Uma troca de ideias sobre o congelamento real do salário mínimo

Este post reproduz uma troca de ideias sobre salário mínimo e política pública. A discussão, por e-mail, se deu recentemente entre o filósofo Renato Janine Ribeiro, ex-ministro da Educação, e o economista Samuel Pessôa.
O ex-ministro da Educação e professor de filosofia da USP, Renato Janine Ribeiro, gentilmente trocou mensagens com Samuel Pessôa sobre discordâncias em relação a uma coluna publicada pelo economista na Folha de São Paulo. A coluna defendia a necessidade de congelar o valor real do salário mínimo por alguns anos. Segue a conversa entre os dois. O entendimento de Janine Ribeiro e Pessôa é de que o público pode se beneficiar dessa troca de ideias. Pessôa faz questão de registrar seu agradecimento a Janine Ribeiro, pela generosidade dos comentários e a paciência. A seguir, a troca de ideias, com as mensagens de Janine Ribeiro em grifo, para dar mais clareza.
Prezado Samuel
Eu gostaria de tratar de um assunto: seu artigo defendendo o arrocho — vamos chamar assim — do salário mínimo, isto é, a ideia de que ele não tenha aumentos reais.
Eu entendo seus argumentos, mas acho que falta, pelo menos, um argumento muito forte: o Brasil é um país injusto — e o é, em grande parte, pela falta de remuneração condigna aos mais pobres, o que inclui também aqueles que são objeto da crítica quanto aos reajustes e aumentos reais.
O salário mínimo incide sobre uma parcela vulnerável da população e representa uma despesa dos cofres públicos, mas é, sobretudo, um instrumento de justiça social.
Essa situação é injusta — e você sabe disso. Você concorda com isso!
Acredito que o ponto de partida não deveria ser: “vamos arrochar o salário mínimo”, mas sim: como viabilizar um aumento salarial decente para todos.
Até porque, se não fizermos isso, continuaremos presos ao passado. E a prioridade absoluta para o Brasil superar seu atraso é a justiça social.
Isso significa que não devemos considerar apenas as contas e os valores disponíveis hoje, mas pensar como obter os recursos necessários.
E me parece que não há alternativa a isso que não passe, em primeiro lugar, por uma tributação justa — essencialmente, por uma progressividade real sobre rendas e patrimônios dos mais ricos.
Em segundo lugar, seria necessário promover o corte das despesas inúteis e obscenas que ainda pesam sobre os cofres públicos — em especial aquelas ligadas às emendas parlamentares.
Por isso penso que você perde o foco ao propor cortar o aumento real necessário para os mais vulneráveis, em vez de defender aquilo que é essencial: cobrar mais dos mais ricos.
Aliás, se você enfatizasse a importância ética — e mesmo pragmática — de uma tributação justa sobre os mais ricos, isso seria muito melhor do que a proposta que faz, ainda que ela receba o aplauso da grande mídia e do empresariado. Até porque o público de vocês está justamente entre os mais ricos.
Um abraço.
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Olá Renato, superobrigado pelos seus questionamentos. Começando pelo fim de sua mensagem, o tema de elevação da progressividade dos impostos foi tratado em inúmeras colunas minhas. É tema difícil. Vejamos se a atual proposta de Haddad prospera.
Vamos agora à primeira parte. Por que proponho arrocho salarial? Tive dificuldade de pensar nessa questão pois sua observação está, se tomada ao pé da letra, errada. Em nenhum momento propus reduzir o valor real do SM. Assim, em um primeiro momento não entendi o que você quis dizer. Para lhe entender eu tive que imaginar o seguinte (veja se imaginei corretamente): “Renato considera duas trajetórias de políticas públicas. A primeira em que o SM cresce em termos reais. E outra, defendida por mim, em que por alguns anos o SM fica constante em termos reais. Renato aplica o adjetivo arrocho para a segunda trajetória hipotética em comparação com a primeira”. Ok, acho que foi isso que você quis dizer quando afirmou que defendi um arrocho dos salários. Ou seja, você considera que é possível um equilíbrio sustentável com aumentos reais do SM nos próximos anos.
Eu discordo de você. Minha avaliação é que, nas atuais circunstâncias, se não congelarmos o valor real do mínimo por alguns anos, caminharemos para uma crise que gerará efeitos ainda piores aos mais pobres. A tributação dos mais ricos resolve em parte: ela melhora a dinâmica da dívida pública e, com isso, reduz o risco. Mas a tributação sobre os ricos não reduz o consumo dos ricos: eles podem reduzir a taxa de poupança ou mesmo usar seus recursos financeiros. Assim, uma redistribuição dos ricos aos pobres necessariamente aumenta a taxa de consumo da economia, que já é excessivamente elevada. A consequência é congelarmos um equilíbrio com juros elevados e inflação pressionada. A dívida continuará a crescer, os juros e inflação continuarão pressionados, as exportações líquidas continuarão a cair, os salários continuarão a crescer além da produtividade do trabalho e a rentabilidade do setor privado irá cair.
Em algum momento o dólar dispara, o investimento despenca, a recessão chega e os trabalhadores pagarão um preço elevado. Ou seja, segundo minha avaliação, a restrição de recursos da economia impede que a sua trajetória seja possível. Talvez esteja errado. Talvez haja outra solução e eu não a enxergue. Lula terá mais quatro anos para tentar. Vamos ver o que seus economistas irão sugerir.
Adicionalmente, em 2026 o PT terá governado o país em 73% do tempo dos últimos 24 anos. Neste período não conseguimos avançar na redução dos juros: com o petismo no poder a inflação fica permanentemente pressionada e os juros elevados. Seria muito importante que houvesse uma reflexão no partido dos motivos dos juros serem elevados no Brasil, apesar da pressão inflacionária permanente, e que os economistas do partido desenhassem um programa para que houvesse a redução dos juros. Eles não têm sido bem-sucedidos e da forma como as coisas se encaminham estamos construindo as condições para uma crise econômica em 27. Oxalá eu esteja errado.
Abraço
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Samuel,
De fato, tecnicamente, você tem razão: “arrocho” se refere a cortes nos valores reais. No entanto, o que eu quis dizer — e creio ter deixado claro em outras partes — é o seguinte: a remuneração atual dos mais pobres no Brasil é absolutamente insuficiente para garantir uma vida com dignidade mínima.
Dessa forma, qualquer oposição a um aumento real e constante desses valores acaba, inevitavelmente, assumindo um traço de certa crueldade com a possível maioria de nossa população.
Também quero deixar claro que tenho absoluta confiança na sua honestidade, na sua decência e, inclusive, na sua preocupação com as pautas sociais. Você é uma pessoa digna, de quem gosto muito. O que me choca é que você, que certamente reconhece a necessidade de melhorar a distribuição de renda no país, defenda uma pauta que poderia ser perfeitamente resolvida por meio de uma reforma tributária que nos colocasse (que nos coloque) a par do que é realizado nas grandes sociedades capitalistas.
É basicamente isso.
Um abraço.
Renato
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Renato, super legal. Nossas divergências estão bem claras. Você avalia que tem uma bala de prata para resolver nossos problemas: “poderia ser perfeitamente resolvida por meio de uma reforma tributária”. Eu discordo de você. Vejo duas dificuldades com a sua argumentação. Primeira: as forças políticas que eu apoio perderam as seis últimas eleições presidenciais. Já aquela que você apoia ganhou cinco das últimas seis. Os governos de esquerda deveriam ter avançado. Há algo aqui.
Segundo motivo: os estudos que eu conheço dos impactos de uma reforma tributária com elevação da progressividade dos impostos sobre a renda geram ganhos relativamente pequenos de receita. Conheço o capítulo assinado por Laura Carvalho, Rodrigo Orair e Theo Ribas Palomo (capítulo 12) no livro Reconstrução. Se nós tivermos uma estrutura tributária como a média da OCDE, política que defendi publicamente, a arrecadação crescerá, com algum otimismo, 2 pontos percentuais do PIB. Alguns anos de política de valorização do mínimo e esse ganho se esvai. Os dois autores - Laura Carvalho e Rodrigo Orair — são pessoas de esquerda. Você conhece algum estudo que aponte ganhos maiores de receita pública com uma bem-vinda reforma tributária que eleve a progressividade dos impostos de renda? Gostaria muito de ver.
Além desses dois – grande hegemonia de esquerda nos últimos 23 anos com pequenos avanços nesta seara (progressividade tributária), e, adicionalmente, os pequenos ganhos de arrecadação com os estudos que conheço que simulam o que podemos esperar de uma reforma tributária com vistas a elevar a progressividade dos impostos de renda –, há um terceiro tema: se houver ganhos de arrecadação fruto de aumentos da progressividade e se esses ganhos forem gastos transferindo aos mais pobres por meio de elevação do valor real do mínimo, não haverá elevação da taxa de poupança pública, e, portanto, continuaremos na armadilha da pressão inflacionária e dos juros elevados.
Abração,
Samuel
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Samuel, é evidente que você fala como economista. Eu, por outro lado, não sou economista, não li o livro da Laura Carvalho, porque falo a partir do meu campo de reflexão: a teoria política, a filosofia política.
O que posso afirmar é o seguinte: desde Tocqueville — ou talvez até desde Thomas Hobbes, que acredito conhecer bem — está claro que há uma demanda crescente, por parte dos mais pobres, por uma vida melhor. Essa demanda só tende a aumentar. Eu mesmo escrevi um artigo chamado "Inveja do tênis" no qual trato do papel da sociedade de consumo em alimentar o desejo dos mais pobres. A publicidade distribui um fascínio pelo estilo de vida dos mais ricos, e assim os pobres passam a desejar, com intensidade crescente, acesso a bens e condições que lhes são negados.
Diante disso, se não se dão as condições para que os mais pobres melhorem de vida — e não estou falando em apenas manter o nível de vida atual, mas em efetivamente melhorá-lo — o risco de uma explosão social se agrava.
Essa explosão pode seguir duas vias básicas. A primeira é a revolução, hoje extremamente improvável: a direita conseguiu inviabilizar qualquer ideia de mudança radical da ordem social. A segunda via é individual: a saída pelo crime. Aqui há dois caminhos também. Um deles é o do criminoso que entra na política, como vimos na última eleição — que desagrega os laços sociais enquanto se promove com discursos de autoajuda. O outro é o caminho do crime comum, não por acaso em crescimento constante
Na ausência de uma política clara e contínua de melhora das condições de vida dos mais pobres, teremos — mais cedo ou mais tarde — uma explosão.
Não sendo economista, não posso calcular o efeito exato de uma reforma tributária sobre uma alíquota específica do imposto de renda. Essa não é a minha praia. Mas posso afirmar, com base na história política do Brasil, que estamos há 500 anos recusando sistematicamente qualquer esforço real de inclusão e justiça social. E essa é uma bomba-relógio.
Prezado Renato:
Concordo com seus pontos. Zero dificuldade aqui. Se você estiver certo, isto é, a menos que haja ganhos reais persistentes do SM não haverá paz social, e seu eu estiver certo, isto é, se não for possível construirmos um regime de política macroeconômica estável com a manutenção da política de valorização do SM, a conclusão é que o mínimo necessário para conseguir a paz social não é possível de ser entregue pela economia. O resultado é que continuaremos atolados nos juros elevados e estagnados. As políticas de esquerda — como, por exemplo, manter a política de valorização do mínimo sem haver orçamento para tal — poderão gerar algum alívio temporário, até a próxima crise econômica (2027 está a caminho). A desorganização macroeconômica promovida pela crise produz uma grande frustração e a minha turma — os economistas liberais — é chamada para dar uma arrumada na casa. No primeiro alivio, as demandas por paz social sobrevêm e iniciamos um novo ciclo de desorganização. E assim continuamos atolados na armadilha da renda média. Acho que essa é a conclusão de nossa conversa, que me parece superprodutiva. Agradeço sua paciência e delicadeza.
Abração
As opiniões expressas nesta troca de mensagens artigo são de responsabilidade exclusiva dos autores, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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