Brasil precisa passar por um processo de normatização semelhante àquele a que foram submetidas as finanças públicas com a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) há cerca de duas décadas e meia. Em síntese, a regulamentação dos GTs uniformizaria conceitos e metodologias (incluindo as relativas à estimação de impacto), normatizaria o funcionamento dessas políticas, criaria um órgão gestor e integraria os GTs no orçamento público. Dessa forma, seria possível tanto facilitar o ajuste fiscal como melhorar as políticas públicas, com ganho de bem-estar.
Pires indica ainda que, no atual contexto de alta polarização política e de antecipação da campanha eleitoral, “é mais fácil avançar nesses temas que trazem melhorias de longo prazo, e que não acirram muito o conflito distributivo, do que apenas focar em medidas de curto prazo de corte de gastos e aumento de impostos”.
Reforma tributária
Bráulio Borges, pesquisador do FGV IBRE e participante ativo do Centro de Política Fiscal e Orçamento Público, observa que a reforma tributária do consumo, aprovada em 2023 e em processo de regulamentação, já é um grande passo na direção de melhorar a governança dos GTs no Brasil. A reforma acaba com os regimes especiais de quatro tributos (PIS, Cofins, ICMS e ISS), e reduz bastante os de um quinto, o IPI. As renúncias tributárias do IPI só não são integralmente extintas pela preservação, no âmbito da reforma tributária, da ZFM.
Nas contas de Borges, o fim dos GTs ligados a esses tributos (que serão substituídos em seu conjunto pelo IBS e pela CBS) deve reduzir a conta total dos GTs no Brasil em 3,5% do PIB, o que significa cortá-los pela metade. Essa economia em GTs da reforma tributária, explica o pesquisador, será utilizada para diminuir a alíquota de referência do IVA brasileiro (a soma do IBS e CBS), que, dessa forma, pode ficar em torno de 27-28%. Sem o fim dos regimes especiais, provavelmente a alíquota de referência superaria com folga os 30%.
Notando que “já está encomendada uma redução relevante do gasto tributário por meio da reforma”, Borges acrescenta mais alguns fatores de aumento e de redução dos GTs à frente. O primeiro é um programa aprovado em 2024 de estímulo à indústria de hidrogênio verde no Brasil, planejado para envolver renúncia de receita de R$ 18 bilhões entre 2028 e 2032. Pelo lado da redução, há o fim do PERSE, uma renúncia anual de cerca de R$ 15 bilhões. O programa está sendo encerrado agora, com custo total de R$ 3-4 bilhões em 2025. Finalmente, há o fim gradual da desoneração da folha de setores econômicos e das prefeituras, que também reduzirá GTs se não for mais uma vez adiado pelo Congresso. A soma da economia em GTs do fim do PERSE e da desoneração é da ordem de R$ 45 bilhões por ano, segundo Borges. Neste ano, já ocorrerá uma queda dessas renúncias para cerca R$ 30 bilhões, sendo que a conta é zerada em 2027-28.
Esta é a Carta do IBRE de abril de 2025, da Conjuntura Econômica.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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