Política

A solidão do STF

22 mai 2025

Política de pacificação do Ministério da Defesa e tolerância dos partidos de direita em relação aos golpistas explicam por que STF está sozinho na batalha jurídica e política de punir os responsáveis pela tentativa de golpe.

O ano de 2025 será lembrado como aquele em que, pela primeira vez na história do Brasil, um ex-presidente, Jair Bolsonaro, e generais terão sido julgados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por tentativa de golpe de Estado. Muita gente tem celebrado o julgamento que poderá ser um ponto de inflexão na trajetória de um país marcado pelo golpismo militar e pelo autoritarismo que o inspira. Há o risco de a celebração ser prematura. Isso porque o STF está sozinho no que já é uma grande batalha jurídica e política.

Para além da responsabilização criminal de cada um dos 34 denunciados pelo Procurador-Geral da República (PGR), o julgamento é também uma batalha política crucial porque diz respeito diretamente à relação do bolsonarismo com o regime democrático, ao enorme papel que o STF tem desempenhado na vida política do país nos últimos 20 anos e à subordinação dos militares ao poder civil. Olhando para o longo prazo, este último aspecto talvez seja o mais relevante para o futuro da democracia no Brasil.

Por que o STF está sozinho nesta batalha? Porque o Executivo e o Legislativo lhe delegaram a tarefa de lidar com o golpismo. Como?

O Poder Executivo, através do Ministério da Defesa, decidiu não fazer qualquer tipo de inquérito a respeito do que pode ter levado tantos oficiais, da ativa e da reserva, a aderirem a tentativas de golpe. Esta é a essência da política de pacificação com as Forças Armadas conduzida pelo ministro José Múcio. Pacificação significa não tocar no assunto. Como tem dito o titular da Defesa, os atos golpistas têm a ver com CPFs, não com CNPJ. Além disso, como o próprio José Múcio reconhece, o Palácio do Planalto não tem se empenhado na aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que proíbe a participação de militares da ativa nas eleições, proposta enviada pelo Executivo ao Congresso há 19 meses[1].

De maneira complementar, o Ministério da Defesa continua amplamente militarizado. Não à toa, em 2023 e 2024, o processo de elaboração do Livro Branco da Defesa Nacional, da Política Nacional de Defesa Nacional e da Estratégia Nacional de Defesa foi restrito a pouco atores do Poder Executivo, ao contrário da última vez em que tais documentos foram redigidos por um governo do PT (em 2011 e 2012), quando houve extensa participação da academia e de representantes da sociedade civil.

Em suma, a política de pacificação das Forças Armadas conduzida por Lula e Múcio, conquanto tenha sido bem-sucedida em seu propósito primário (reduzir os conflitos entre o atual presidente e a caserna), implicou também o congelamento da estrutura institucional do setor de defesa e das relações entre civis e militares, estrutura com enormes falhas, as quais, por sua vez, dificultam a plena subordinação das Forças Armadas ao poder civil e favorecem a sobrevivência de uma tradição golpista em partes do oficialato.

Sem o empenho do Executivo em aprovar a PEC que tenta despolitizar as Forças Armadas, o Congresso – dominado pelo centrão e o bolsonarismo – também nada fez em 2023 e 2024. Como se isso não bastasse, em 07/05/2025, a Câmara dos Deputados aprovou – com o voto favorável de 315 deputados e somente 143 contra – projeto que suspende a ação penal que julga a participação do ex-presidente Jair Bolsonaro e outros 33 denunciados pelo PGR nos atos golpistas de 08/01/2023. O projeto será certamente declarado inconstitucional. Porém, sua aprovação é evidência eloquente da solidão do STF na batalha contra o golpismo.

Na votação realizada no dia 7 de maio, os partidos do campo da direita votaram a favor da suspensão da ação penal que julga os participantes dos atos golpistas da seguinte maneira: Partido Liberal (PL): 91% dos deputados; Partido Novo: 100%; Partido Progressistas (PP): 89%; União Brasil (UB): 83%; Republicanos: 90%; Movimento Democrático Brasileiro (MDB): 72%; e Partido Social Democrático (PSD): 57% dos deputados[2]. Não é surpresa que a extrema-direita bolsonarista (PL e Novo) tenha votado massivamente a favor. Mas é preocupante que a direita (PP, UB e Republicanos) e a centro-direita (MDB e PSD) tenham majoritariamente apoiado a decisão. Por uma mistura de oportunismo político (querer atrair os eleitores bolsonaristas em 2026) e de hostilidade ao STF (por este exigir publicidade e rastreabilidade das emendas orçamentárias impositivas e abrir processos contra parlamentares), direita e centro-direita estão brincando com o regime democrático. Isso é grave, gravíssimo.

E há mais. Suponha-se o seguinte cenário: ao fim de 2025, várias sentenças são promulgadas pelo Supremo. Bolsonaro e oficiais das Forças Armadas vão para a cadeia por tentativa de golpe de Estado. Celebração por parte das forças democráticas. Porém, se a direita ganhar a eleição presidencial no ano que vem, para o que precisará do apoio do bolsonarismo, uma das primeiras decisões do novo chefe do Executivo será propor alguma forma de anistia ou perdão para os 34 denunciados pelo PGR, de modo a pagar o apoio que Bolsonaro lhe terá dado ao longo da campanha de 2026. Isso certamente gerará um grave conflito com o STF, o qual, novamente, deverá declarar inconstitucional qualquer anistia ou suspensão de penas concedida pelo Congresso. Porém, se anistia for uma promessa de campanha do candidato presidencial vitorioso, como ficará o Supremo diante disso? Ficará com muito menos legitimidade para peitar o Legislativo mais uma vez.

Ou seja, enquanto a direita e a extrema-direita tiverem, juntas, a maioria do Congresso, a questão da anistia aos golpistas permanecerá em aberto. É por isso que celebrações em 2025 são prematuras.

A democracia brasileira sobreviveu a tentativas de golpe de Estado em 2022 e 2023. Todavia, nosso regime democrático ainda precisa de defesa enfática. Essa tarefa não deve ser delegada ao Judiciário, muito menos aos eleitores. A defesa da democracia é papel das elites, sobretudo das elites com voto popular. Enquanto o Executivo se mantiver relutante em reformar o setor de defesa e as relações civis-militares e a direita e a centro-direita insistirem em perigosas brincadeiras no Congresso, a defesa da democracia contra o golpismo da extrema-direita ficará debilitada.

Este é a seção Observatório Político do Boletim Macro FGV IBRE de maio de 2025.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

 


[1]Ver Jeniffer Gularte, “PEC dos militares: Defesa vê falta de empenho do governo por norma para frear politização da caserna”, O Globo, 05/05/2025, disponível em https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2025/05/05/pec-dos-militares-defesa-ve-falta-de-empenho-do-governo-por-norma-para-frear-politizacao-da-caserna.ghtml.

[2]A fonte desses dados é: Celso Rocha de Barros, “Bolsonaro cria aliança entre golpistas e ladrões para atacar STF no conclave do capeta”, Folha de São Paulo, 10/05/2025, disponível em https://www1.folha.uol.com.br/colunas/celso-rocha-de-barros/2025/05/bolsonaro-cria-alianca-entre-golpistas-e-ladroes-para-atacar-stf-no-conclave-do-capeta.shtml.

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